Me inspirei a escrever este post quando verifiquei a discografia do universo de bandas imaginárias que o rapper, DJ e MC Madlib apresenta a partir do seu Yesterdays New Quintet: mais precisamente na faixa "Two for Strata-East" do álbum Yesterdays Universe (2007) e no álbum A Tribute to Brother Weldon, onde o DJ se inspira em álbuns da Strata-East e na música do organista Weldon Irvine. A Strata-East foi uma das primeiras gravadoras independentes de jazz e conta com um dos catálogos mais significativos dos anos 70. Curiosamente, a gravadora foi fundada por dois músicos negros que não tinham nem a pretensão e nem as condições econômicas ideais para se criar um negócio lucrativo. Ainda assim, a Strata-East Records durou praticamente uma década e, através de uma expertise até então inédita, lançou um volume robusto em torno de 60 títulos até o final da sua trajetória em 1980, sendo que muitos desses álbuns são considerados relíquias, verdadeiros retratos do que melhor foi produzido em termos de jazz nos anos 70 -- mesmo alguns dos seus músicos sendo menos conhecidos ou restritos aos circuitos alternativos e undergrounds da comunidade negra da época. Fundada pelo trompetista Charles Tolliver e o pianista Stanley Cowell no Brooklyn em 1971, a gravadora ficou conhecida por assinar com músicos de jazz que prezavam por estarem engajados com temas ambientados na consciência social, no orgulho racial via movimento Black Power e no conceito do nacionalismo negro. Afinal de contas, os movimentos liderados por Martin Luther King e Malcolm-X nos anos anteriores haviam lhes proporcionado conquistas sem precedentes em termos de direitos iguais, incluindo a histórica revogação das leis segregacionistas do Jim Crow vigentes desde o final do século 19, de forma que isso despertou uma grande tendência de conscientização e orgulho negro em todos os sentidos de comunidade -- social, intelectual e artística. Para tanto, esses músicos mantiveram um range que compreendia do post-bop ao jazz-funk, passando pelo free jazz, spiritual jazz e aproximações com os princípios do pan-africanismo -- e sempre prezando pela originalidade, pela instrumentação preponderantemente acústica e pela sonoridade orgânica, ainda que com alguns registros embebecidos de sintetizadores, guitarras elétricas e baixos elétricos aqui e ali. Dois extremos importantes são os álbuns lançados por Gil Scott-Heron e por George Russell: o álbum Electronic Sonata for Souls Loved by Nature, de George Russell, foi relançado pela Strata-East em 1976 (sendo lançado originalmente em 1969, pela Flying Dutchman) e evoca um certo cromatismo dissonante e uma eletrônica já contemporânea, mas a primazia era ligar essas e outras contemporaneidades com as raízes do orgulho da cultura negra, ou seja, com as raízes do jazz, do blues, da soul music e do gospel, prezando sempre pela sonoridade orgânica; enquanto o álbum Winter in America de Gil Scott-Heron é um exemplo perfeito de registro precursor do hip hop -- com batidas simples de jazz-funk, poesia declamadas, canções soul... -- que invocou uma consciência mais penetrante em relação a muitos dos problemas sociais (drogas, criminalidade, desemprego, o já eminente preconceito institucional...) que assolavam as comunidades negras da época, se tornando o álbum mais popular e vendido da Strata-East. No meio dos extremos desses dois LPs lançados por George Russell e por Gil Scott-Heron -- um representando o estado mais exploratório da arte via cromatismo vanguardista, e o outro representando o estado cultural afro-americano através de um jazz-funk mais pop imbuído de consciência negra -- temos um universo inteiro de estética e sociedade a desvendar, um universo completo da consciência negra imbuída de contemporaneidade, mas também refém dos mais variados problemas contemporâneos pós-segregação.
A Strata-East Records, enfim, além de ser um exemplo de como os músicos negros estavam começando a criar suas próprias associações de arte contemporânea, suas próprias ONG's e gravadoras, também foi pioneira entre os selos independentes em conceder aos músicos total liberdade de produção, de conceitualização e personalização dos álbuns. Por consequência, ao esmiuçarmos os discos catálogo adentro, encontramos muitos exemplos de abordagens inéditas, formações inusuais, misturas inovadoras e ensembles até então incomuns ou pouco usuais: duos de guitarras, um dueto só de piano e bateria sem contrabaixo, um ensemble de cordas com sete contrabaixos, um ensemble só de teclas com sete pianos e sintetizadores, (vide o The Piano Choir na foto acima), uma brass band modernizada, abordagens inéditas de percussão pan-africana, abordagens eruditas amalgamadas com jazz e world music, um continuum variado do spiritual jazz coltraneano... Enfim, a Strata-East representou um curioso continuum acentuado da contemporaneidade afro-americana pós vanguarda sessentista, englobando todas as formas modernas e contemporâneas do jazz embebecidas das suas raízes e seus afluentes -- dos spirituals e blues ao soul, do gospel ao pan-africanismo, do bebop ao jazz-funk, do avant-garde a resquícios da música erudita moderna. A Strata-East, pois, criou um hibridismo contemporâneo de uma riqueza imprescindível para os anos 70, sendo precursora de muitos hibridismos que viriam depois. E sabendo que, por consequência, suas vendagens seriam muito inferiores que as vendagens das gravadoras mainstream, os proprietários Stanley Cowell e Charles Tolliver prezaram pela estratégia de exigir dos músicos produções baratas, locações de estúdios baratos -- mas estúdios com uma boa captação, dada a qualidade dos vinis -- e de lançar tiragens limitadas, mas caprichar na qualidade da edição e design gráfico dos álbuns através de uma ótima exposição de fotos e informações dos músicos nos encartes, tentando assim conquistar os interesses dos aficionados e alcançar uma boa vendagem em cada volume limitado de cópias produzidas. Disc jóqueis de rádios de jazz da época -- principalmente de uma estação de rádio conhecida na época como WLIB, atualmente focada na difusão da música gospel comercial em Nova Iorque -- começaram a tocar as faixas dos LPs lançados pela Strata East, e a gravadora pouco a pouco começou a receber pequenos pedidos, o que ajudou a alavancar suas vendas ainda que com um volume bem limitado de cópias lançadas. Outro fato importante que ajudou na propagação dos LP's da gravadora foi a distribuição por meio do selo de Carla Bley e Michael Mantler, o Jazz Composer's Orchestra Association Inc (JCOA Records), através do qual muitos desses LP's iam parar nas mãos dos hippies e roqueiros brancos aficionados por jazz -- lembrando que Carla Bley e Michael Mantler eram os principais músicos de jazz a manter um público ávido nos circuitos do rock progressivo.
