***¹/2 - Deerhoof & Wadada Leo Smith - To Be Surrounded By Beautiful, Curious, Breathing, Laughing Flesh Is Enough (2020)
Wadada não pára. Um dos seus últimos tentos nos traz uma inusitada parceria com a banda punk Deerhoof -- quarteto conhecido por ir do pop undergroung ao mais experimental noisecore. Trata-se do álbum To Be Surrounded, gravado antes da pandemia da Covid-19 ao vivo no Winter Jazzfest de Nova York no Le Poisson Rouge -- nightclub de Nova Iorque categorizado como uma espécie de "multimedia art cabaret", por onde se ouve tanto grupos de música erudita contemporânea quanto bandas de avant-garde jazz e música experimental, diga-se de passagem --, com 100% dos lucros do álbum sendo direcionados ao movimento Black Lives Matter. O álbum começa com seis canções gravadas sem Wadada Leo Smith, seguido de outras cinco faixas onde o trompetista se junta à Deerhoof para formar um quinteto de música improvisada. Deerhoof ja é por si só uma banda adepta à face mais improvisativa da música experimental. Com Wadada, então, a performance se expande para um misto de free jazz, punk-rock e pitadas daquele noisecore mais intenso à "La Zorn". O canto da vocalista Satomi Matsuzaki também aparece aqui e ali junto ao trompete para dar um tom mais melódico às faixas.
**** - Jennifer Koh - Limitless (Cedille, 2020)
Na música contemporânea deste início de século, as barreiras estéticas estão cada vez mais em derrocada -- quer dizer: as delimitações estéticas e mercadológicas sempre existirão na música e nas artes, mas o que mais existem hoje em dia são músicos e compositores que trabalham com as mais ecléticas misturas em buscas de novas direções criativas, sem se importar com as categorizações e fazendo parcerias das mais distintas possíveis. É o caso da violinista coreana Jeniffer Koh, uma das estrelas maiores do universo erudito. A célebre violinista coreana transita do universo clássico dos concertos de Tchaikovsky e sonatas de Schumman à premiéres de peças de compositores contemporâneos como John Zorn e Esa-Pekka Salonen. Agora em 2020, a violinista acaba de lançar um álbum que é uma verdadeira auto-afirmação do seu lado eclético mais exploratório. Trata-se do álbum Limitless (Cedille), onde a violinista empreende uma série de parcerias com músicos, compositores e performers de diferentes áreas da música e diferentes nacionalidades. Como o título do próprio álbum denota, a proposta é romper limites com duetos dos mais improváveis possíveis, ignorando tando os limites geográficos das nacionalidades dos parceiros como os limites estéticos das áreas de atuação musical de cada um deles. Com o experimentalista eletrônico paquistanês Qasim Naqvi, a violinista explora uma espécie de drone music minimalista através da união do som acústico do violino com os sons eletroacústicos dos sintetizadores modulares. Com a compositora e vocalista americana Lisa Bielawa, há um trabalho mais direcionado ao canto com textos de poetisas da década de 1920. Com a multiinstrumentista, compositora e vocalista chinesa Du Yun -- ganhadora do Prêmio Pullitzer em 2017 --, há uma visceral exploração da voz enquanto instrumento criativo e grito feminino, em contraponto ao violino que se choca às entonações vocais com sua miríade de ruídos oriundos tanto de técnicas convencionais como de técnicas estendidas. Com o baterista e percussionista americano Tyshawn Sorey -- um dos grandes nomes do jazz avant-garde contemporâneo --, a violinista faz uma exploração mais contemplativa, onde o percussionista faz uso de um glockenspiel para explorar de forma colorida as dissonâncias, explorando sons e silêncios dentro do tempo e do espaço -- algo próximo de um Morton Feldman, mas aqui em homenagem ao jazz master Muhal Richard Abrams. Com a compositora e performer eletroacústica americana Nina Young, a violinista se põe à prova com live electronics, ou seja com manipulação eletrônica do violino em tempo real. Com a compositora e pianista chinesa Wang Lu, há um trabalho mais ambientado nas técnicas de colagem: através de um trabalho primoroso de edição ouve-se um entrelace de cânticos budistas, alarmes nucleares, antigas canções pop coreanas e outros sons que se fundem num dueto semi-improvisado. Segue-se a parceria com o pianista de jazz indo-americano Vijay Iyer: o dueto de piano e violino traz as harmonias exuberantes da verve indú de Iyer, com uma exploração dramática dos textos sagrados de Diamond Sutra, escritos antigos que embasam a cultura zen. Por fim, o dueto com a compositora e pianista Missy Mazzoli se distingue pelas nuances e atmosferas em torno do uso de teclados e orgão, em tons mais melódicos e sensivelmente agradáveis. Um trabalho plural. Um exemplo claro do atual artista multiforme. Ouça no Youtube!
