A intenção deste post é trazer alguns registros da música erudita contemporânea produzida no Brasil neste início de século 21, procurando ter um panorama -- ainda que limitado aos registros aqui resenhados -- das estéticas e das direções que este tipo de música tem tomado em solo tupiniquim. O termo "música erudita", inclusive, é uma mera formalidade para fugirmos do termo "música clássica", uma vez que o termo antigo "clássico" aqui não se aplica, pois aqui estamos falando de música contemporânea exploratória, onde os músicos muitas das vezes transcendem os limites estéticos para criar misturas que são praticamente inclassificáveis. O compositor santista Gilberto Mendes -- que viveu até seus 93 anos e adentrou o século 21 como uma forte influência para a música erudita nacional -- talvez seja o mais sumário exemplo de transmodernidade no sentido de ter se permitido navegar por várias vertentes e aplicar várias misturas e intersecções estéticas em sua produção musical. Essa dificuldade de categorizar essas misturas, aliás, é uma característica da época pós-moderna em que vivemos. No caso do Brasil, ainda temos muitos ecos do modernismo do século 20, da música atonal dodecafônica, da música eletrônica concreta e da música aleatória -- ou seja, das direções tomadas por Schoenberg, Cage, Schaeffer, Boulez e, aqui no Brasil, por Koellreutter --, mas ao ouvir as últimas obras dos últimos anos, percebemos que agora trata-se de um modernismo mais diluído -- inclusive com as portas abertas para novas idiossincrasias, novos conceitos e novas formas pessoais no fazer musical, como se pode atestar na música de, por exemplo, Edson Zampronha. Da mesma forma, ainda há ecos daquelas correntes nacionalistas advindas de Villa-Lobos, Camargo Guarnieri, Radamés Gnatalli e etc, mas são ecos que se diluem em uma produção musical mais diversificada e eclética: caso da música de André Mehmari, onde o compositor parece encarar essas influências não como vertentes intransponíveis, mas como ferramentas dentre tantas outras ferramentas que ele utiliza em suas composições -- incluindo as possibilidades do jazz e da eletrônica. Outra compositora e performer interessante é a pianista Michelle Agnes Magalhães: a musicista tem trabalhado num range que vai da eletroacústica à livre improvisação, tendo um trabalho muito inteligente e bem direcionado quanto as possibilidades do piano preparado. Já para quem quer conhecer os rumos da música eletroacústica no Brasil, um dos nomes centrais -- dentre outros nomes mencionados nos registros abaixo -- é Flo Menezes, que tem uma produção musical vasta e também é um dos fomentadores desse tipo de música através de diversos projetos que revelam outros novos nomes da produção eletroacústica no país. Ademais, para quem quer conhecer um novo compositor que representa a nova geração com sua música orquestral e camerística de frescor contemporâneo instigante, o nome dele é Caio Facó. Convido-vos, então, a navegar por esses afluentes eruditos lendo as resenhas abaixo e clicando nas imagens e nas capas dos álbuns para ouvi-los.