Tudo começa quando em 1967 o pianista e Stanley Cowell e o trompetista Charles Tolliver se conhecem por intermédio de Max Roach, que convidou ambos para formar um novo quinteto: o registro desse grupo está no álbum Members, Don't Git Weary (Atlantic, 1968), que também conta com o saxofonista Gary Bartz. Tornando-se amigos inseparáveis, Cowell e Tolliver criam uma compacta big band chamada Music Inc. e lançam com esse combo o álbum The Ringer (Polydor, 1969) sob o crédito de Charles Tolliver & Music Inc.
Porém, quando eles decidem vender a próxima gravação para a Polydor e outras gravadoras majors, nenhuma dessas gravadoras de renome se interessam -- uma vez que o jazz acústico perdia sua força, e as grandes gravadoras já estavam apostando no rock, na soul music e nas versões mais comerciais do funk --, obrigando os dois músicos a lançar a gravação de forma independente. Eles não desistiram e a persistência e a fé na música que eles vinham produzindo lhes deram a coragem para criar seu próprio selo. O resultado foi o album Music Inc.(1971), primeiro registro da Strata-East. Com a premissa de deixar toda a produção dos álbuns em propriedade de cada músico, Charles Tolliver e Stanley Cowell se inspiraram num estúdio de Detroit chamado Strata, fundado em 1969 pelo pianista Kenny Cox, que abriu o estúdio com a ideia de criar um coletivo de músicos para transmitir gravações de jazz pelo rádio para pessoas que não tinham dinheiro para ir aos shows. Kenny Cox era membro do The Contemporary Jazz Quintet e, através do seu estúdio, lançou ao menos nove gravações sob o selo Strata Records entre 1969 e 1971, tendo como colaborador o poeta e escritor John Sinclair, que ficara a cargo da elaboração do design. Charles Tolliver e Stanley Cowell chamam o designer gráfico Ted Plair para criar o logo em torno da marca e adota, então, o nome Strata-East: como que dizendo que tinham a mesma premissa da Strata de Detroit, porém agora localizada no Brooklyn, em Nova Iorque, mais à leste dos EUA -- daí o termo "East".
As ideias principais de Tolliver e Cowell em seu próprio negócio eram: conduzir produções baratas, produzir uma música contemporânea engajada nas aspirações do Black Power da época sem nunca se descolar do aspecto do jazz mais genuíno, evidenciar um equilíbrio entre arte e música contemporânea com a cultura negra, deixar cada musico livre para elaborar sua produção e compor seus temas, lançar LP's com design gráfico artesanal e ao mesmo tempo moderno e rico em informação, e lançar edições limitadas para não estourar o orçamento, mas ao mesmo tempo caprichar na prensagem dos vinis e na edição final do álbum. Quando alguns músicos que não aderiram à música comercial da época -- e por consequência eram ou seriam rejeitados pelos produtores das majors -- ficaram sabendo do projeto, logo vislumbraram a possibilidade de lançar suas próprias produções pela Strata-East: e logo de cara, o músico-produtor assinava um acordo bem diferente dos contratos propostos pelas majors, onde agora a diretriz era cada músico ser responsável por elaborar suas produções e conceitualizações, entregar um material gravado e pagar um custo inicial de fabricação, enquanto o selo bancava o custo final da prensagem e edição do álbum e corria atrás da distribuição e das vendas -- um conceito inédito de negócio que Tolliver e Cowell chamaram de "condomínio". No final de tudo, distribuía-se o faturamento entre o músico-produtor e o selo. Enfim, não foi um negócio que Charles Tolliver e Stanley Cowell criaram para gerar lucro e tornarem-se ricos, mas por praticamente 10 anos o selo foi autossustentável o suficiente para contribuir com o cenário cultural da época e entrar para a história da música. O resultado foi que, por terem essas características, esses registros de edições limitadas acabaram tornando-se cult e preciosos aos olhos de colecionadores, de forma que atualmente qualquer vinil da Strata-East, com boa qualidade de conservação, é vendido a preços bem salgados nas plataformas especializadas. Inspirados, enfim, pelos estúdios e organizações independentes -- tais como o Strata Studio de Detroit, o Black Artists Group de St. Louis, o Studio RivBea na Downtown de NYC, e a AACM (The Association for the Advancement of Creative Musicians) de Chicago --, Charles Tolliver e Stanley Cowell criaram no Brooklyn uma associação robusta de músicos em torno de si: músicos como Clifford Jordan, Brother Ah, Max Roach, Pharoah Sanders, Cecil Payne, Gil Scott-Heron, Charles Brackeen, Charlie Rouse, Dick Griffin, Cecil McBee, Shirley Scott e Sonny Fortune são alguns dos que lançaram álbuns pelo selo, considerando que alguns mestres veteranos praticamente retomaram a carreira pela gravadora e alguns dos grandes jovens músicos dos anos 70 lançaram seus primeiros álbuns por ela. Uma curiosidade sempre lembrada foi o fato do contrabaixista Bill Lee, pai do famoso cineasta Spike Lee, ter trabalhado por muitos anos em registros da Strata-East, o que nos leva a torcer para que num futuro breve o cineasta resolva empreender-se num documentário que conte a história da gravadora inserida naquele grande contexto e apogeu do nacionalismo afro-americano.
