O ano de 2020 foi um dos mais desastrosos da história do Brasil -- assim como da história de muitos dos países do mundo. Foi um ano onde as raízes fascistas impregnadas na história das sociedades emergiram em forma de um conservadorismo tão tosco quanto cruel, trazendo consigo falsos patriotismos, falsos moralismos, preconceitos arraigados e negacionismos aflorados -- ou seja, enganadas por uma onda de desinformação e por um empoderamento fascista, ambos provenientes da internet e das fake news, muitas pessoas passaram a desacreditar da emergência de se cuidar do meio ambiente, da dívida histórica que o nazismo e a escravidão deixaram para a sociedade contemporânea e da necessidade de se confiar na ciência mesmo num momento tão crítico em termos de saúde pública. É claro que tudo isso não aconteceu repentinamente em 2020: muito dessa instabilidade foi gerado pelas anomalias sociais decorrentes dos processos antidemocráticos que vinham escurecendo nossos horizontes já a partir de meados da década 2010. Mas toda essa instabilidade política e social foi potencializada pela crise do novo coronavírus, emergida em 2020. Foi um ano onde tivemos, com a eclosão da Covid-19, a explosão de uma crise sanitária das mais terríveis da história contemporânea, o que obrigou a maioria dos países a aplicarem suas próprias políticas de isolamento social, muitas das vezes em processos confusos, questionáveis e incondizentes em relação às determinações da Organização Mundial de Saúde -- em alguns países com mais flexibilidade, em outros em completo lockdown. Foi um ano onde alguns poucos assassinatos racistas chocaram os sensatos -- casos de George Floyd nos EUA, das crianças em Recife e no Rio de Janeiro (vide os casos dos meninos Miguel Otávio e João Pedro) e do soldador João Alberto Freitas em Porto Alegre, dentre outros... --, enquanto os quase dois milhões de mortes pela Covid-19 não foram suficientes para acordar e humanizar os negacionistas e insensatos. Foi um ano com poucas visitas de familiares e amigos, nos fazendo distanciar até mesmo das pessoas mais íntimas das nossas vidas. Foi um ano de poucos encontros e abraços, e com pouca música nos bares, clubes e recintos públicos -- já que esses locais não puderam abrir suas portas. Foi um ano em que tivemos um choque de realidade ao trazer para casa -- nosso ambiente sagrado de descanso e intimidade -- toda a pressão e a carga de stress do trabalho corporativo através do home office. Foi um ano em que nossas crianças não puderam brincar e estudar -- ao menos não da forma interacional como estavam acostumadas --, e nossos adolescentes, reclusos em seus quartos, se empanturraram de gorduras e açúcares cibernéticos oriundos do submundo da internet e das desinformações das redes sociais. Foi um ano desastroso! Mas também, individualmente, foi um ano para repensar nossos valores e repensar quais novas direções nós, os que sobrevivermos, deveremos tomar. Mas também foi um ano para revalorizarmos o nosso ente familiar, o parente e o amigo como uma pessoa que realmente faz falta. Mas também foi um ano para buscarmos refúgio em bons livros, boas leituras, em boa música e para buscarmos um refúgio mental e espiritual mais intenso frente à toda a carga de negativismo expelida por nossos televisores, celulares e notbooks. Foi um ano que abalou as estruturas políticas e sociais e nos deixará com uma marca profunda de tristeza em nossas vidas -- principalmente para quem perdeu um ente querido para a Covid-19 ou para a brutalidade policial --, mas se tivermos a humildade e a capacidade de considerar nossos egoísmos e reconsiderarmos nosso papel como um ente social, sairemos dele mais fortes e mais sábios como seres humanos e, coletivamente, mais fortes enquanto sociedade.