Gilberto Mendes é um compositor obrigatório para quem quer conhecer a evolução da música contemporânea brasileira. Influenciado pela corrente modernista apregoada no Brasil por Hans-Joachim Koellreutter a partir do final dos anos 30, e ao mesmo tempo coerente com o pluralismo que a música veio adquirindo dos anos de 1950 até os anos 2000, Gilberto Mendes criou uma obra singular que é um verdadeiro retrato das evoluções estéticas que a música erudita sofreu durante esse período: sua música permeou do dodecafonismo à música concreta, do nacionalismo às misturas da música pós-moderna, da música instrumental pura às músicas teatral, vocal e performática -- e sempre de maneira incomparável e muito pessoal. E embora nos anos 50 tenha havido uma certa dicotomia entre o núcleo brasileiro de música moderna iniciada por Koellreutter e o núcleo nacionalista formado compositores que seguiram as ideias de Camargo Guarnieri, em certos momentos Gilberto Mendes passou a representar uma junção das duas correntes, mostrando ser possível se fazer música nova sem renegar os adereços nacionalistas -- ainda que Mendes nunca tenha aderido às amostragens explícitas dos folclores e regionalismos. Estes dois CDs -- A Música de Gilberto Mendes (Selo Sesc, 2012) e Festival Música Nova (Selo Sesc, 2016), ambos dirigidos pelo maestro americano Jack Fortner -- são registros imprescindíveis e provas vivas de como a música e as ideias de Gilberto Mendes atravessaram seis décadas para influenciar toda uma geração de instrumentistas e jovens compositores aficionados por música nova. No caso do CD Festival Música Nova, temos o registro da 48ª edição do respectivo festival em 2014, com 13 peças escritas por Gilberto Mendes e outros 11 compositores que participaram da edição daquele ano. O histórico Festival Música Nova foi criado em 1962 pelo próprio Gilberto Mendes após seu retorno da Alemanha, e desde sempre tem sido um encontro anual importante para mostrar as produções contemporâneas dos compositores brasileiros e latino-americanos que são mais ligados neste tipo de música de verve mais modernista. E esse álbum, ainda que não faça um apanhado histórico do festival, traz um pouco da atmosfera presente naquele ano de 2014, nos deixando um registro vivo do que representa um evento como esse em termos da música erudita mais exploratória. Já o álbum A Música de Gilberto Mendes (Selo Sesc, 2012) -- que vem com o subtítulo "Um só compositor em vários compositores" -- reúne dez obras que Gilberto Mendes compôs dentro de uma linha do tempo que vai de 1961 à 2009, sendo algumas dessas peças ainda eram inéditas, nunca antes gravadas. A peça "Cavalo Azul", por exemplo, é uma cantata para canto lírico (soprano), coro masculino e instrumentos que foi escrita em 1961, mas por causa de problemas com os detentores dos direitos autorais do texto original ainda não tinha sido gravada: um segundo texto foi criado pelo poeta santista Flávio Viegas Amoreira e, então, a obra pôde ser aqui gravada neste CD. Já as três peças "Música para 12 instrumentos", "Rotationis" e "Musica para Piano Nº 1" são advindas da sua fase dodecafônica do final dos anos 50 e início dos anos 60, de quando o ainda jovem Gilberto Mendes viajou para a Alemanha para se inteirar do movimento serialista ainda vigente nos cursos de verão chamados Ferienkurse für Neue Musik em Darmstadt, onde teve aulas com Pierre Boulez e Karlheinz Stockhausen: o interessante, aliás, é que para fugir de um total formalismo europeu, Mendes enxerta o uso do berimbau e do saxofone nessas obras, na tentativa de lhes conferir tratativas mais pessoais e idiossincráticas. Segue-se a melódica peça "O meu amigo Koellreutter", que já reaproxima de uma tratativa mais tonal com canto, piano e marimba: peça composta em 1984 em homenagem aos 70 anos de Koellreutter -- explicitando, inclusive, uma melodia de verve oriental, uma vez que o mestre Koellreutter fora muito influenciado pelas músicas indianas e orientais. Segue-se "Uma Foz, Uma Fala", peça composta em 1993 para canto (soprano), coral de vozes, piano, trompete, trombone, clarineta e saxofone alto, e que faz uso de um poema concreto de Augusto de Campos para criar um desfecho melódico e uma relação harmônica com as palavras. E gradativamente o álbum vai seguindo para obras onde Gilberto Mendes já abandona os modernismos passadistas da música dodecafônica e vai incorporando pós-modernismos melódicos e harmônicos de uma forma sempre intrigante e pessoal: caso da peça "Estudo sobre o pente de Istambul" (1995), que já havia sido gravada em registros anteriores com marimba e vibrafone, mas aqui aparece transcrita para piano solo. Por fim, o álbum termina com três peças pós-modernas que o compositor escreveu ou terminou já adentrando os anos 2000: Prelúdio (2001), Quasi Una Passaclaglia (2001) e Sinfonia de Navio Andantes, escrita para a edição de 2009 do Festival de Campos do Jordão. Ademais, outro álbum imprescindível para se ter uma noção da diversidade estética de Gilberto Mendes é o CD Gilberto Mendes 90 anos - Alegres Trópicos (2013), onde a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP) realiza um concerto em homenagem aos 90 anos do compositor gravando outras das suas emblemáticas peças, entre elas a icônica Beba Coca-Cola, que se tornou um marco da vanguarda ao unir música moderna para coral com a poesia concreta de Décio Pignatari.