Por algum tempo "esquecida" e fora dos catálogos nos anos 80, a partir de 1989 Charles Tolliver decide reeditar ao menos 25 gravações em CD -- reedições que, enfim, chegam ao mercado no início dos anos 90 numa tiragem bem limitada, mas capaz de chamar atenção de muitos revisionistas. Esses CD's foram lançados pelo selo Bellaphon Records e, ainda que mais acessíveis que os LP's raros da Strata-East, eles só podem ser encontrados nos circuitos de sebos e raridades com certa dificuldade. Ainda em meados dos anos 90 os LP's da Strata-East foram pouco a pouco sendo resgatados e reconhecidos como uma fonte preciosa do jazz setentista através de um verdadeiro revival que os músicos e DJ's da nova geração empreenderam em busca do reconhecimento e valorização dos clássicos, da cultura do jazz e das inovações deixadas pelos mestres. E também, no cenário inglês houve uma verdadeira tendência da cultura do rare groove -- DJ's, músicos, rádios piratas e colecionadores de vinis, produtores, entre outros -- que tinha como premissa valorar, compilar e remixar esses clássicos perdidos. Em 1994, o selo inglês Soul Jazz Records, por exemplo, lançou uma compilação chamada Soul Jazz Love Strata-East editada em CD e em dois LP's de luxo. Em seguida, em 1997, foi a vez da label Universal Sound -- uma subsidiária da Soul Jazz Records -- lançar uma outra compilação de faixas dos LP's da Strata-East chamada Strata-2-East. DJ's, produtores e rappers também usaram vários samples dos discos da Strata-East: o produtor Q-Tip sampleou partes do álbum The Heath Brothers (1976) na faixa "One Love" do aclamado álbum Illmatic (Columbia, 1994) do rapper Nas; e o produtor Madlib, como já citado no início desse post, faz um tributo ao histórico selo na faixa "Two for Strata-East" de Yesterday Univese (Stones Throw, 2007), um dos seus inúmeros álbuns com bandas imaginárias nos meandros do hip hop jazz mais instrumental. A cultura dos sites, blogs e magazines eletrônicas também aumentaram o interesse dos jazzófilos, musicólatras e revisionistas das novas gerações na história da Strata-East e sua criativa produção musical. Da mesma forma, subsidiárias e selos undergrounds americanos, europeus e japoneses especializados em reedições com tiragens limitadas -- tais como Charly Records, Inner City Records, Pure Pleasure, Arc Records, P-Vine, Everland Music...entre tantos outros -- passaram e relançar esses títulos clássicos nos novos formatos de mídias remasterizadas. Nos últimos anos, o pianista Stanley Cowell e o trompetista Charles Tolliver passarram a ser convidados para uma série de entrevistas em magazines e programas de rádio, vide a entrevista que eles deeram para o para o produtor e DJ Gilles Peterson na Rádio BBC, de Londres. Com o crescimento de público, eles também resgataram um coletivo de veteranos que passaram pela Strata-East e passaram a se apresentar nos EUA e na Europa em celebração ao crescente interesse que as novas gerações demonstram pelo catálogo do selo. Em 22 de março de 2015, por exemplo, Gilles Peterson -- desde sempre um colecionador e entusiasta do rare groove -- empreendeu um concerto celebrativo no Barbican Centre, Londres, com uma banda formada por músicos remanescentes da Strata-East mais convidados: tendo Charles Tolliver (trompete), Stanley Cowell (piano), Jean Carne (vocais), Cecil Mcbee (contrabaixo), Alvin Queen (bateria) e Billy Harper (sax tenor). Em 17 de dezembro de 2020, Stanley Cowell, com 79 anos, morre no Hospital Bayhealth em Dover, Delaware, de choque hipovolêmico, deixando um grande legado na história do jazz.
Abaixo, segue 30 registros -- metade do catálogo, portanto -- que terminam de contar a história dessa preciosa fonte de jazz chamada Strata-East, e sob os quais deixo alguns comentários e informações breves sobre as gravações e os respectivos músicos. Além de mostrar os principais discos dos músicos mais conhecidos que passaram pela gravadora, a ideia também é mostrar os discos de músicos menos conhecidos, enfatizando em ambos as peculiaridades e os elementos multifacetas que fizeram dessa gravadora um dos mais importantes núcleos dos anos 70 através do quesito de abordar todas as formas de jazz contemporâneo em abordagens, produções e arranjos hiper criativos. Existem ao menos quatro importantes álbuns os quais não abordo abaixo, mas os abordarei posteriormente em posts de outras temáticas: Musa: Ancestral Streams de Stanley Cowell, Winter in America de Gil Scott-Heron, Electronic Sonata for Souls Loved by Nature de George Russell e Mutima de Cecil McBee. Clique nas capas dos álbuns para ouvi-los. Ouça também a playlist de faixas selecionadas no Youtube.
Music Inc. (1971). Gravado com a big band que o trompetista Charles Tolliver e o pianista Stanley Cowell formaram em finais de 1970, trata-se do álbum que inaugura a Strata-East. Apesar de ainda ser um registro embrionário da lendária gravadora -- não evidenciando, de imediato, toda a riqueza criativa que viria em seguida --, aqui já presenciamos uma visão de big band um tanto contemporânea, com todas as composições e arranjos de autoria de Tolliver. A big band foi formada em torno de um quarteto que Charles Tolliver já mantinha com Stanley Cowell (piano), Cecil McBee (contrabaixo) e Jimmy Hopps (bateria): a eles juntaram-se outros músicos que fariam parte do plantel da Strata-East nos anos seguintes: entre eles, os trombonistas John Gordon e Dick Griffin, e os saxofonistas Jimmy Heath e Clifford Jordan. Arranjos ricos e interações telepáticas entre os naipes de saxofones, trompetes, trombones e tuba é o que podemos apreciar aqui.
Land of the Blacks (1972). Este é o primeiro dos dois únicos álbuns que o percussionista Mtume Umoja gravou para a Strata-East antes de rumar para uma carreira fincada no R'n'B mais crossover e na disco music, também chegando a atuar como produtor de sucesso de artistas como Stephanie Mills e Phyllis Hyman. James Mtume -- ou Mtume Umoja, seu nome adotivo -- está presente em pelo menos sete dos álbuns de jazz fusion mais experimentais de Miles Davis, além de ter participado de álbuns de Gato Barbieri, Art Farmer, Jimmy Heath, Eddie Henderson, Lonnie Liston Smith, dentre tantos outros. O álbum foi gravado no The East, no bairro de Clinton Hill, Brooklyn, um dos locais-sede do nacionalismo negro dos anos 70. Para o registro o percussionista junta um coletivo de músicos, vocalistas e poetas -- ao qual ele dá o nome de Alkebu-Lan -- e deixa a música correr solta entre temas spirituais, funk grooves e livres improvisações, além de confusões vocais e poesias declamadas com forte apelo nas temáticas do Black Power. Com uma percussão afro e uma instrumentação densa misturada aos vocais, Mtume Umoja é acompanhado por Carlos Garnett (sax tenor, flauta), Leroy Jenkins (violino), Gary Bartz (sax alto, sax soprano) Stanley Cowell (piano), Buster Williams (contrabaixo), Billy Hart (bateria), Joe Lee Wilson, Eddie Micheaux e Andy Bey (vocais), além da participação dos poetas Yusef Iman e Weusi Kuumba. Freejazzístico!