**** - Kaze & Ikue Mori - Sand Storm (Circum/Libra, 2020)
Uma explosão dinâmica e criativa de ruídos e sons acontece quando dois trompetes razantes, um piano fora de série, uma bateria freejazzística e um laptop plugado em manipuladores eletrônicos se juntam sob uma estética de música que equilibra partes livrementes improvisadas (através de técnicas estendidas) com passagens elaboradamente compostas. O grupo é formado pelo quarteto de longa data denominado Kaze (Satoko Fujii ao piano; Natsuki Tamura no trompete; Christian Pruvost também ao trompete; e Peter Orins na bateria) em parceria com a sempre criativa improvisadora Ikue Mori, especialista em manipulação eletrônica. O que temos aqui é uma amostragem da sempre intensa e vibrante música improvisada japonesa, que no âmbito da música instrumental improvisada vai do free jazz ao noisecore e tem na interação dos membros do quarteto Kaze -- que estão juntos a mais de uma década -- um dos exemplos mais vibrantes. Com a adição de Ikue Mori, então, as seções ganham efeitos de eletroacústica experimental, o quê só apimenta ainda mais o molho. Também há uma curiosa faceta de improvisação vocal -- com vocalizações guturais ininteligíveis em meio às cacofonias criativas -- que já são bem características na paleta criativa do Kaze. Ademais, a pianista, bandleader e arranjadora Satoko Fujii mostra que sua sensibilidade -- em dinamizar as peças entre passagens meditativas e passagens intensas -- continua em alta.
***¹/2 - Makaya McCraven - Universal Beings E&F Sides ( 2020)
Não é de hoje que o cenário instrumental de Chicago se mostra uma das comunidades mais criativas dos EUA -- a começar pela influência que a AACM (
Association for the Advancement of Creative Musicians) exerce sobre a cena local. E uma das figuras mais benquistas da atualidade é o baterista e produtor Makaya McCraven, tido pelas magazines e pelos jornalistas especializados como um dos mais emblemáticos músicos em ascendência no jazz contemporâneo. Em 2018, Makaya lançou um álbum chamado Universal Beings que foi responsável por alcá-lo a um merecidíssimo reconhecimento nos anais da mídia especializada. Agora, como uma extensão daquele projeto, o baterista lançou um projeto composto de um documentário e mais um álbum, chamado Universal Beings E&F Sides, que expande as idéias do registro anterior e tem como finalidade trazer o público à uma maior exposição de como é sua vida no universo da música. O documentário, dirigido por Mark Pallman, é interessante porque mostra lampejos da intimidade artística de Makaya no cenário de Chicago, escancara a produção do álbum de 2018, apresenta cenas dos bastidores da sua casa em Chicago e documenta as viagens à Califórnia, Londres e Nova York. Ao mesmo tempo, ele reconta a história da sua vida, seu processo criativo e mostra alguns dos regulares colaboradores, tais como Anna Butterss, Daniel Casimir, Dezron Douglas, Miguel Atwood-Ferguson, Nubya Garcia, Ashley Henry, Shabaka Hutchings, Josh Johnson, Carlos Niño, Jeff Parker, Junius Paul, Tomeka Reid, Joel Ross e Brandee Younger. Interessante notar que as composições e abordagens de Makaya McCraven -- em termos de como manipula seu drum set e de como arranja sua música -- é de uma pluralidade surpreendente: livres improvisação, improvisações em compassos ímpares, beats acústicos que reencarnam as batidas rápidas e polirítmicas do hip hop e da música eletrônica, atmosferas oriundas da spiritual music vanguardista (estilo Alice Coltrane) e influências étnicas da música afro e da world music são apenas algumas das características que fazem parte das suas composições e do seu manejo à bateria -- tudo isso com uma roupagem contemporânea, mas sem perder o aspectos da espontaneidade e daquele som cru e rústico tão característico do cenário criativo de Chicago. O álbum Universal Beings E&F Sides vem com 14 faixas e pode ser ouvido na plataforma do Bandcamp. O documentário pode ser apreciado no Youtube.
