****¹/2 - Peter Evans - Being & Becoming (More Is More, 2020)
Peter Evans tem levado o trompete para experiências cada vez mais expansivas no sentido de explorar os limites das técnicas estendidas (ou expandidas, como queiram) -- vide seus últimos trabalhos onde ele mistura os rangidos, sopros distorcidos e ruídos inconcebíveis do seu trompete com efeitos de eletrônica e ruídos eletroacústicos. Mas Peter Evans parece ter a consciência de que explorar técnicas desconhecidas sem apresentar um sentido para que essas técnicas coexistam com as técnicas modernas e contemporâneas já conhecidas, dentro de processos criativos de composição e improvisação já convencionados, isso não seria, propriamente, uma evolução -- essas técnicas precisam ser mentalmente deglutidas e assimiladas pelos ouvintes, e, para isso, o músico e compositor precisa trazê-las para o plano da realidade. Neste álbum, pois, Peter Evans volta-se para as texturas acústicas e apresenta seu novo quarteto Being & Becoming que vai ao encontro desta linha de pensamento: de encaixar esses ruídos ainda incompreendidos dentro de processos criativos elaborados. Peter Evans lança aqui um trabalho composicional onde ele explora ao menos três elementos criativos: o uso de uma formação inusual -- com Joel Ross no vibrafone, Nick Jozwiak no contrabaixo e Savannah Harris na bateria e percussão -- , explorando uma nova textura onde a ressonância melódico-percussiva do vibrafone venha harmonizar e se justapor, se misturar e se reverberizar ao sons do trompete, do contrabaixo e aos kits de bateria e percussão; o uso de composição estruturada onde a improvisação passa a ser mais um meio do que propriamente um fim, passa a ser mais uma ponte entre as passagens manualmente compostas; e o encaixe de técnicas estendidas e ruídos livremente improvisados dentro de um sentido composicional de música estruturada. Trata-se, enfim, um álbum de cunho composicional amalgamado entre o post-bop e a livre improvisação -- lembra, um pouco, o clássico Out to Lunch de Eric Dolphy.
***¹/2 - Sepalot Quartet - NOWNEXT (Eskapaden Musik, 2020)
O DJ e produtor alemão Sebastian Weiss (aka Sepalot) é um daqueles artistas pós-modernos que tendem a transpassar os muros estéticos em busca das misturas mais inusitadas. Membro fundador do grupo de hip hop Blumentopf e com gravações e produções solo ambientadas na música eletrônica, nos últimos anos DJ Sepalot vem atuando com um quarteto instrumental que mistura música eletrônica com nuances jazzísticas, criando vibes bem próximas ao estilo nu jazz. Seu Sepalot Quartet é formado por ele nos toca discos e eletrônicos, guitarra, contrabaixo e bateria, e neste segundo álbum do quarteto traz convidados especiais como o trompetista Matthias Lindermayr e o vocalista Angela Aux, que carrega uma certa influência da soul music. Sepalot explica porque sua mente é tão aberta a ponto dele, um DJ, ser líder de uma banda instrumental de jazz: This freedom of expression can also be considered a sign of our times, with a generation coming of age without rivalling youth phenomena. Where a jazz show is held in a techno club with no further explaination needed. Quem gostar deste álbum NOWNEXT poderá apreciar, também, o primeiro álbum do Sepalot Quartet: A New Cycle (2019).
***¹/2 - Rōnin Arkestra - Sonkei (Rings, 2019)
Liderado pelo produtor, compositor e multi-instrumentista Mark de Clive Lowe, a Rōnin Arkestra de Tóquio reúne alguns dos músicos mais inovadores da cena jazz e eletrônica do Japão, com membros distribuídos por outras bandas e grupos tais como Kyoto Jazz Sextet, WONK, Cro-Magnon, Root Soul , Sleepwalker, Sauce81 e Kyoto Jazz Massive. Com um EP de estréia lançado em 2018 -- First Meeting --, Sonkei é o primeiro álbum em formato mais extensivo da Rōnin Arkestra. Aqui um jazz acústico de caráter mais próximo ao post-bop se mistura a grooves e efeitos de música eletrônica que se aproximam ao acid jazz e jazz-funk contemporâneos. Com inclinações ao pop e à eletrônica, Mark de Clive Lowe juntou a temática dos samurais chamados de "ronins" da era medieval japonesa com sua predileção pela música de Sun Ra, criando, então, esta banda que visa o jazz contemporâneo embebecido de eletrônica mas sempre com tons frescos de spiritual music e atmosferas cósmicas. Sem ir de encontro, contudo, aos aspectos mais "free" e experimentais de Ra, as composições aqui são coesas e agradáveis.