Sound Awareness (1973). Robert Northern -- mais conhecido como Broher Ah -- foi um trompista que participou mais extensivamente da Sun Ra Arkestra, mas também colaborou com John Coltrane, Donald Byrd, Roland Kirk, McCoy Tyner e com a Jazz Composers Orchestra de Carla Bley, entre tantos outros. Em 1969, Brother Ah formou seu próprio grupo, o Sound Awareness Ensemble, grupo com o qual empreenderia suas misturas musicais. Esse é seu primeiro registro da carreira e aqui ele nos apresenta duas peças extensas, uma em cada lado do álbum: as peças “Beyond Yourself (The Midnight Confession)” e “Love Piece”. Esse registro conta com as notáveis colaborações de baterista Max Roach e seu ensemble de percussão M'Boom -- dando aqui uma tratativa mais africana --, além de explorações vocais em formatos variados, incluindo um coral. A peça “Beyond Yourself” é uma composição em sete partes que sinestesicamente descreve a estória da luta de um homem que tenta abandonar as drogas para tornar-se um monge: aqui é interessante o uso de efeitos eletrônicos reverberantes meio ao estilo space-age de Sun Ra. Brother Ah mantinha uma dupla carreira como músico de jazz e músico erudito -- tendo tocado com a Metropolitan Opera Orchestra, com a Radio City Music Hall Orchestra e várias orquestras ligadas ao teatro da Broadway -- e a sonoridade do álbum traz, além das influências dos corais acapella, uma amálgama de elementos advindos das suas predileções pelas percussões africanas e orientais, das suas experiências enquanto sideman de Sun Ra e da sua experiência como músico erudito.
Re: Percussion (1973). Este é o primeiro de cinco álbuns que o baterista Max Roach -- um dos pais do bebop, um dos modernizadores do jazz e do avant-garde -- empreendeu com seu inovador ensemble M'Boom formado apenas por instrumentos de percussão: bateria, vibrafone, marimba, xilofone, tímpanos e kits e apetrechos de percussão afins (tablas, cabaças, sinos, gongos, congas, tambores e etc). Graduado em percussão erudita pela Manhattan School of Music e já tendo gravado um álbum no final dos anos 50 com a Boston Percussion Ensemble -- ensemble ligado à Boston Symphony Orchestra --, Max Roach funda aqui o primeiro grupo de percussão formado apenas por músicos de jazz e primeiro ensemble com o intuito de fazer uma ponte entre as percussões do jazz, da música erudita e das músicas orientais e africanas. Os próximos álbuns do M'Boom, porém, seriam lançados pela Columbia, Soul Note e Enja Records. Essa faceta mais exploratória de Max Roach já foi abordada aqui no blog.
Izipho Zam (My Gifts) (1973). Gravado por Pharoah Sanders e um coletivo criativo de músicos formado exclusivamente para este registro, o conteúdo musical de Izipho Zam (My Gifts) é datado, na verdade, de 14 de Janeiro de 1969. Talvez pela instrumentação incomum, ou pela ferocidade freejazzística faraônica imbuídas de consciência racial -- ou ambos --, nenhuma gravadora tenha aceitado lança-lo até que em Pharoah Sanders conseguisse um aval de Cowell e Tolliver. O álbum traz mostras de um free jazz denso embebecido de spiritual music pós-coltraneano, percussão proliferada e arranjos instrumentais carregados, com Pharoah Sanders tendo a colaboração de um coletivo compacto formado por Sonny Fortune (sax alto, flauta), Lonnie Liston Smith (piano), Sonny Sharrock (guitarra), Sirone e Cecil McBee (contrabaixos, Billy Hart (bateria), Chief Bey (bateria e percussão africana), Nat Bettis e Tony Wiles (kits de percussão vários), Leon Thomas (vocais) e Howard Johnson (tuba). Sendo um dos registros mais conhecidos e reconhecidos da Strata-East, recentemente um artigo do New York Times listou-o como um dos principais álbuns do movimento "Black Jazz Liberation" dos anos 60 e 70. A edição do álbum foi produzido na Strata-East pelo saxofonista Clifford Jordan, um dos nomes centrais na gravadora.
Message from Mozambique (1973)/ Chapter Two: Nia (1974). Apesar da pouca informação a respeito dessa fase inicial do grupo Juju, esses álbuns se tornaram alguns dos registros mais cult da Strata-East -- especialmente o primeiro --, sendo relançados por várias netlabels nesses últimos anos. JuJu foi um sexteto de percussão liderado pelo saxofonista Plunky Nkabinde que inicialmente tinha como premissa inserir a percussão africana dentro da abordagem da free music e do spiritual jazz bem politizado, com uma carga de ferocidade não menos que chamativa. Para os adeptos do free jazz, esses registros soarão como uma versão mais raivosa dos álbuns de Pharoah Sanders, embora com muitas partes melódicas evocando o spiritual jazz mais nostálgico. Posteriormente, Nkabinde reposiciona seu grupo para uma abordagem mais funk, chamando-o de Oneness Of JuJu e The Space Rangers, versões com as quais emplacaria alguns temas de sucesso mais palatáveis, como o "Every Way But Loose" que se tornou um single conhecido nos EUA e Reino Unido. O nome Juju vem de um ritmo tradicional africano chamado juju, ligado às tradições tribais yourubas.
Rhythm X - The Music of Charles Brakeen (1973). Desenvolvendo um estilo próprio de tocar saxofone, Charles Brackeen é um daqueles tesouros escondidos do free jazz -- atualmente considerado um dos "unsung heroes" desse subgênero. Se destacando entre os freejazzers da segunda metade dos anos 60 -- por seu estilo idiossincrático com forte influência dos tons harmolódicos de Ornette Coleman --, em 1968 Brackeen grava este excelente exemplar de free jazz ao lado dos músicos remanescentes do Ornette Coleman Quartet. O álbum, porém, só foi lançado em 1973 pela Strata-East, sendo este tanto seu debut como o único álbum pela gravadora. Entre atos e hiatos, o distinto saxofonista colaborou com Don Cherry no album Relativity Suite (JCOA, 1973), com Paul Motian nos álbuns Dance (ECM, 1977) e Le Voyage (ECM, 1979), e participou do Decoding Society, grupo de free-funk liderado por Ronald Shannon Jackson. Posteriormente, em meados dos anos 80, Charles Brakeen retomaria sua carreira como líder lançando três distintos álbuns pelo selo Silkheart Records. Em Rhythm X, Charles Brackeen (sax tenor e sax soprano) vem acompanhado de Don Cherry (trompete), Charlie Haden (contrabaixo) e Ed Blackwell (bateria).