***¹/2 - The Bad Plus - Activate Infinity (Edition Records, 2019)
Os mais antenados ao jazz contemporâneo já sabe da trajetória do power trio The Bad Plus. Um dos principais e mais inovadores piano-trios da história recente do jazz contemporâneo, o Bad Plus teve uma primeira formação com o pianista Ethan Iverson, com o baterista Dave King e o contrabaixista Reid Anderson. Eles tiveram seu início dos anos 2000 com a proposta de misturar estilos aparentemente distantes, tais como post-bop jazz, avant-garde, música erudita contemporânea e canções do pop e do rock das últimas décadas, e pouco a pouco alcançaram uma identidade tão própria, inconfundível e marcante que se tornou impossível falar de jazz contemporâneo sem mencioná-los. Em 2017, o pianista Ethan Iverson põe fim à sua colaboração com a banda e não demora muito para que o trio seja recomposto com o pianista Orrin Evans. O novo colaborador chega exatamente numa nova fase da banda onde os membros querem ampliar ainda mais o ciclo de novas canções e novas composições próprias, já que no início o foco do trio parecia estar depositado em aplicar releituras em canções do pop e rock -- ou seja, agora tratava-se de uma nova era criativa, mais autoral! Agora mais amadurecido, o trio parece ter aparado as arestas das influências do avant-garde cacofônico e do rock barulhento para dar vezes à composições mais intimistas e com improvisações mais longas -- ou seja, aparou-se os excessos que tanto gostamos, enriqueceu-se em detalhes que tanto não percebemos. É o que mostra este segundo álbum desde a chegada de Orrin Evans, registro intitulado Activate Infinity (Edition Records, 2019) e que tenta trazer ao público -- como o próprio título denota -- a energia e a definição da continuidade intensa e vibrante, da autoafirmação da banda, do continuum da atividade criativa. As canções continuam marcantes e trazem a sonoridade única e os melodismos idiossincráticos que marcam a identidade da banda, algo que eles só alcançaram após muitos anos juntos aprendendo a manipular, arranjar e rearranjar elementos do pop e rock através de conceitos jazzísticos e vanguardistas, mas agora os tons intimistas e os desenvolvimentos improvisativos de Orrin Evans dão à banda uma nova dinâmica -- mais jazzística, menos roqueira. É impossível não gostar da primeira versão da banda, quando as mãos pesadas do pianista Ethan Iverson inundavam nossos ouvidos com acordes marcantes do pop, tons imprevisíveis do rock e stacattos barulhentos do avant-garde, mas a nova banda com Orrin Evans traz uma nova telepatia jazzística, mais ambientada nos desenvolvimentos contrapontísticos das interações improvisativas e mais ambientada no post-bop contemporâneo. Uma nova direção para um trio que já nasceu inovador.