Através dos esforços de músicos e professores ligados à Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP), à Escola de Música do Estado de São Paulo (EMESP) e à Faculdade Santa Marcelina, em 2010 foi formada essa excelente orquestra de câmera totalmente dedicada à vertente mais contemporânea e experimental da música erudita: a Camerata Aberta. No primeiro CD, Espelho D'Água (Selo Sesc, 2013), o ensemble brasileiro mostra peças de estruturas composicionais variadas abordando obras dos compositores brasileiros Rodrigo Lima, Sílvio Ferraz, Sérgio Kafejian e Roberto Victorio, além dos europeus Franco Donatoni (Itália), Oliver Schneller (Alemanha) e Miguel Azguime (Portugal). Já o segundo álbum, Sobreluz (Selo Sesc 2019), soa com uma contemporaneidade ainda mais fresca ao abordar obras de Alexandre Lunsqui (Telluris: desert rose), Valéria Bonafé (A terceira margem do Rio), Rodrigo Lima (Antiphonas) e da compositora finlandesa Kaija Saariaho (Notes on light). Um dos poucos ensembles brasileiros especializado em interpretações de peças modernas e contemporâneas dos séculos 20 e 21 -- com uma real intenção, também, de dar vozes aos compositores que são instrumentistas dentro do próprio ensemble --, em pouco tempo a Camerata Aberta já mostra carregar o mesmo nível de rigor e excelência que os maiores conjuntos de câmera americanos e europeus. A regência é de Guillaume Bourgogne e a direção artística, de Sergio Kafejian.
Uma das séries de lançamentos que incentiva a produção de peças contemporâneas inéditas por compositores brasileiros é a Série + empreendida pelo Selo Sesc e idealizada pelo maestro Ricardo Bologna e a flautista Cássia Carrascoza. A série iniciou com os CDs Berio + e Ligeti +, e tem como princípio apresentar obras de compositores modernistas consagrados e, numa segunda parte do CD, apresentar peças inéditas de compositores brasileiros que se sentem influenciado por esses compositores e por esse repertório do século 20. O CD Berio + (2007) traz a mezzo soprano Céline Imbert e o Percorso Ensemble, sob direção de Ricardo Bologna, apresentando as onze folk songs do compositor italiano Luciano Berio -- compostas em 1964 para voz e sete instrumentos --, e numa segunda parte do álbum traz composições inéditas de Eduardo Guimarães Álvares e Arrigo Barnabé, ambas inspiradas em Berio. O CD Ligeti + (2013), também com o Percorso Ensemble, traz peças variadas do compositor húngaro György Ligeti e mais duas peças escritas por Cláudio de Freitas e Marcus Siqueira, ambas também inspiradas em Ligeti. Já o terceiro e último CD da série, Cage + (2014), faz uma homenagem ao compositor e experimentalista John Cage e procura mostrar as influências das suas ideias e das suas peças experimentais na produção dos compositores Leonardo Martinelli, Matheus Bitondi e Michele Agnes: o registro traz uma instrumentação focada nos trabalhos seminais de Cage para percussão e piano preparado, tendo a participação de um ensemble composto de Leonardo Martinelli (direção musical), Dana Radu (piano), Emmanuele Baldini (violino) e Michelle Agnes (piano preparado), acompanhados do Grupo PIAP, grupo de Percussão do Instituto de Artes da UNESP e outros músicos -- destaque para a peça Mobile, onde a improvisadora, compositora e experimentalista Michelle Agnes experimenta um interessante aplique de imãs e outros objetos nas cordas do piano, que além de se basear nos experimentos com piano preparado apresentados por Cage, também tenta alcançar efeitos que tendem a se aproximar da estética da música eletrônica concreta por meio dessas técnicas estendidas. Por fim, em 2015 o compositor Flo Menezes idealiza o lançamento do DVD duplo Boulez + (2015) em homenagem aos 90 anos do importante compositor francês Pierre Boulez, trazendo também obras inéditas do próprio Menezes mais os compositores Sergio Kafejian, Tiago Gati, Marcus Siqueira, Martin Herraiz e Alexandre Lunsqui: o DVD apresenta gravações das peças Anthèmes I e II de Boulez e traz um foco em peças inéditas para violino e eletroacústica em tempo real com participação especial do violinista Cláudio Cruz e toda a expertise eletrônica de Flo Menezes, além de apresentar uma intersecção conceitual entre os sons da música apresentada e a visualização da espacialidade desses sons através de imagens editadas por softwares pelas mãos do videomaker Raimo Benedetti.