Glass Bead Games (1973). Advindo do hard bop, Clifford Jordan se tornaria um dos principais e mais essenciais saxotenoristas do post-bop. E este registro -- documentado em álbum duplo -- não é apenas um dos registros mais legendários da sua discografia, mas um clássico do jazz setentista. No repertório, Clifford Jordan junta seus próprios originais com temas de John Coltrane e dos músicos que lhe acompanham aqui nessa gravação -- Stanley Cowell, Cedar Walton, Billy Higgins, Sam Jones e Bill Lee --, nos deixando um registro do melhor post-bop imbuído de atmosferas bluesy, soulful e áureas espirituais coltraneanas. Uma incursão pelas formas da linguagem bebop.
Capra Black (1973). Estreia do também seminal saxtenorista Billy Harper, Capra Black é tido como um dos principais registros com teores do "black consciousness movement" nos anos 70. Com um sexteto evocando o fervor espiritual com arranjos melodiosos de metais, mais a adição de vozes que atuam em torno da temática racial, Billy Harper (sax tenor, e voz) é acompanhado por Jimmy Owens (trompete), Dick Griffin (trombone), Julian Priester (trombone), George Cables (piano), Reggie Workman (contrabaixo) e pelos bateristas Billy Cobham, Elvin Jones, Warren Smith, mais a adição das vocalistas Barbara Grant, Gene McDaniels, Laveda Johnson e Pat Robinson. O álbum é agradável e traz atmosferas do hard bop, com tons claros de blues e spiritual jazz. Contudo, as duas últimas faixas, mais extensas, trazem a necessidade de uma audição mais focada: nessas faixas temos a inserção de um coral de quatro vozes acapella -- mais a voz do próprio Billy Harper -- que dão o tom mais celebrativo em torno de temáticas relacionadas à consciência negra. Os solos roucos, rasantes e matadores do sax tenor de Billy Harper também evocam uma certa áurea pós-Coltrane. Saxofonista único!
A Spirit Speaks (1974). Combinando elementos do jazz, gospel, soul e blues e do canto lírico -- vide a límpida voz de soprano da vocalista Grace Lee --, este álbum é um registro vivo da reunião da família Lee: aqui o contrabaixista Bill Lee é acompanhado dos seus filhos o Cliff Lee (flugelhorn), Consuela Lee e Grace Lee (canto), todos sendo acompanhados pelo baterista Billy Higgins. O grupo é denominado como The Descendants of Mike and Phoebe e este é seu único registro efetivamente lançado. Bill Lee coleciona uma série de participações em álbuns de terceiros, mas ficaria mais conhecido como sendo o pai do polêmico cineasta Spike Lee, quando este passou a colecionar diversos prêmios e polêmicas por seus filmes. Na época dessa gravação o pequeno Spike estava com mais ou menos 10 anos, mas vê-se que já desde tenra idade que as influências do pai e dos seus irmãos lhes foram cruciais. Posteriormente, o próprio Bill Lee participaria como compositor ou diretor musical das trilhas sonoras dos filmes do filho Spike.
Two Is One (1974). Charlie Rouse, conhecido por fazer parte do clássico quarteto do pianista Thelonious Monk, já era um veterano saxtenorista na casa dos 50 anos de idade quando esse excelente álbum foi gravado. Sendo um dos saxtenoristas legendários do hard bop, Rouse vinha de um hiato de onze anos sem lançar nenhum álbum expressivo como líder. Aqui, pois, o jovem veterano inova com um jazz-funk acústico repleto de grooves diferentões e uma instrumentação mais variada -- com detalhe para a participação do violoncelista Calo Scott e do uso do clarinete baixo (clarone) pelo saxtenorista. Nesse álbum Charlie Rouse tem a companhia revezada dos guitarristas George Davis e Paul Metzke, do violoncelista Calo Scott, dos contrabaixistas Martin Rivera e Stanley Clarke, do baterista David Lee e dos percussionistas Azzedin Weston (congas) e Airto Moreira (percussões variadas). A sonoridade da guitarra elétrica aliada aos grooves sincopados de jazz-funk é sempre uma obra de arte a se ouvir: e é aqui que temos um dos grandes exemplos dessa abordagem nos anos 70, além dos improvisos de melodia bluesy emitidos pelo sonoro sax tenor de Charlie Rouse. A participação do percussionista brasileiro Airto Moreira é outro ponto alto da gravação.
The Eighth Wonder (1974). Conhecido como um dos melhores trombonistas da sua época por seu som incendiário reconhecido tanto nas bandas de jazz de Roland Kirk quanto nas bandas de funk de James Brown e vários artistas da Motown, incluindo The Temptations e Nancy Wilson, Dick Griffin é um dos nomes do trombone a nunca perder de vista. Tecnicamente, Dick Griffin é dotado de uma assustadora capacidade de emitir sons multifônicos -- emitir um sopro com dois ou três harmônicos simultâneos -- e de empregar a chamada respiração celular, além de uma sonoridade forte, melodiosa e bem afinada. Esse álbum é uma mistura de melodias soul, temas de jazz-funk e evocações mais palatáveis do spiritual jazz, mas repleto de improvisos bem proliferados -- com certa inclinação, aliás, para a influência das melodias cantadas pelos artistas da Motown os quais ele acompanhava, mas com improvisos que chegam a beirar a free music. Dick Griffin é acompanhado aqui por Sam Rivers (sax tenor), Rahn Burton (piano), Cecil McBee (contrabaixo), Freddie Waits (bateria), Warren Smith (vibrafone) e Leopoldo Fleming (percussão).
