Seguindo com mais um post dedicado às facetas da música instrumental brasileira, aqui lhes apresento jovens instrumentistas e compositores do eixo Rio de Janeiro - São Paulo - Belo Horizonte, que representam, cada um ao seu modo e com sua idiossincrasia, a mais nova corrente a enriquecer a música brasileira neste início de século. Sendo o pianista e compositor fluminense -- radicado em São Paulo -- André Mehmari uma grande influência para esta nova corrente e uma força motriz que agrega consistência ao discurso anti-barreiras e anti-preconceitos nas relações entre a música popular e a música erudita ou entre a música instrumental e o cancioneiro popular, esta nova geração de instrumentistas tem mostrado o mais novo e inovador hibridismo em torno de misturas com adereços retirados das mais variadas estéticas musicais: das "músicas universais" de Hermeto Pascoal e Egberto Gismonti, do post-bop contemporâneo de jazzistas como o pianista Brad Mehldau e o guitarrista Kurt Rosenwinkel -- duas grandes legendas que inovaram o leque de estruturas sonoras e composicionais do jazz a partir do final dos anos 90 e início dos anos 2000 --, das intersecções entre música popular e música erudita (englobando até as modernas estruturas, repetições e nuances do minimalismo), do pop e rock moderno e contemporâneo que vão de Beatles à Radiohead, até englobar aspectos melódico-harmônicos do moderno cancioneiro mineiro do Clube da Esquina. Mas é preciso enfatizar que, no caso desses jovens artistas, a influência da MPB mineira do Clube da Esquina é o que dá o toque melódico, lírico e melancólico, bem como as nuances harmônicas modais -- vide o sempre presente aspecto melancólico, lírico e nostálgico das canções de Beto Guedes, Milton Nascimento e Flávio Venturini, para citar apenas três dos maiores nomes deste cancioneiro. Quer dizer, se formos comparar entre movimentos precursores e o presente, temos os seguintes cenários: a partir da década de 70 tivemos entre Minas Gerais e Rio de Janeiro uma grande reunião de cancionistas com instrumentistas como o saxofonista Nivaldo Ornelas, o percussionista Robertinho Silva, o tecladista Wagner Tiso, o guitarrista Toninho Horta (dentre outros instrumentistas que passaram pela banda Som Imaginário), os quais inovaram e ampliaram as explorações instrumentais em torno do cancioneiro mineiro e levaram o som do movimento Clube da Esquina para palcos do mundo todo, incluindo tendo uma aproximação muito forte com o jazz fusion de instrumentista americanos como o saxofonista Wayne Shorter e posteriormente os guitarristas Pat Metheny e Lyle Mays; e agora no presente temos estes novos instrumentistas que buscam no post-bop contemporâneo de Brad Mehldau e Kurt Rosenwinkel uma inspiração jazzística para desenvolver uma sonoridade contemporânea em suas composições próprias e para desenvolver improvisos angulares sobre temas que vão do pop ao rock, da MPB à música erudita, incluindo improvisações livres no meio do molho. Ademais, um outro ingrediente que tem crescido muito no meio deste molho é o uso criativo de música eletrônica contemporânea -- falo, além do uso de sintetizadores (vintage e/ou mais atuais), da inspiração em estéticas mais jovens tais como lounge, house, techno, downtempo, drum'n'bass, acid e nu jazz... -- , com efeitos que conferem ainda mais um frescor e uma amálgama contemporânea às composições desta nova geração de instrumentistas. Destoando um pouco, também apresentamos aqui o contrabaixista mineiro Dudu Lima, que difere em estilo desta nova geração mas é um dos especialistas em Clube da Esquina e o Duo GisBranco, que é um singular duo de pianos do Rio de Janeiro. Segue:
A partir de 2009, o contrabaixista mineiro Dudu Lima lançou verdadeiros "tratados instrumentais" do cancioneiro mineiro do Clube da Esquina e cancionistas correlatos. Títulos tais como Ouro de Minas, Cordas Mineiras, Tamarear e Som de Minas A oferecem um caleidoscópio completo das melodias e harmonias mineiras em arranjos instrumentais, tendo sempre Dudu Lima Trio -- que traz Ricardo Itaborahy (piano, teclados e vocais) e Leandro Scio (bateria percussão) -- como ponto focal dos projetos. Dudu Lima ganhou destaque internacional ao ser colaborador do guitarrista Stanley Jordan, um inovador da técnica conhecida como "tapping", uma técnica onde o guitarrista fricciona os dedos entre as trastes como se tivesse dedilhando as teclas de um piano. Exímio contrabaixista -- alternando suas abordagens entre o contrabaixo acústico e elétrico --, Dudu Lima também incorporou essa técnica "tapping" em sua bagagem e passou a aplicar todo o leque sonoridades, técnicas e fluências brasileiras e jazzísticas à esta sua faceta de dar releituras para as canções de Milton Nascimento e Clube da Esquina. Além de Milton, diversos outros nomes de Minas Gerais tais como Toninho Horta, Beto Guedes, Ronaldo Bastos, Lô Borges, Flávio Venturini, Juarez Moreira, entre outros, tiveram suas canções retrabalhadas pelo contrabaixista Dudu Lima e seu trio. Em 2015, Dudu Lima lançou o álbum Tamarear, disco co-lançado com o próprio Milton Nascimento.