A pianista brasileira -- e atualmente radicada em Banff, região das Montanhas Rochosas canadenses -- Luciane Cardassi é uma das mais multifacetadas colaboradoras para o crescimento do repertório pianístico contemporâneo no Brasil, tendo vivido em Porto Alegre e na Bahia e tendo sido colaboradora de vários compositores contemporâneos brasileiros, além de ter atuado como professora na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Neste álbum, Ramos (Redshift Records, 2019), gravado no Rolston Recital Hall do Banff Centre for Arts and Creativity, Luciane Cardassi interpreta sete obras de sete compositores brasileiros: Rafael de Oliveira, Edson Zampronha, Maria Eduarda Mendes Martins, Paulo Guicheney, Rodolfo Valente, Rodrigo Meine e Paulo Rios Filho. Para além do fator sentimental de pertencimento para com o Brasil, as sete peças destes compositores brasileiros exigiram que ela usasse sua voz como implemento expressivo, desenvolvendo-se em novas formas de mostrar sincronicidade entre o piano acústico, sua voz e a eletrônica. A peça "Douce Dame Jolie", de Maria Eduarda Mendes Martins, é um exemplo: Cardassi usa a própria voz para recitar, em francês antigo, uma das mais populares canções medievais, atribuída a Guillaume de Machaut. Já a faixa título "Ramos" é uma homenagem ao Delta do Parnaíba e também à tradição das benzedeiras nordestinas, trazendo a voz de Dona Lúcia e sons dos ventos captados na paisagem litorânea do Piauí. É um álbum que traz uma beleza atonal cativante, com o uso expressivo da voz através de sons, palavras e fundos sinestésicos eletroacústicos que, juntos -- piano, voz e eletroacústica --, resultam em peças que são verdadeiras trilhas sonoras e verdadeiras expressões de um modernismo mais diluído num pós-modernismo mais atual. O álbum traz peças que tem um certo conceito de trabalhar a beleza da intersecção de notas e acordes consonantes com notas e acordes atonais, de trabalhar com a ressonância das notas em longo espaços de tempo e silêncio, e de trabalhar essa interferência da voz e esse plano de fundo eletrônico para se criar sensações imagéticas.
Edson Zampronha é um reconhecido compositor brasileiro, teórico e escritor musical, que desde os anos 90 vem criando uma obra de inventividade ímpar com foco na reinterpretação e na escuta diferenciada -- por meio das suas peças, o compositor sempre incita o ouvinte a ouvir uma mesma passagem musical de formas diferentes, assim como sempre convida o instrumentista-interprete a remodelar suas interpretações, muitas das vezes expondo clusters e acordes grandes, composto de 10 ou mais notas, na intenção de criar novas sensações harmônicas, bem como na intenção de ir esmiuçando esses acordes em variações e formas instigantes ao longo da peça. Este álbum é emblemático porque ele trabalha esse sentido de "modelagens" de formas e sensações em vários âmbitos: orquestral, piano solo, instrumentos em interação com eletroacústica, e eletroacústica pura. Registro resultado da sua coordenação junto ao Grupo de Estudos em Música, Semiótica e Interatividade, essas peças foram escritas entre meados dos anos 90 e início dos anos 2000, com o registro sendo gravado em 2003. As seguintes peças estão inclusas:
Modelagem XII (com a Orquestra Sinfonia Cultura, regida por Lutero Rodrigues): onde o compositor faz uso de uma intensa e extensa massa sonora, com grandes acordes de muitas notas, percussão densa, e com passagens que vão variando em camadas e interações sobrepostas.