Earth Blossom (1974). Baterista multifacetado -- mais conhecido por atuar ao lado de post-boppers e freejazzers tais como Abdullah Ibrahim, Billy Bang, David Murray, Henry Threadgill e Mal Waldron, entre outros -- John Betsch tem neste registro seu único testemunho musical autoral. Particularmente, considero este álbum como um dos cinco melhores álbuns da Strata-East e, consequentemente, um dos melhores álbuns dos anos 70. Gravado com um grupo de músicos desconhecidos de Nashville -- a quem ele nomeia de The John Betsch Society -- este álbum soa musicalmente rico porque ele mistura todas as influências que o baterista sofrera até então, passando por vários estados e cidades e tocando com vários músicos de diferentes expressões: ou seja, até então ele já havia tocado com grupos locais de Jacksonville, na Flórida, sua cidade natal; já havia estudado com Max Roach e Archie Shepp, em Massachusets; já havia se estabelecido no cenário do West Coast; já havia participado de grupos de jazz-rock e do grupo de world fusion chamado Oregon (com Colin Walcott, Glen Moore, Paul McCandles e Shippa Billy Chilf) e vinha de uma incursão intensiva com o free jazz mais incendiário de Nova Iorque. A música registrada neste álbum é considerada uma amálgama de todas essas influências, documentando a volta de John Betsch para as terras áridas do Oeste, com ele se reunindo com esses músicos brancos e negros de Nashville: aqui temos resquícios do post-bop, free jazz, percussões proliferadas, country music, world fusion e até certa influência roqueira do Flower Power hippie -- apesar de ser um registro documentado por uma gravadora aliada ao Black Power. Mais que essencial!
In Harmony (1974). Este álbum é um clássico imprescindível do gênero jazz-funk e amálgamas afins -- um dos registros que costumam deixar os rappers, MC's e DJ's mais apegados ao jazz boquiabertos. Mas apesar deste exemplar da Strata-East ser muito bom (!), é preciso lembrar que Weldon Irvine já vinha lançando álbuns com grooves inovadores e cativantes antes pelas gravadoras Nodlew e RCA Records. Não à toa, a partir dos anos 2000 diversos tributos, documentários e homenagens foram feitos para lembrar suas contribuições -- até então não reconhecidas dentre o público mais amplo -- em termos da evolução do groove: rappers, e grupos tais como Madlib, Mr. Dibbs, Breakestra e Q-Tip são alguns dos quais usaram samples dos seus álbuns em produções de hip hop e R'n'B. No caso de Madlib, o DJ e produtor lançou um álbum inteiro em tributo ao organista, vide o álbum A Tribute to Brother Weldon. O organista e pianista Weldon Irvine foi, enfim, um contemporâneo do seu amigo organista Richard Groove Holmes e um dos sidemans inseparáveis de Nina Simone, além de ser afetivamente ligado ao gospel. Com uma sensibilidade jazzy e funky fora de série, nos anos 70 os álbuns de Weldon Irvine passam a representar alguns dos exemplares mais excelentes nas misturas amalgamadas de bebop, funk, gospel e soul -- caso deste exemplar da Strata-East. Admirado pelos Djs de hip hop, a partir de finais dos anos 90, Weldon Irvine -- na época já um veterano -- passa a ser convidado para colaborar com artistas de hip hop: caso do álbum Mos Def & Talib Kweli Are Black Star (Rawkus/ EMI, 1998). Aqui estamos diante de um álbum essencial: com grooves variados, atmosferas variadas e solos cativantes de guitarra elétrica, trompete, piano, orgão...!
The Waterbearers (1974). Os Cosmic Twins é um curioso duo de piano e bateria -- sem contrabaixo. Em termos de anos 70, época onde quase tudo de experimentação já havia ocorrido, não me arrisco a dizer que este é o primeiro combo de piano e bateria da época. Mas podemos dizer que ainda era um dueto pouco usual. O pianista é Ron Burton e o baterista é John Lewis. Ron Burton tem certa fluência jazzística mais aproximada entre o post-bop e o free jazz -- lembrando um pouco McCoy Tyner --, tendo tocado com Roland Kirk nos anos 60, George Adams nos anos 70 e com Jemeel Moondoc nos anos 80. O baterista John Lewis -- frequentemente confundido com o pianista de mesmo nome -- já é um músico mais desconhecido, mas não completamente: há registros seus com o saxofonista Alex Foster e com o seu John Lewis Trio, formado com o saxofonista James Spaulding, entre outros. Curiosamente, a sinergia do duo tocando um post-bop com tons de spiritual jazz é tão aguçada, que praticamente não sentimos a falta de um contrabaixo -- há, claro, um excelente uso das teclas graves do piano para preencher esse vácuo harmônico.
First Impressions (1974)/ The World of the Children (1977). Esses dois álbuns do sax-altoísta Shamek Farrah são dois dos mais raros e espetaculares registros da Strata-East. Em 2018, o LP First Impressions foi relançado numa edição remasterizada num vinil de 180 gramas pelo selo Pure Pleasure, mas os LP's originais são muito difíceis de se encontrar para comprar -- e se encontrar, os valores são os olhos da cara e os dedos das mãos (como diríamos em expressão popular). O fato triste é que tanto Shamek Farrah quanto os sidemans que o acompanham nestes registros sumiriam de cena nos anos seguintes -- problemas financeiros e problemas com drogas seriam as causas principais desses sumiços, de acordo os revisionistas e colecionadores. Dos sidemans que participam em First Impressions, o contrabaixista Milton Suggs foi o único que continuou ativo, gravando com Elvin Jones, Roland Kirk, Byron Morris & Unity e Famadou Don Moye, só se desligando das cenas do jazz no final dos anos 80. Milton Suggs, aliás, é reconhecido -- tanto aqui como em outras gravações com esses músicos citados -- por sua fluência entusiasmante na condução de grooves sincopados e ostinatos. Aqui em First Impressions, o contrabaixista aplica uma tratativa de linhas de baixo um tanto flexível junto a percussão proliferada e aos clusters com tons espirituais do piano, dando luz a um post-bop com improvisos e desenvolvimentos bem interessantes. O contrabaixo groovy e sincopado de Milton Suggs, aliás, foi lembrado em 2018, quando o DJ e produtor japonês Toshio Matsuura fez uma releitura da faixa "Kitty Bey" do LP Blow Thru' Your Mind (E.P.I, 1974) lançado por Byron Morris & Unity's, vide o CD Loveplaydance: 8 Scenes from The Floor, lançado pela gravadora Brownswood Recordings de Gilles Peterson. Ademais este segundo LP, The World of the Children, como o próprio título diz evoca o espírito de uma criança e mostra um spiritual jazz mais festivo e alegre em torno dos clusters e improvisos "quase free" do piano de Sonelius Smith.
