Arquivo do Blog

Música Instrumental Brasileira no Século 21: Orquestra à Base de Sopro de Curitiba, Spok Frevo Orquestra, Banda Mantiqueira, Orquestra Jazz Sinfônica de São Paulo, Orkestra Rumpilezz, e o resgate à Moacir Santos


Nessas primeiras duas décadas do século 21, a música instrumental brasileira também passou a ser muito rica em orquestras das mais variadas vertentes -- de orquestras populares à formações bem próximas aos formato das big bands. No início dos anos 2000 o saxofonista pernambucano conhecido como Maestro Spok fundou a Spok Frevo Orquestra, "big band" que alcançou um considerável renome nas festas carnavalescas pernambucanas e ficou conhecida nacionalmente atra´ves do emblemático álbum Passo de Anjo (Independente, 2004), onde mostrou inéditas roupagens jazzísticas sobre temas dos ritmos do frevo e maracatu, além de composições próprias dos músicos e frevistas membros da orquestra, dentre eles o violinista/rabequista, multi-artista e pesquisador Antonio Nóbrega, além de relembrar composições de mestres históricos da música nordestina como Sivuca, Hermeto Pascoal e Capiba. A Spok Frevo Orquestra foi amplamente aclamada tanto em solo nacional como no exterior, tendo o trompetista americano Wynton Marsalis, por exemplo, como um dos seus grandes admiradores. Além do emblemático Passo de Anjo, a Spok Frevo Orquestra lançou ainda os álbuns Ninho De Vespa (Motéma Music, 2013) e Frevo Sanfonado (2016), este último mostrando uma ligação esquecida que a sanfona/ acordeon -- instrumento mais ligado ao baião, xote e forró -- já teve com o ritmo do frevo em seus momentos históricos, e tendo a maioria dos temas compostos por sanfoneiros da música instrumental e da música popular regional tais como Sivuca, Gennaro, Mestre Camarão, passando por temas do gaúcho Renato Borghetti, do paulista Toninho Ferragutti e do jovem cearense Nonato Lima. 
 


De Salvador, Bahia, nós temos a Orkestra Rumpilezz formada pelo maestro, arranjador, saxofonista e compositor Letieres Leite. Baseado em elementos do afoxé e outros diversos elementos rítmicos do candomblé, da percussão africana e da música popular baiana, Letieres Leite consegue, de forma magistral, unir estes elementos percussivos tradicionais baianos com elementos do jazz contemporâneo. A Orkestra de afro-jazz é formada por cinco músicos de percussão (atabaques, surdos, timbal, caixa, agogô, pandeiro, caxixi) e 14 músicos de sopro (4 trompetes, 4 trombones, 2 saxes alto, 2 saxes tenor, 1 sax barítono e 1 tuba). Desta forma, Letieres consegue uma "bateria" essencialmente baiana, mas com uma orquestra de sopros com ecos nas big bands do jazz. O primeiro álbum, Letieres Leite e Orkestra Rumpilezz (Biscoito Fino, 2009) foi gravado no Teatro Castro Alves, em Salvador, e tem a participação vocal de Ed Mota na faixa "Balendoah". O segundo registro A Saga Da Travessia (Selo Sesc, 2016), apresenta a "suite" "Banzo" que foi baseada no sofrimento dos negros que chegaram escravizados no Brasil e faz referência a Manoel dos Reis Machado, o Mestre Bimba, educador e inventor da capoeira. Com um amálgama indescritível, a música de Letieres Leite oferece uma sonoridade interessante marcada pela presença incomum do berimbau, dos atabaques e da tuba, fazendo as vezes do contrabaixo acústico/elétrico tal como conhecemos no jazz. 