Modelagem II (com a pianista Beatriz Balzi): onde o compositor desafia o pianista a exacerbar os limites do piano com cluster, acordes cheios e densos, espasmos que parecem repetitivos, mas que apresentam variações que vão acontecendo de forma implícita ao longo da peça.
O Crescimento da Árvore sobre a Montanha: peça que trabalha com camadas e modelagens eletroacústicas, fazendo uso, entre outros aparelhos, do sintetizador analógico Synthi 100, que o compositor encontrou em sua residência no Gabinete de Música Eletroacústica (GME) de Cuenca, Espanha.
Modelagem III (com a flautista Celina Charlier): obra para flauta solo, onde o compositor trabalha os limites do sopro com as notas efetivamente ressoadas.
Mármore (para tuba e eletroacústica, com Jesús Jara): obra interativa de tuba com eletroacústica, onde o compositor trabalha os sons guturais por reproduzidos na tuba sobrepostos ou em diálogos com sons guturais eletroacústicos rígidos.
Modelagem VIII (para percussão, com o percussionista Eduardo Gianesella): obra de percussão onde o computador projeta a partitura numa tela e o percussionista tenta tirar as notas de primeira vista, apresentando timbres percussivos esparsos e aleatórios como se fosse uma livre improvisação, mas com uma verve timbrística elaborada mais próxima as obras de percussão de John Cage.
Fragmentação: obra que trabalha uma variação de Jesus timbres de eletroacústica pura seguidas de uma variação de sons pré gravados que são eletronicamente sintetizados.
André Mehmari é o que podemos chamar de brasilianista eclético: ou seja, dentro do range de um certa atualização do nacionalismo brasileiro, o compositor trabalha com todas as estéticas possíveis: das releituras com base no popular às suas próprias peças eruditas criativas, da música instrumental mais genuinamente brasileira às formas do jazz, da música sinfônica que retrata os ritmos e regionalismos a La Radamés ao uso de efeitos eletrônicos em peças instrumentais mais contemporâneas. Estes dois CD's acima são dois dos seus recentes projetos que exemplificam um pouco amplitude da sua obra -- que é uma obra que traz muitas facetas em seu conjunto, mas com peças que sempre soam com um melodismo singular e uma elaboração harmônica que lhe é muito particular. Mas André Mehmari tem uma outra postura pós-moderna que também potencializa a sua identidade singular e sua imaginação sem limites: que é frequentemente trazer adereços rítmicos, harmônicos e melódicos de outras eras e épocas para dentro da sua música. O ambicioso projeto Música para Cordas (2019), aliás, é emblemático porque ele faz uso de uma sonoridade tão clássica -- como a que representa os conjuntos de cordas -- para justamente transcender fronteiras nas formas compositivas das misturas dos tons harmônicos e melódicos: ao longo do CD o compositor apresenta obras que trazem sua brasilidade única amalgamada com inspirações melódico-harmônicas advindas de compositores das mais diferentes épocas, passando pelo barroco pós-renascentista de Claudio Monteverdi (1567-1643) enxertado na peça Ballo (2009), pelo romantismo tardio de Dmítri Schostakóvitch (1906-1975) amalgamado na peça Schostakovitchiana (2006), pelo nacionalismo de Villa-Lobos e Ernesto Nazareth na peça Música para Harmônica e Cordas, e pelo barroco cintilante de Vivaldi citado na peça Strambotti, para clarinete, acordeom e cordas. Essa postura pós-moderna de