O que dizer de um músico e compositor contemporâneo que mistura influências tão distantes entre si, tais como o lirismo renascentista-barroco do compositor veneziano Claudio Monteverdi (1567 - 1643), os vocalises e as características melódico-harmônicas das canções mineiras do Clube da Esquina, a fluência e a sensibilidade improvisacional do piano jazzístico contemporâneo, passando por flertes com a música pop, com as músicas de Hermeto Pascoal e Egberto Gismonti, com o choro e regionalismos brasileiros e até com pitadas de música eletrônica? Este é o pianista -- e multi-instrumentista -- André Mehmari, que pode ser facilmente considerado um dos grandes pianistas a nível mundial e um dos mais originais e importantes compositores brasileiros deste início de século 21. Diletante compositor erudito -- com composições encomendadas por vários músicos, orquestras sinfônicas e grupos de câmera no Brasil e no exterior --, André Mehmari é o compositor atual que mais apregoa, em suas entrevistas e mídias, um discurso de derrubada dos muros estéticos, expelindo uma música composta por amálgamas entre a música erudita e a música popular, entre a arte da canção e a intrincada linguagem instrumental, entre a música instrumental brasileira e o jazz contemporâneo. Um dos seus mais idiossincráticos registros é o singelo álbum -- porém ousado -- De Árvores e Valsas (Estúdio Monteverdi, 2007), registro totalmente autoral -- e com ele mesmo tocando piano, baixo elétrico, melotron, rhodes, flauta, clarinete, violino, samplers, guitarra elétrica, bateria e... assovio(!) -- e ao qual credita-se ser um dos principais registros da nova música instrumental brasileira desse início de século pela riqueza de detalhes que engloba até efeitos eletrônicos. Com uma temática rítmica implícita, baseada no andamento em 3/4 das valsas e indo de flertes com o baião nordestino à balada mineira -- sem soar folclórico, acentuado ou sugestivo, ou seja, com os rítmos sempre soando de forma implícita --, Mehmari mostra neste disco um amálgama que se faz de lirismo, tradição, contemporaneidade e amor pela amizade, pela natureza e pelo mais belo Brasil -- destaque, aliás, para a influência que a poética e os sons da natureza tem sobre sua música interior, algo que lhe é natural pelo fato de residir no município paulista de Mairiporã em meio à preservação florestal da Serra da Cantareira, onde também mantém o seu já celebrado Estúdio Monteverdi. Outro ponto forte em sua discografia são as escolhas dos sidemans e parceiros, tanto na seara instrumental como na seara da canção: afeito a duos, suas parcerias inculuem veteranos brasileiros como o multiinstrumentista Jovino Santos Neto, passando por instrumentistas estrangeiros como o pianista português Mário Laginha e o baterista francês François Morin, até englobar jovens promissores como o baterista/vibrafonista Antonio Loureiro; bem como as parcerias que ele faz em seus registros de canções, onde encontramos figuras importantes da MPB, tais como o carioca Guinga, os paulistanos Luiz Tatit, Mônica Salmaso e Ná Ozzetti e o mineiro Sérgio Santos. Contudo, frequentemente Mehmari reclama das "mente fechadas" que insistem em delimitar os territórios estéticos com barreiras de preconceito ou desqualificar a canção ante ao instrumental e vice-versa. Críticas à parte, o leitor-ouvinte há de convir que poucas vezes houve, no gigantesco range da MPB, registros de tão grande requinte como os dois volumes da série Piano e Voz (MCD, 2004), em duo com a cantora Ná Ozzetti, ou como no álbum Canteiro (Tratore, 2011), registro de canções próprias de André Mehmari, onde ele canta e convida outros letristas e cantores parceiros. Para quem é afeito somente ao instrumental, os álbuns com convidados especiais ou em piano solo, duetos e com o trio com o baterista Sergio Reze e o contrabaixista/violonista Neymar Dias são imperdíveis: a começar por Lachrimae (Estúdio Monteverdi/Tratore, 2004), passando por Miramari (Estúdio Monteverdi/ Tratore, 2009) este em duo com o clarinetista