A Orquestra À Base de Sopro de Curitiba (OABS)  foi fundada em 1998 e é dirigida pela Fundação Cultural de Curitiba, no estado do Paraná. Especializada em fazer uma releitura de todo o espectro da música popular brasileira, a orquestra tem em seu currículo cinco lançamentos fonográficos e mais de 15 artistas convidados, entre eles André Mehmari, Nelson Ayres, Joyce Moreno, Vocal Brasileirão, Toninho Ferragutti, Vittor Santos, Itiberê Zwarg, Nailor Proveta, Roberto Sion, Mauro Senise e Laércio de Freitas, além de um repertório de Gafieira com a cantora Roseane Santos. Seu primeiro registro em CD é composto com obras do Maestro Waltel Branco, o qual chegou a ser finalista do Premio TIM em 2008. Em seguida lançou um DVD com Arrigo Barnabé gravado ao vivo, com uma obra encomendada pela orquestra chamada “A Metamorfose”, e uma nova roupagem para as músicas do disco histórico “Clara Crocodilo”. Em 2012 fez dois lançamentos: um DVD/CD no Teatro do Ibirapuera com André Mehmari e outro no Teatro do Paiol com obras de músicos que fazem parte da história da orquestra, intitulado “Nossos Compositores”. O seu quinto lançamento é um CD gravado em Curitiba com o convidado italiano, o clarinetista Gabriele Mirabassi. Este CD foi gravado ao vivo no Teatro do Museu Oscar Niemeyer (MON), em dezembro de 2009, e produzido pelo grande selo italiano EGEA, mais conhecido pelos seus trabalhos em música erudita. Neste panorama diversificado de repertórios, a OABS é considerada hoje um dos principais grupos de música brasileira do país, e vem se aprimorando na pesquisa de novas sonoridades para a música popular brasileira. Destaques para os álbuns gravados com a flautista paulistana Léa Freire e o pianista André Mehmari



Em meados dos anos 90 o saxofonista e clarinetista Nailor Proveta fundou esta orquestra popular paulistana que se tornou um marco da música instrumental brasileira, com um repertório que é formado por canções da MPB, composições do choro e com uma influência mais preponderante do samba jazz -- é inclusive um dos conjuntos brasileiros admirados pelo trompetista americano Wynton Marsalis. Já amplamente conhecida, a Banda Mantiqueira adentrou-se ao século 21 com o álbum Bixiga (Eldorado, 2000) lançado em homenagem ao bairro paulistano onde moram grande parte dos músicos da banda. Em 2006, a Banda Mantiqueira volta a ser consagrada pelo Grammy Latino e por prêmios nacionais com o álbum Terra Amantiquira (Maritaca, 2005) -- lembrando eles já haviam sido aclamados com o prêmio Grammy por seu álbum Aldeia, de 1996. O repertório -- feito de choros, sambas, temas de jazz e baladas brasileiras -- destaca temas como "Eu e a Brisa" (Johnny Alf), "Qui Nem Jiló" (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira), "Samba da Minha Terra" (Dorival Caymmi) e "Feminina" (Joyce) e Airegin (do saxofonista norte-americano Sonny Rollins). Em janeiro de 2017, lançou o CD Com Alma (Selo Sesc) com participações especiais de Cacá Malaquias, Romero Lubambo e Wynton Marsalis. Fugindo da sonoridade de "big band" característica das orquestras americanas de jazz, Nailor proveta instituiu um estilo muito representativo de arranjo, prezando, sobretudo, pelas articulações, acentuações, harmonias, rítmos e nuances da música brasileira. 