**** - Aaron Parks - Dreams of a Mechanical Man (Ropeadope, 2020)
As composições do pianista Aaron Parks evidenciam um raro de harmonizações, melodiosidades e rítmicas inovadoras -- de contemporaneidade em termos gerais. Podemos dizer que os projetos de Parks são um continuum evolutivo ao post-bop empreendido por trios legendários como o Brad Mehldau Trio, o trio Bad Plus e o falecido pianista sueco Esbjorn Svensson -- com uma diferença: Parks tem a predileção de atuar em quarteto com a adição de uma guitarra, na intenção de explorar uma textura mais psicodélica e uma melodiosidade mais ambientada no indie rock. A banda -- quarteto que ele nomeou de Little Big --, é formada de Parks acompanhado do guitarrista Greg Tuohey, do baixista David "DJ" Ginyard e do baterista Tommy Crane. Com este álbum, então, Aaron Parks segue explorando seu inovador post-bop embebecido de melodias com ecos no pop e indie-rock, de efeitos eletrônicos e métricas ímpares -- a canção "The Ongoing Pulse of Isness", por exemplo, foi composta sobre uma métrica em compasso 9/4. Contudo, é preciso afirmar que, particularmente neste álbum, Parks prezou pela simplicidade das canções agradáveis e singelas, sem mostrar tanto seu lado virtuosístico. Há, também, uma singela influência da textura crossover presentes nos álbuns do Pat Metheny Group, mas aqui essa influência é projetada de forma ainda mais contemporânea. Aaron Parks explana: This new music continues the band’s cultivation of a musical language that marries creative improvised music to more groove-centered music—electronic, indie-rock, hip-hop, and psychedelia—but without a trace of mannered “fusion” or a sense that the music is cobbled together from disparate styles. Rather, it feels seamlessly integrated, whole in and of itself. Além do piano acústico, Parks também atua com sintetizadores, Wurlitzer, Rhodes, celesta, vibrafone, glockenspiel e voz.
**** - Frederick Galiay - Time Elleipsis (Ayler Records, 2020)
No outono de 2016, o Instituto Francês presentou o contrabaixista Frederick Galiay com o programa de residência "Hors les murs", pelo qual o músico se emergiu nos territórios místicos-budistas da Tailândia, Laos, Camboja e Mianmar. Nestes territórios, o musico conheceu a fundo as cerimônias milenares do budismo teravada, bem como as celebrações animistas praticadas por pessoas de diversas etnias presentes. Ao voltar para sua França natal, o contrabaixista pôs para fora toda inspiração espiritual e musical que aqueles cenários budistas lhes apresentara: o resultado surtiu neste álbum fantástico lançado pela Ayler Records: Time Elleipsis. O álbum traz as atmosferas místicas do budismo para o plano da improvisação livre e das texturas elaboradas através de oito peças idealizadas para os músicos do sexteto Chamæleo Vulgaris. Há, portanto, uma elaboração de timbrística bem talhada aqui: acordes dissonantes em guitarra eletrificada meio à silêncios bem espaçados, sopros rangidos de sax barítono (ora acústicos, outrora eletrificados), percussão eletrônica, efeitos eletrônicos de sintetizadores e efeitos de pratos em bateria acústica como referência aos gongos e atmosferas meditativas budistas são alguns dos ingredientes sonoros deste álbum. A capa de arte surrealista do álbum sintetiza bem a viagem inter e intra-dimensional que a música de Galiay aqui nos apresenta.