Genesis (1974). O trompetista Charles Sullivan é um daqueles musician's musician do post-bop: ou seja, um solista talentoso que -- ou por preferência, ou por dificuldades, ou por destino... -- seguiu uma carreira mais como sideman de outros grandes músicos do que como líder, não faltando-lhe talento para uma carreira solo repleta de muitos bons álbuns autorais. Conhecido nos anos 70 pela alcunha de Kamau Adilifu -- uma vez que muitos músicos negros trocavam de nomes ao aderir às religiões e aos ideais islâmicos, orientais e africanos --, Charles Sulivan continuou relativamente ativo nas últimas décadas até recentemente: sendo possível vê-lo e ouvi-lo em registros com Kenny Barron, Sonny Fortune, Yusef Lateef, Sam Rivers, Roswell Rudd, Woody Shaw e McCoy Tyner. Como leader, Charles Sulivan tem apenas quatro álbuns lançados, sendo este pela Strata-East seu debut e sua obra-prima. Aqui neste álbum ele é acompanhado por Sonny Fortune no sax alto, Dee Dee Bridgewater nos vocais, Billy Hart na bateria, Stanley Cowell no piano e Alex Black no contrabaixo, além de participações do contrabaixista Anthony Jackson, do baterista Alphonse Mouzon e do pianista Onaje Allen Grumbs. Juntando ao fato de Charles Sulivan ser um ótimo frasista em torno da linguagem bebop, aqui ele explora seus originais em torno das variabilidades do jazz-funk, post-bop, baladas e até voos mais livres. Essencial para quem gosta de solos de trompete.
The Sojourner (1974). Considerado um dos mais raros registros da Strata-East -- um exemplar perfeito do spiritual jazz com cantos e vocalizes soul --, este álbum nos mostra uma mistura incandescente de saxofones, teclados, guitarras, percussão e vozes: a cantora é Beatrice Parker e os músicos são Khaliq Abdul Al Rouf no sax, Bevin Turnbull nos teclados (piano, Fender Rhodes), Mashujaa Aliye Salamu na guitarra, Leroy Seals no contrabaixo e Fred Kwaku Crawley se expressando em uma série de instrumentos de percussão. Juntos, esses músicos formavam o distinto The Ensemble Al-Salaam, do qual atualmente quase não se tem informações, a não ser as informações dispostas no encarte do próprio LP. Aqui temos um dos mais híbridos registros da Strata-East: com canções soul, timbres cósmicos de Fender Rhodes, percussões em ebulição, improvisos freejazzísticos e tons espirituais.
Celebrations and Solitudes (1974). Álbum emblemático composto apenas por poesia declamada e contrabaixo. Um dos retratos mais poderosos e reflexivos da época, com a poetisa Jayne Cortez abordando assuntos diversos tais como os problemas sociais e econômico dos negros, a violência policial, o linchamento de negros em Nova York, a conscientização cultural em torno das próprias raizes do blues e do jazz e etc. Jayne retrata, inclusive, a triste história de um policial que deu um tiro fatal em um menino de dez anos de idade chamado Clifford Glover enquanto estava à paisana, em 1973, crime pelo qual o policial foi absolvido de todas as acusações. Apresentando uma crítica poética penetrante a essas e outras formas de discriminação, preconceito e violência, Jayne Cortez apresenta aqui um dueto com o célebre contrabaixista Richard Davis, que participou de gravações seminais com músicos como Andrew Hill, Eric Dolphy e Rahsaan Roland Kirk. A poetisa e ativista Jayne Cortez foi casada com Ornette Coleman por dez anos e é mãe do baterista Denardo Coleman. Ela tambén foi ativamente ligada ao Black Arts Movement (BAM), fundado por Amiri Baraka (aka LeRoi Jones).
One for Me (1974). A organista Shirley Scott -- um dos nomes seminais e imprescindíveis do orgão, do hard bop e soul jazz -- já tinha uma carreira afamada com vários álbuns lançados, tanto como sidewoman de vários músicos de jazz e artistas pop tais como Ray Charles e Aretha Franklin, como também uma carreira sólida como líder de banda. Tendo gravado álbuns pelas gravadoras Impulse e Prestige, ela é frequentemente lembrada por suas parcerias com os saxtenoristas Eddie “Lockjaw” Davis e Stanley Turrentine. Neste álbum, porém, a organista volta-se exclusivamente para seu interior, tentando lançar aqui um testemunho mais pessoal, com suas próprias composições e um jeito mais pessoal de tocar. Lembrando que a Strata-East foi, enfim, uma gravadora onde os músicos realmente puderam estar livres para se exporem de forma mais pessoal, sem se importar com os produtores das gravadoras mainstream que cerceavam a liberdade artística -- e até a liberdade individual do o que vestir, o que falar, como proceder e etc -- em detrimento dos preconceitos da época e em troca do comercialismo. No encarte do álbum, a organista explicita seu sentimento para com este seu registro: "All of the music recorded in this album is both personal and very purposeful to me, because it is the first step toward honesty about what and how I want to play. I’ve done a lot of other albums, a lot of different ways for a lot of different people and now, with the help of the Creator, in whom all things are possible, I have done one for me too". A produtora deste álbum é Maxine Gordon, amiga íntima de Shirley Scott à época, e os sidemans são o saxtenorista Harold Vick e o baterista Billy Higgins. Também participa Jimmy Hopps no cowbell. E além do orgão, Shirley Scott também faz uso do melotron, uma espécie de teclado polifônico mais associado às viagens sônico-espaciais de Sun Ra.