Musicalmente falando -- em termos de um resumo do que foi a música instrumental, a música criativa em 2020--, a impressão é que tivemos um ano atípico com alguns excelentes projetos e lançamentos já no início do ano (antes da eclosão da Covid-19), seguido de uma parada angustiante a partir de Março (após as exigências dos lockdowns em várias partes do mundo) e uma retomada de bons lançamentos no terceiro trimestre (sendo a maioria dos projetos, lógico, gravados em estúdio ou gravados em casa de forma artesanal ou não convencional). Ou seja: o impacto do lockdown mundial gerou uma verdadeira aflição com a sensação de que realmente o mundo havia parado, incluindo os músicos que tiveram de interromper seus projetos, seus shows, concertos e gravações. Mas a arte sagrada da música, claro, não parou de fluir! Para nós -- blogueiros, jornalistas, resenhistas, revisores, amantes e ouvintes inveterados da música mais criativa -- foi um momento de retomarmos aquelas escutas esquecidas, de nos remetermos a buscas mais profundas por registros mais experimentais e de nos refugiarmos nas nostálgicas listas compilatórias ao estilo "1001 Álbuns Que Você Precisa Ouvir Antes de Morrer". Para os músicos, porém, acredito que foi um ano onde suas almas criativas sofreram muito com a falta de encontros com seus colegas e sidemans, e a falta de apresentações ao vivo e das possibilidades interativas mais diretas que um músico precisa ter com seu público através da sua arte -- sem mencionar a questão da situação financeira, que naturalmente decai muito num cenário como esse. Contudo, muitos músicos recorreram às possibilidades das lives virtuais para se conectar com seu público -- e até mesmo como uma possibilidade de alcançar novos interessados --, enquanto outros usaram o isolamento social para compor, criar e gravar discos de forma mais solitária em seus próprios lares e estúdios. Na verdade, para os músicos e compositores mais inquietos, a solidão absoluta também proporcionou lapsos criativos, mesmo com toda essa onda de negatividade. Aqui neste post, quero trazer, portanto, alguns exemplos de músicos que gravaram discos de forma solitária por causa do isolamento social e exemplos de gravações inspiradas pela temática da Covid-19. Foi assim, por exemplo, que em uma sexta feira de Abril, o saxofonista Tim Berne acordou inspirado e decidiu ali mesmo na sala da sua casa, ainda de pijama, a pegar seu saxofone para treinar alguns solos melódicos improvisados: o resultado surtiu efeito em seu primeiro registro em sax solo, Sacred Vowels, gravado e masterizado entre os dias 17 e 20 de Abril, álbum que é um ponto fora da curva na sua discografia, uma vez que o saxofonista se especializou mais em produzir uma espécie de free jazz imbuído de estruturas livres sempre no formato de bandas com improvisadores interativos. Já o saxofonista Steve Lehman, impossibilitado de estar presente na data de aniversário dos 80 anos da sua mãe por conta do isolamento, também gravou um álbum em sax solo dedicado à ela e que, da forma como foi gravado, representa um emblemático retrato desse momento de isolamento social: sempre em uma hora por dia de tempo livre que o músico tinha entre ajudar seus filhos a estudar em casa e dar aulas remotas para alunos do California Institute of the Arts, ele se recluía no banco de passageiros do seu carro com seu saxofone alto Selmer Mark VI de 1973 para gravar o material que resultou nas dez faixas do álbum Xenakis and the Valedictorian, álbum gravado através de um iPhone SE de 2016, com "takes" que foram compilados sem efeitos de mixagem e sem nenhum tipo edição -- álbum já resenhado aqui no blog. O pianista Brad Mehldau, por sua vez, reuniu sua família e foi para Amsterdam para ficarem isolados também por conta da Covid-19, e lá o pianista pôde gravar o excelente álbum "Suite: April 2020": na ocasião, o presidente da gravadora Nonesuch instigou-o a usar seu tempo livre para compor alguns temas inspirados pela então crise do coronavírus, o que surtiu efeito no conjunto das 12 peças de curta duração que compõe a suíte " April 2020" -- uma obra para piano solo que soa melancólica e tem os títulos das faixas relacionados diretamente à pandemia, além de soar diferente no sentido de que essas faixas são peças-miniaturas de uma suíte temática, diferindo dos seus trabalhos anteriores onde a maioria dos temas recebem desenvolvimentos improvisativos extensos. Diferentemente desses casos, há ainda músicos que foram ainda mais longe no quesito de métodos criativos de gravação. O saxtenorista Chris Potter, por exemplo -- recluso e reflexivo em relação à pandemia e ao movimento Black Lives Matter --, gravou o álbum There Is a Tide (Edition Records, 2020) como uma espécie de homem-banda com ele mesmo tocando, exclusivamente, cada um dos instrumentos em overdubs separados -- piano, teclados, guitarras elétricas e acústicas, baixo, bateria, clarinete, clarinete baixo, flauta, flauta alto, percussão, samples e saxofones --, para depois misturar e masterizar todos os overdubs em temas e improvisos coesos, processo criativo que durou não menos que seis semanas. O pianista brasileiro André Mehmari, por sua vez, impossibilitado de seguir para a turnê que faria com seu trio pelos EUA, compila algumas gravações dos ensaios do trio juntamente com outras faixas gravadas pelos músicos à distância e edita o sensível álbum Música Para Uns Tempos de Cólera: registro de choros, canções, valsas e temas instrumentais de verve brasileira que, segundo o próprio pianista, têm a função de servir como um alento para as pessoas que se angustiam com esses momentos tão difíceis de crise na política e na saúde pública. Por fim, indico aos leitores do blog o interessante dueto da saxofonista Ingrid Laubrock e seu marido, o baterista Tom Rainey: para se manterem ocupados e conectados com seus fãs, o casal lançou o interessante projeto doméstico chamado Stir Crazy Episodes com a ideia de gravarem de forma amadora, por meio de um gravador portátil da marca Zoom, um episódio musical por semana até que as apresentações ao vivo retornem, episódios que podem ser apreciados gratuitamente na plataforma Bandcamp. Clique nas capas dos álbuns abaixo para apreciar as respectivas faixas. Que em 2021 tenhamos vacinas eficazes e acessíveis à toda a população, e que retornemos mais fortes, mais sábios, mais humanos e mais musicais, deixando para traz toda e qualquer intolerância, todo e qualquer preconceito, toda e qualquer negação em relação às urgências nos quesitos de valorizarmos a vida, as culturas dos povos, a ciência e o meio ambiente.
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