***¹/2 -GoGo Penguin - GoGo Penguin (Blue Note, 2020)
Para os entusiastas em piano jazz, a banda inglesa GoGo Penguim é o que há de mais contemporâneo no universo dos piano-trios -- é a banda européia que preencheu a enorme lacuna deixada pelo falecimento do pianista sueco Esjorn Svensson em 2008, que até então vinha fazendo enorme sucesso com um trio que praticamente definiu o formato do piano-trio dentro do mainstream contemporâneo. Imersa em uma amálgama onde a pop music, o rock alternativo, a música eletrônica e a música minimalista coexistem como as principais influências, o trio GoGo Penguim usam efeitos mínimos de eletrônica para potencializar as texturas acústicas -- usando de pedais de efeitos para isso --, e trabalham as texturas acústicas para transverter elementos e adereços eletrônicos e minimalistas em atmosferas cristalinas e frescas, além de fazer uso de um certo hipnotismo baseado em linhas melódicas belas e bem polidas. Sendo uma banda enquadrada nos meandros do jazz, mas também sendo sempre uma banda inclassificável, no site do trio pode se encontrar a seguinte explicativa:"GoGo Penguin have been hailed as the “Radiohead of British Jazz”, but they draw equally on rock, jazz and minimalist influences, alongside the intricacy of Aphex Twin or Four Tet to create their punchy, experimental, but always beautiful music". Assinando com a gravadora Blue Note em 2015, o trio acaba de lançar seu sétimo álbum, o epônimo GoGo Penguim. O álbum é epônimo -- leva o próprio nome da banda como título -- porque trata-se de uma gravação auto-afirmativa no sentido dos músicos se certificarem que só agora, após mais de sete anos desde a fundação da banda, é que o trio chegou em sua maturidade em relação às misturas e influências que fazem parte da formação sonora da banda -- e isso significou chegarem a um certo individualismo que consiste em aceitar que o som da banda não é "JAZZ" propriamente, e que eles não estão mais preocupados com esta categorização, apesar de toda a veneração que eles têm pelo gênero.
**** - Steve Lehman - Xenakis and Valedictorian (Pi Recordings, 2020)
Assim como Sonny Rollins (nos anos 50) e John Coltrane (nos anos 60) ajudaram a disseminar gravações com trio de sax, bateria e baixo sem o acompanhamento de piano ou qualquer outro instrumento harmônico, o galático saxofonista e clarinetista Anthony Braxton ajudou a disseminar gravações apenas com saxofone solo, sem nenhum acompanhamento através do clássico álbum For Alto (elmark Records, 1969). A ideia primordial de Braxton em 1969 era explorar as potencialidades do sax alto em termos de novos ruídos, fraseios experimentais e técnicas estendidas -- For Alto é uma gravação clássica e precursora neste sentido. Pois bem: é neste sentido que o altoísta Steve Lehman -- um dos grandes saxofonistas do nosso tempo -- também lança este álbum, um álbum de saxofone alto onde ele explora os mais alienígenas ruídos através de técnicas estendidas e uso de objetos. Com este álbum, Steve Lehman também sintetiza a atual realidade de isolamento social. As dez faixas aqui apresentadas foram gravadas por Lehman no banco de passageiros do seu carro, onde o músico encontrou o retiro perfeito para expressar essa fase de isolamento. As faixas foram gravadas com um saxofone alto Selmer Mark VI de 1973 e um iPhone SE de 2016 e foram compiladas sem efeitos de mixagem e sem nenhum tipo edição. O álbum também é uma homenagem de Steve Lehman à sua mãe -- que é aficionada por música moderna e experimental e foi uma das suas primeiras influências a lhes apresentar música nova --, pois em determinado estágio da pandemia ele ficou impossibilitado de ir visitá-la e felicitá-la na data do seu aniversário. Toda a receita lucrada com este álbum será usada para apoiar músicos freelancers afetados pela pandemia do COVID-19. A inspiração central para este álbum é a música eletroacústica do compositor grego Ianni Xenakis: Lehman tenta mostrar que é possível criar efeitos e ruídos acústicos em seu saxofone parecidos com os efeitos eletroacústicos que Xenakis evidenciou em sua música.
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