**** - Du Yun & JACK Quartet - A Cockroach's Tarantella (2020)
A compositora erudita chinesa Du Yun é, sabidamente, uma das almas viventes mais criativas do planeta que surgiu nos holofotes da música na segunda metade da última década -- e, apesar desta afirmativa parecer exagerada, o ouvinte terá de convir com ela após apreciar composições excepcionais como a opera Angel's Bone (que a fez ganhar nada menos que um Pullitzer Prize em 2017) e a peça Dinosaur Scar (que foi nomeada com um Prêmio Grammy na categoria Best Classical Contemporary Composition em 2019). Agora em 2020 a compositora lança mais um trabalho seminal: A Cockroach's Tarantella, que é um desenvolvimento ainda de uma das suas primeiras peças quando era uma estudante universitária e residia num apartamento cheio de baratas, residência esta subsidiada pelo governo -- as lembranças deste ambiente distópico, que lhe permitia "conversar com as baratas", é a verve central da peça. Esta peça título apresenta ainda duas variações com narrativa vocal à cabo da própria compositora: uma em inglês e outra em chinês. Também estão incluídos uma peça para quarteto de cordas que a compositora escreveu em 2014, peça chamada Tattooed in Snow, e duas improvisações livres: Epilogue e Prologue. Epilogue é baseado em uma gravação radiofônica de campo feita por um repórter de notícias, Yang Nan, no mercado de Wuhan, na China, no primeiro dia em que foi instituído o lockdown, em março de 2020, quando já se havia constatado a incidência de mortes pelo novo coronavírus Covid-19. Segundo a compositora, este registro apresenta peças que retratam a angustia viciante das pessoas pelo conflito e pela alienação no mundo atual: "...are steeped in humankind's ubiquitous fascination with regression, the conflict of belonging and alienation, and the resurrection archetype." As interpreções das peças ficam a cargo do JACK Quartet, quarteto especializado em música erudita contemporânea e originado em 2005 após formação dos seus membros no renomado Eastman School of Music, em Rochester, NY.
**** - Jaga Jazzist - Pyramid (Brainfeeder, 2020)
O icônico grupo norueguês Jaga Jazzist acaba de lançar Pyramid, após ficar praticamente cinco anos longe das gravações de estúdio. Uma das descobertas recentes do autor deste blog, o octeto norueguêS de música eletrônica Jaga Jazzist já conta com quase quatro décadas de rodagem e é considerado um dos grupos mais legendários nos circuitos undergrounds da música eletrônica experimental, nu jazz e post-rock. Fundado em 1994, o Jaga Jazzist se distingue da maioria dos grupos de música eletrônica pelas suas produções que unem elementos do post-rock com desenvolvimentos improvisativos e arranjos instrumentais mais sofisticados, diferenciando-se das produções mais pop do range "house-techno-dance". Na verdade, este álbum marca uma nova direção criativa na trajetória de uma banda que já vinha de décadas sendo considerada uma das formações mais inovadoras do fascinante reino nórdico de criadores musicais. "Pyramid" é o primeiro álbum autoproduzido totalmente pelos oito membros de Jaga Jazzist, uma vez que a maioria de seus registros anteriores foram produzidos pelo produtor Jørgen Træen. Com esta direção mais independente, o desafio do grupo foi comungar todas as idéias em um só conceito de álbum sem a figura de um produtor para formar um conceito e dizer qual era a melhor idéia a ser usada. Assim, cada membro pôde expôr suas ideias, composições e facetas com mais liberdade. Apesar de serem um grupo essencialmente de música eletrônica, um dos efeitos desta produção mais independente é o fato do Jaga Jazzist ter ampliado aqui suas ideias inovadoras para o uso de instrumentos acústicos -- como tuba, saxofone, euphonium, flauta e vibrafone, dentre outros -- em comunhão com sintetizadores, orgãos eletrônicos, laptop, bateria eletrônica, pedais de efeitos, guitarras psicodélicas e parafernálias afins. Apesar das faixas serem gravadas num distante estúdio da gélida Noruega, o projeto de lançamento deste álbum ficou a cabo das edições do selo Brainfeeder, de Los Angeles, com curadoria de ninguém menos que Flying Lotus, aclamado produtor e DJ americano (sobrinho-neto da falecida pianista e harpista Alice Coltrane). Ao mencionar algumas das principais inspirações para este trabalho, o líder da banda e compositor principal da banda Lars Horntveth explica que a faixa "Tomita" é uma homenagem ao compositor japonês e mestre do sintetizador Isao Tomita, e a faixa "The Shrine" é uma alusão ao lendário cenário do saxofonista nigeriano Fela Kuti, em Lagos.
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