italiano Gabriele Mirabassi, até chegar no ótimo registro do Mehmari Loureiro Duo (Estúdio Monteverdi/ Tratore, 2016) com destaque para a simbiose entre o piano e o vibrafone de Loureiro, e no excelente registro As Estações da Cantareira (Esdúdio Monteverdi/Tratore, 2015), com o trio de piano, contrabaixo e bateria mais convidados, além de singelos efeitos eletrônicos. Ademais, um dos registros mais instigantes de André Mehmari é o menos conhecido álbum Por Sete Vezes, que traz peças híbridas forjadas na mistura de linguagens diversas -- do popular, passando pelo erudito e englobando a música eletrônica de forma mais direta --, as quais foram escritas para o Balé da Quasar Companhia de Dança, com destaque para a participação do violoncelista greco-brasileiro Dimos Goudaroulis. Por fim, uma outra faceta com a qual André Mehmari não raramente aparece em seus vídeos e registros é o da improvisação livre sobre temas da MPB, temas da música pop ou apenas improvisação livre sem um tema pré-determinado: dotado de técnicas pianística virtuosas, André Mehmari lançou-se como pianista justamente através de um álbum de improvisações livres, vide o registro Improvisos (Prêmio Visa de MPB, 1998) ao lado do contrabaixista Célio Barros e do baterista Sérgio Reze, faceta que se repetiu no excelente álbum Araporã (Estúdio Monteverdi, 2017), com improvisos livres em duo com o baterista francês François Morin.
Algumas produções mineiras no âmbito da música popular, por mais contemporâneas que sejam, podem embebecer o ouvinte com uma dosagem exacerbada de lirismo e nostalgia -- marca registrada da música mineira, que consegue ser lírica e, ao mesmo tempo, assustadoramente moderna. Rafael Martini, no entanto, parece não se limitar a este estigma. Trata-se de um músico completo e com um ideário constituído de vários leques. Rafael Martini é um pianista e compositor mineiro para quem o início das sus influências instrumentais foi o conceito de "música universal" de Hermeto Pascoal, o meio foi seu próprio meio mineiro e o fim é sua própria imaginação, que, ilimitada, vai além da música brasileira e parece abraçar certas melodias e harmonias do jazz e do rock contemporâneos, influências implícitas no seu moderno sotaque. Já em primeiro registro, Motivo (Núcleo Contemporâneo, 2012) ele mostra que é um criador musical originalíssimo ao lançar um dos melhores álbuns da música instrumental brasileira de 2012: o registro traz sete sete faixas originais que conseguem casar equilíbrio com originalidade, onde as composições forjadas no âmbito da canção são acolhidas com arranjos camerísticos angulares, peculiares, imprevisíveis, fora de série (!), enquanto as composições puramente instrumentais apresentam uma linguagem inconfundível cheia de contrastes tais como lirismo e energia, cantos e contracantos, pontos e contrapontos, rítmos e arritmias, improvisos elaborados e improvisos livres... -- ou seja, as dosagens dos elementos rítmicos, melódicos e harmônicos do álbum são muito bem pensadas, justapostas e diversificadas. Um dos expoentes da nova geração de instrumentistas do cenário mineiro, Rafael Martini se cerca de criativos instrumentistas como Alexandre Andrés (flautas, canto e etc), Alexandre Silva (clarinete e clarone) e Jonas Vítor (saxofones), para citar apenas alguns. É de Rafael Martini, também, um dos mais ousados projetos orquestrais da música instrumental recente. Em 2017 ele lançou sua Suíte Onírica -- um conjunto de peças que nos apresenta uma música híbrida de canção, música sinfônica, jazz e música brasileira -- tendo seu sexteto ao lado da Orquestra Sinfônica da Venezuela e Coral sob regência do maestro português Osvaldo Ferreira -- destaque, aliás, para o fato da suíte ser ilustrada com textos do poeta e compositor mineiro Makely Ka, e ser inspirada no universo dos sonhos. Ainda em 2017, Rafael Martini também lançou o álbum Gesto (Spiral Records), registro dedicado ao público japonês e gravado em coletivo com a clarinetista Joana Queiroz e o guitarrista Bernardo Ramos.