Moacir Santos é considerado um daqueles mestres que inspiraram muitos dos legendários artistas da primeira geração da MPB, mas que não chegou a ter reconhecimento merecido. Parceiro de Vinicius de Moraes nos anos 60, e por este homenageado na canção "Samba da Bênção" (gravada primeiramente por Baden Powell), Moacir santos foi assistente do compositor alemão Hans Joachim Koellreuter e professor de músicos como Baden Powell, Paulo Moura, João Donato, Nara Leão, Roberto Menescal, Sérgio Mendes, entre outros. Considerado um dos principais inovadores da harmonia da música brasileira -- ao lado de Tom Jobim e Hermeto Pascoal --, Moacir Santos foi um gênio musical que se mudou aos EUA no início dos anos 70 e foi quase que totalmente esquecido pelo público de seu país, sendo reconhecido como um gênio musical e apresentado aos produtores americanos pelo pianista americano Horace Silver, precursor do soul jazz e jazz funk. Mas os cantores e músicos brasileiros nunca esqueceram do seu legado. Sua obra foi reapresentada ao público brasileiro no início dos anos 2000, no âmbito do Projeto Ouro Negro, encabeçado pelos produtores e instrumentistas Mario Adnet e Zé Nogueira, e desde então sua influência tem marcado as novas gerações de músicos em todas as regiões do país. Na época, participaram do projeto nomes legendários da música popular brasileira, tais como Milton Nascimento, Djavan, Gilberto Gil, João Bosco e Ed Motta. O Projeto Ouro Negro visava formar uma orquestra para apresentar as composições do mestre com a mesma originalidade dos seus arranjos, registrados em seus álbuns dos anos 60 e 70. Em 2001 a orquestra lançou o álbum Ouro Negro (Adventure Music), pelo qual recebeu o troféu de Melhor CD Instrumental no Prêmio da Música Brasileira de 2001. O formato do grupo, de 15 músicos, foi pensado em função das exigências da música do maestro e baseado na formação usada por ele em seu primeiro disco, Coisas, de 1965. Em 2005, a Banda Ouro Negro se reuniu novamente para as gravações do DVD Ouro Negro e do CD de inéditas Choros & Alegria (indicado ao Grammy Latino como Melhor CD Instrumental), que contou com a participação do trompetista americano Wynton Marsalis. Em ambos os álbuns, Mário Adnet e Zé Nogueira conseguiram imprimir nas releituras e interpretações a estética de música brasileira -- com samba, afoxé, maracatu e etc -- casada com o funky e a soul music, numa pegada moderna que só Moacir Santos conseguiu criar. De forma indireta, este resgate à obra do compositor Moacir Santos inspirou a criação de outros conjuntos, como o Projeto Coisa Fina que nasceu em dezembro de 2005, a partir da iniciativa de dois músicos: o saxofonista Daniel Nogueira e o contrabaixista Vinicius Pereira, que ficaram aficionados com a música do compositor pernambucano. Integrado por 12 músicos, o Projeto Coisa Fina tem como objetivo maior difundir a música do maestro Moacir Santos, colocando temas de outros grandes compositores brasileiros no meio do molho. Em 2010 lançaram o álbum Homenagem Ao Maestro Moacir Santos e em 2015 lançaram o álbum Coisa Fina (Selo Sesc) com composições de Jacob do Bandolim, Moacir Santos e Laércio de Freitas. 



Uma das facetas da música brasileira que se tornou tradição é a união das texturas camerísticas e sinfônicas com aspectos melódicos, harmônicos e rítmicos da música popular -- os compositores Villa Lobos e Radamés Gnattalli, por exemplo, foram dois dos principais contribuintes para esta fusão na Era do Rádio. E a Orquestra Jazz Sinfônica -- administrada pela Fundação Padre Anchieta e sediada no Memorial da América Latina, em São Paulo -- foi idealizada pelo músico e compositor Arrigo Barnabé e fundada pelo compositor Cyro Pereira com este intuito: de resgatar as tradições das orquestras de rádio e televisão que fizeram sucesso entre os anos 1930 e 1970 com a proposta de dar um tratamento sinfônico à música popular brasileira. Desta forma, sua formação une uma orquestra nos moldes eruditos a uma big band de jazz, produzindo uma sonoridade que pode ser comparada à sonoridade daqueles registros americanos de "jazz with strings", mas totalmente abrasileirado de acordo cada parceria com cada compositor ou cantor brasileiro que já tocou com a banda. Tendo o mais amplo repertório entre as orquestras populares brasileiras, a Jazz Sinfônica já tocou em parcerias com figuras legendárias da música popular brasileira e do jazz, tais como Tom Jobim, Milton Nascimento, Gal Costa, João Bosco, Toquinho, Paulinho da Viola, John Pizzarelli, Stanley Jordan, Egberto Gismonti, Gonzalo Rubalcaba, Dee Dee Bridgewater, Paquito D'Rivera e Maestro Spok, para citar apenas alguns. Durante boa parte dos anos 90 e início dos anos 2000, o principal maestro, seletor do repertório e compositor da Jazz Sinfônica foi Cyro Pereira, tendo a regência e direção artística também de figuras como o pianista Nelson Ayres, do compositor Edmundo Villani-Côrtes e do contrabaixista Rodolfo Stroeter. Em 2005, o regente e diretor artístico da orquestra passou a ser João Maurício Galindo. Dois dos mais recentes registros -- e que mostra o amálgama atualizado da orquestra -- são os álbuns Jazz Sinfônica 25 Anos (Tratore, 2015) e Trio Corrente & Orquestra Jazz Sinfônica de São Paulo (Tratore, 2018), que une o piano trio Trio Corrente formado pelo pianista Fábio Torres, o baterista Edu Ribeiro e o contrabaixista Paulo Paulelli com a estética de "jazz sinfônico" já mencionada.