ressignificar adereços rítmicos-melódicos-harmônicos em uma nova linguagem ou estética pessoal não é uma novidade, mas é um procedimento contemporâneo e é um processo louvável, pois o compositor precisa conhecer a história da música e estudar a fundo os adereços dessas épocas e desses compositores, para só depois trabalhar a complicada faceta de transvertê-los em formas compositivas contemporâneas e pessoais: é o que já fizeram compositores tais como Alfred Schnittke (em seu poliestilista Concerto Nº 3 para violino e orquestra), Philip Glass (em seu Concerto No. 2 para violino, cordas e sintetizadores, usando citações de Vivaldi) e Thomas Adés (na peça 3 Studies from Couperin). O registro Música para Cordas termina com o Concerto para Jazz Trio e Cordas, uma peça onde Mehmari mistura a sonoridade jazzístico-contemporânea do seu piano-trio com acompanhamentos e entrelaces de cordas, explicitando nessa peça uma sonoridade mais contemporânea. Ademais, um outro registro que é super indicado para quem quer conhecer um outro lado exploratório do compositor é o álbum Por Sete Vezes (2013), que traz passagens híbridas que misturam sketches, traços, efeitos, fragmentos do instrumental popular, passando pelo erudito e englobando aqui a música eletrônica de forma mais direta através de um pontilhismo de efeitos de teclados e sintetizadores analógicos: a peça, aparentemente inclassificável, foi encomendada para o Balé da Quasar Companhia de Dança e traz a participação do violoncelista greco-brasileiro Dimos Goudaroulis.
O cearense Caio Facó é um dos mais jovens e proeminentes compositores brasileiros a contribuir com a música erudita contemporânea no Brasil. Com apenas vinte e poucos anos, Facó já tinha recebido diversas encomendas e comissões -- inclusive da OSESP -- e já havia transpassado os fronteiras brasileiras para ser comissionado, também, em solo americano. É o que documenta este registro acima intitulado Opus 1 (2019). O álbum traz algumas de suas obras concertantes e orquestrais tais como Aproximações Áureas (para grande orquestra) com a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, As Veias Abertas da América Latina (para violino e orquestra de cordas) com o violinista Emmanuele Baldini e a Orquestra de Câmara de Valdivia (Chile), O Crepúsculo dos Tolos (para orquestra de câmara) com o International Contemporary Ensemble (EUA) e Cangaceiros e Fanáticos (para quarteto de cordas) com o Quarteto de Cordas da OSESP. À primeira audição, a obra de Caio Facó parece se conectar com a história, as temáticas e as estórias do Brasil, mas sem soar por demais sugestiva quanto aos regionalismos e folclores brasileiros como o fazem os compositores mais apegados ao conceito de brasilidade e/ou ao nacionalismo guarnieriano de outrora, mostrando que suas intenções se resumem em conectar sua música com os traços do neorromântico e do neoclássico contemporâneo, apresentando adereços modernistas já bem diluídos em uma nova contemporaneidade, trabalhando bem os contrastes e efeitos e mesclando dissonâncias com consonâncias de uma forma preponderantemente atual. É uma obra que também parece soar como verdadeiras paisagens sonoras do Brasil e das Américas, sem aderir ao convencional folclorismo: caso, por exemplo, da peça Cangaceiros e Fanáticos (para quarteto de cordas) que traz inspirações do livro de mesmo nome do escritor Rui Facó, que é tio-avô do jovem compositor.