Deste mesmo núcleo de instrumentistas mineiros, a música instrumental brasileira passou a ser enriquecida também por jovens como o cantor, violonista e flautista Alexandre Andrés e o baterista, vibrafonista e multiinstrumentista Antonio Loureiro. Em 2012, com a direção musical de André Mehmari, Andrés lançou o ótimo álbum Macaxeira Fields -- tendo participações especiais de músicos, cantores e grupos tais como Mônica Salmaso, Tatiana Parra, Grupo Uakti, Juan Quintero, Rafael Martini, Antonio Loureiro, dentre outros -- que foi descrito no site do músico como um registro com sonoridade e poesia de universos essencialmente brasileiros e de origem rural, inspirado no interior de Minas Gerais e na herança de artistas como Guimarães Rosa e Luiz Gonzaga , e dialogando com gêneros musicais de origens diversas: a faixa-título “Macaxeira Fields”, por exemplo, tem como inspiração o violão de “Blackbird”, clássico dos Beatles, com um toque sutil de baião; enquanto em outras faixas, o minimalismo de Philip Glass e o som do Grupo Uakti encontram a estética do Clube da Esquina. Continuando nesta fusão do instrumental com a canção brasileira em suas matrizes rurais e urbanas, englobando também o jazz contemporâneo, o minimalismo e o rock, em 2014 o flautista e cantor Alexandre Andrés lançou o álgum Olhe bem entre as Montanhas, registro que foi inspirado pela poética das paisagens naturais de Minas Gerais e tem a participação de músicos mineiros tais como Rafael Martini (piano e voz), Pedro Santana (baixo acústico, baixo elétrico e voz) e Adriano Goyatá (bateria, percussão e voz). Já em seu último álbum, Macieiras (2017), Andrés foca apenas no instrumental em oito faixas autorais produzidas na fazenda de mesmo nome, local onde cresceu e hoje produz grande parte de seus trabalhos: os temas do álbum fazem referência ao melhor da música brasileira, inspirando-se em entidades como Clube da Esquina, Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal e grupo Uakti, tudo isso em comunhão com a liberdade e a improvisação do jazz contemporâneo e, pontualmente, englobando estruturas características do minimalismo norte-americano. Já o baterista e vibrafonista Antonio Loureiro tem, além dos álbuns lançados com o violinista Ricardo Herz e com o pianista André Mehmari, dois registros imprescindíveis: Só (Borandá, 2015) e Livre (2018). Em "Só" -- com participações de Tatiana Parra (voz), Pedro Durães (programações eletrônicas), Frederico Heliodoro (baixo elétrico), Rafael Martini (acordeon e vozes), Trigo Santana (contrabaixo), Alexandre Andrés (flautas), Daniel Santiago (violão), Sérgio Krakowski (pandeiro) e dos argentinos Santiago Segret (bandoneon) e Andrés Beeuwsaert (piano) --, Loureiro canta e toca em vários instrumentos e mostra composições que se inspiram na coleção das referências sonoras que fazem parte da sua formação musical: o som progressivo das bandas Yes e Genesis, o toque de jazz contemporâneo à la Brad Mehldau, o cancioneiro popular mineiro, a influência de músicos contemporâneos criativos como o próprio pianista André Mehmari e etc. Em Livre, registro híbrido de canção e instrumental, Antonio Loureiro convida o cancionista Makely Ka e o grande guitarrista americano Kurt Rosenwinkel, efetuando uma simbiose perfeita entre aspectos brasilianistas com o jazz contemporâneo, mas também recheando os arranjos com nuances de música eletrônica.
Da mesma forma, a criativa compositora e clarinetista carioca Joana Queiroz representa atualmente o mais novo da música instrumental brasileira. Começando sua trajetória na Itiberê Orquestra Família, por onde tocou dez anos e onde teve contato com a estética de Hermeto Pascoal -- lembrando que ela participou do ótimo registro Mundo Verde Esperança (Rob Digital, 2003) de Hermeto Pascoal & Grupo --, aos poucos a clarinetista foi conquistando independência para mostrar suas próprias idéias, arranjos e composições que também bebem de diversas estéticas musicais, incluindo do universo da música erudita, da canção e do jazz contemporâneo. Com um quarteto formado com Bernardo Ramos (guitarra e voz); Bruno Aguilar (baixo acústico e voz) e Antônio Loureiro (bateria e voz), a clarinetista lançou seu primeiro álbum Uma Maneira de Dizer (Independente, 2014) com participações da cantora Beth Dau e do pianista Vitor Gonçalves, explorando suas influências em suas primeiras peças em torno da intimidade deste grupo de cariocas e mineiros que -- através de intercâmbios entre Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte -- se conheceram através de shows e oficinas e logo passaram a tocar juntos e a representar um núcleo inovador para a música instrumental brasileira. O segundo álbum de Joana Queiroz, Diários de Vento (Independente, 2016) é um registro experimental onde não há nenhum outro intérprete além dela mesma, que gravou diversas camadas de clarinete, flauta, saxofone tenor, clarone, voz, piano, percussão, entre outros instrumentos, utilizando e interagindo apenas com sons ambientes da ecovila TerraUna, na Serra da Mantiqueira. Já em terceiro álbum, Boa Noite pra Falar com o Mar (Independente, 2016), a clarinetista acrescenta a seu quarteto a voz de Beth Dau e o piano de Rafael Martini para formar um sexteto fixo e continuar suas explorações e expansões sonoras em torno dos limiares entre a canção e a música instrumental, incluindo arranjos sobre composições da flautista paulistana Léa Freire e do mestre Hermeto Pascoal. Sempre atuando na esfera da instrumentação estritamente acústica e quase sempre utilizando o efeito do vocalise -- sem utilizar, ainda, efeitos eletrônicos, faceta que a diferencia em relação aos seus colegas desta nova geração --, a música de Joana Queiroz é, enfim, um confluência singular de linhas melódicas com coloridos tonais angulares, sutileza erudita e harmonias e arranjos que transitam na ponte entre os climas cariocas, passa pelo jazz urbano paulista e desemboca nas paisagens melancólicas mineiras, ou seja, ela vai do conceito de "música universal" de Hermeto Pascoal ao moderno cancioneiro mineiro de uma forma totalmente própria e criativa -- sem esquecer dos toques sutiz de jazz contemporâneo a La Kurt Rosenwinkel que ela emprega em seus arranjos, algo que se pode perceber nas reverberizações do guitarra de Bernardo Ramos.
Bianca Gismonti (filha do influentíssimo compositor e multiinstrumentista Egberto Gismonti) e Claudia Castelo Branco, formam o Duo GisBranco. Duas virtuoses do piano numa parceria que dá origem a um dos poucos -- pelo menos o mais conhecido -- duos de pianos da música instrumental brasileira neste início de século 21. Ao longo dos 10 anos de carreira a dupla lançou os álbuns Gisbranco (2008), Flor de Abril (2011), o DVD “Duo Gisbranco 10 anos” (2016) e o mais recente registro Pássaros (2019), sendo este último composto totalmente de canções com acompanhamento pianístico e com letras de Chico César, além de participações especiais de Mônica Salmaso, Jaques Morelenbaum, Sérgio Santos, André Mehmari e Eugêncio Dale. Dotadas de uma simbiose musical extraordinária, as duas pianistas se tornaram um duo especializado em confeccionar arranjos e releituras pianísticas para temas da MPB que vão do carioca Chico Buarque ao paraibano Chico César, passando pelas fusões entre o piano popular e o piano erudito a La Villa-Lobos e Ernesto Nazareth, e incluindo no meio do molho a influência instrumental -- rítmica, harmônica, improvisativa -- do mestre Egberto Gismonti. Não há muitas experiências de duos como este na história da música popular brasileira, haja vista ser um formato esporadicamente explorado no jazz e ser considerado mais comum na seara da música erudita. César Camargo Mariano e Wagner Tiso fizeram algo parecido há alguns anos atrás usando teclados eletrônicos. As experiências da cantora e pianista Délia Fischer com Cláudio Dauelsberg talvez possam também ser lembradas como exemplos de instrumentistas que trabalharam com esse formato de duo de pianos. Mas o Duo GisBranco veio para formalizar este formato instrumental como um dos mais interessantes e possíveis combos para se explorar a música instrumental brasileira. O primeiro álbum Gisbranco (2008) é o mais emblemático da dupla, apesar de toda as explorações e ampliações de repertório que viriam a seguir. E a inspiração não veio apenas do estudo musical em si, mas da vida, dos gostos e experiências compartilhados entre as duas artistas. Bianca por exemplo, vai buscar no filme Fale com Ela, do espanhol Pedro Almodovar, e nas gravações de Elis Regina e Tom Jobim, a inspiração para recriar a versão pianista da canção Por Toda a Minha Vida (clássico do maestro, originalmente com letra de Vinicius de Morais), dando ares eruditos, pra não dizer, “chopinianos” à canção do mestre da bossa nova. No mesmo registro a dupla escolhe Guinga, um dos mais cultuados cancionistas contemporâneos, dando colorido pianístico fantástico ao belo tema Choro pro Zé. Também estão inclusas temas de Moacir Santos, César Camargo Mariano, Toninho Horta, Délia Fischer e do próprio Egberto Gismonti. Erudição, arranjo e criatividade a quatro mãos!
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