Uma outra série de registros que é imprescindível para se conhecer alguns dos principais compositores brasileiros contemporâneos é a série Encomendas OSESP, por meio da qual essa grande orquestra sinfônica brasileira encomenda e comissiona peças inéditas. No site da OSESP há ao menos cinco registros que documentam as obras encomendadas nos anos de 2014, 2016, 2017, 2018 e 2019: estes CDs trazem peças orquestrais de compositores tais como Antonio Ribeiro, Flo Menezes, André Mehmari, Paulo Zuben, Aylton Escobar, Caio Facó, Felipe Lara, Arrigo Barnabé, dentre outros. Esses CDs inclusive podem ser escutados na própria plataforma do site da OSESP, apresentando uma ótima oportunidade para quem quer conhecer esses compositores sem precisar ir ao ardiloso garimpo das buscas por registros fonográficos comerciais -- que, convenhamos, é um tanto complicado quando se trata do âmbito da música erudita contemporânea.
O porto-alegrense Celso Loureiro Chaves é outro dos compositores que esteve em pauta nos últimos anos através da sua peça Museu das Coisas Inúteis — Concerto Para Violino comissionada pela OSESP em 2017 e deste registro que em 2013 lhe fez ser ganhador do Prêmio Açorianos na categoria de Melhor Compositor. O mencionado Concerto para Violino pode ser ouvido no link da série indicada acima que dá de cara com a plataforma da OSESP, onde a orquestra apresenta o registro das suas encomendas. Já este CD traz a peça orquestral Balada para o Avião Que Deixa um Rastro de Fumaça no Céu composta em 1979, mais a peça A Estética do Frio II para piano, clarinete e cordas. A peça Balada para o Avião Que Deixa um Rastro de Fumaça no Céu é interessante porque ela trabalha com sobreposições em contrastes entre os naipes, onde cada instrumento -- e cada naipe de instrumentos -- apresenta suas abstrações uma por cima das outras, criando nuances que se contrapõe e, ao mesmo tempo, se justapõe umas às outras. Já a peça A Estética do Frio II apresenta um pontilhismo pianístico com belos arpejos dissonantes e notas bem destacadas e bem esparsas em meio a muitas pausas enquanto as cordas temperam o plano de fundo com notas longas meditativas, e o clarinete espera para entrar já perto do final da peça. Uma música meditativa e colorida.
O violonista Daniel Murray é um instrumentista que explora tanto o universo do instrumental popular quanto o universo violonístico erudito, com predileção especial no repertório contemporâneo. Seu primeiro CD nesse sentido é o álbum de 2008...universos sonoros para violão e tape..., que traz a direção artística de Lelo Nazário e a interpretação de obras do próprio Lelo, de Mikhail Malt, Silvio Ferraz, Antonio Ribeiro, Sergio Kafejian e Flo Menezes: é um registro que, de certa forma, conecta os traços violonísticos da música popular com a eletroacústica erudita, através de obras singulares apresentadas ao violonista por diferentes compositores de diferentes linguagens. Em 2015 uma nova extensão desses universos sonoros foi apresentada no CD Universo em Expansão, que é um registro que traz a direção musical de Flo Menezes e que apresenta obras que colocam o violão em diálogo com as novas possibilidades eletroacústicas em tempo real e com as possibilidades de manipulação digital por meio do laptop. Neste segundo CD Murray interpreta obras dos compositores Arthur Kampela, Aylton Escobar, Flo Menezes, James Correa, José Augusto Mannis, Marcus Siqueira e Paulo Porto Alegre. Interessante que aqui, no segundo CD, Daniel Murray usa um violão de onze cordas e, em certas peças, ele aplica adições vocais e técnicas estendidas: como na peça Happy Days II onde ele percurte sobre o tampo e as cordas do violão, desliza e raspa as cordas e tempera o molho com sons vocais para dar vazão na peça que é eminentemente experimental. Outra peça que apresenta um caleidoscópio vasto de sons experimentais é Vertiginous Rotation, onde o violonista apresenta esta mesma faceta de técnicas estendidas contracenando com ressonâncias eletrônicas em tempo real. Em paralelo às suas outras abordagens instrumentais, Daniel Murray nos apresenta aqui uma faceta singular rara e exploratória, sendo um dos poucos violonistas a ter essa visão vanguardista e essa abertura para peças contemporâneas que colocam seu instrumento em novas rotas exploratórias com destino a um universo sonoro inovador e pouco explorado.