Don't Look Back (1974). O saxtenorista Harold Vick é um daqueles excelentes músicos a surgir nos anos 60 e 70 dos quais só sobraram dois ou três registros inseridos na categoria "cult". Contudo, o saxtenorista não chega a ser um músico esquecido. Ainda que nem sempre lembrado entre os nomes mais afamados do sax tenor -- Rollins, Coltrane, Mobley, Rouse, Coleman, Ammons, Griffin, Shepp, Ayler e etc --, nos anos sessenta Harold Vick lançou registros vibrantes pelos selos Blue Note, Muse e RCA Victor. Além dos seus álbuns autorais, Vick apareceu em ao menos duas dezenas de álbuns diferentes como sideman e foi membro fixo da banda residente do Apollo Theatre, bem como membro fixo de um grupo chamado Negro Ensemble Company. No início dos anos 70, porém, Vick passa a atuar mais como sideman, trabalhando com músicos e cantores soul, chegando a ser músico fixo das bandas de Aretha Franklin e King Curtis. Esse álbum traz, então, um retorno do saxtenorista para a tarefa de lançar um testemunho autoral, emitindo aqui uma sonoridade híbrida de todas as experiências que ele teve nessas estéticas do soul jazz, hard bop, funk e afins. Don't Look Back traz Vick no saxofone tenor, flauta e clarinete baixo, Joe Bonner no piano, George Davis na flauta alto, Virgil Jones no trompete, Sam Jones no baixo, Billy Hart na bateria e Jimmy Hopps na percussão.
Handsscape 2 (1975). Trata-se do segundo álbum do curioso "ensemble" chamado The Piano Choir composto pelos pianistas e tecladistas que faziam parte do plantel da Strata-East na época: Ron Burton, Stanley Cowell, Nat Jones, Hugh Lawson, Webster Lewis, Harold Mabern e Sonelius Smith. O primeiro álbum é interessante e fica aqui como uma indicação indireta, mas o segundo álbum é sonoricamente mais expansivo. Juntando sete pianos acústicos (!!!) e mais teclados e sintetizadores analógicos da época, esses músicos formam uma espécie de "ensemble" composto apenas por teclas -- algo inédito na história do jazz. Para temperar o molho lisérgico de teclas acústicas e eletrônicas, Stanley Cowell -- proprietário da Strata-East ao lado de Charles Tolliver e líder deste The Piano Choir -- escala os percussionistas Mtume, Jimmy Hopps e John Lewis. Inexplicavelmente fantástico e inédito!
Colors (1975). Depois do curioso "ensemble de teclas" acima, não podia faltar o resgate contemporâneo de uma tradicional "brass band" -- uma banda de metais com trompetes, trombones, trompas (ou flugelhons) e tubas. As brass bands foi um dos formatos que seriam frequentemente modernizados nos anos 80, 90 e 2000 por diversos músicos tais como os trompetistas Lester Bowie, Steven Bernstein, Dave Douglas e o trombonista Ray Anderson. No entanto, vemos aqui, com esta The Brass Company, que também neste formato a Strata-East foi pioneira na modernização do mesmo, um formato proveniente de New Orleans tão tradicional na história do jazz. Aqui estamos diante de uma brass band com os trompetistas Bill Hardman, Eddie Preston, Harry Hall e Lonnie Hillyer, os flugelhornistas Clif Lee e Kamal Abdul-Aim, o trombonista Charles Stephens e o tubista Bob Stewart. Acompanham os metais o contrabaixista Bill Lee e os bateristas Billy Higgins e Sonny Brown. Também termos participações do trompetista Charles Tolliver, do saxtenorista Clifford Jordan e do pianista Stanley Cowell como convidados. Uma banda de metais com um poderoso colorido sonoro.
Sum of the Parts (1975). Larry Ridley é um aclamado veterano do contrabaixo jazzístico, tendo acompanhado uma multidão de músicos nas décadas de 60, 70 e 80, e tendo se dedicando à carreira de educador da década de 90 em diante, chegando a chefiar o programa de jazz na Rutgers University e a lecionar na Manhattan School of Music, além de participar de diversas organizações, associações e fundações ligadas à história e ao legado do jazz. Historicamente ligado ao contrabaixo acústico sendo um mestre do instrumento, experiente em várias formas de jazz -- do cool ao hard bop --, aqui Larry Ridley está imerso em uma fase mais funky e mostra uma destreza fora de série de linhas sincopadas de contrabaixo acústico, nos mostrando funky-grooves entusiasmantes ao lado do baterista Grady Tate. Participam deste álbum o flautista e saxofonista Sonny Fortune, o guitarrista Cornell Dupree, o percussionista Errol 'Crusher' Bennett e o tecladista Onaje Allan Gumbs (piano, Fender Rhodes, clavinet, sintetizador). Um exemplo imperdível de post-bop e jazz-funk.
Regeneration (1976). O pianista Stanley Cowell já havia mostrado a que veio com seu curioso The Piano Choir, uma espécie de "coral" ou "ensemble" composto só por teclas (pianos, clavinets, sintetizadores e afins). Aqui, pois, o pianista desbravador nos deixa mais um registro exploratório onde cai de cabeça no soul e spiritual jazz mais imersivo em africanidades, além de explorar as possibilidades da world fusion. O álbum começa com o uma canção ao estilo soul jazz chamada "Trying To Find A Way": uma amostragem contemplativa com sintetizador e uma mistura de linha funkeada de contrabaixo com um maravilhoso dueto vocal através dos cantores Charles Fowlkes e Glenda Barnes. Em seguida, no tema "The Gembhre", o próprio Stanley Cowell empunha uma kora africana para explorar improvisos livres antes de adentrar ao tema ao lado do percussionista Nadi Quamar e do contrabaixista Bill Lee. O álbum segue com temas que mostram interações funkeadas e sincopadas de bateria e percussão com flauta, um duo de piano e gaita tocando blues, uma amostra do afro-jazz nas vozes da cantora Kareema e do percussionista nigeriano Aleke Kanonu acompanhados pelo saxofonista John Stubblefield tocando uma zurna (espécie de instrumento do Marrocos), entre outras mostras com influências do Oriente Médio e do Norte da África. Participam deste álbum vários músicos tais como o contrabaixista Bill Lee, os bateristas Ed Blackwell e Billy Higgins e os saxofonistas Jimmy Heath, Marion Brown, Sonny Fortune e John Stubblefield, dentre outros -- alguns desses instrumentistas, aliás, tocando instrumentos característicos da África e do Oriente Médio, além dos seus instrumentos de ofício. Uma ponte perfeita e diversificada do blues, jazz, soul e funky com suas origens africanas e as influências médio-orientais que adentravam o jazz-fusion da época.
The Liberation of the Contemporary Jazz Guitar (1977). Trata-se aqui de mais um dos incomuns registros da Strata-East: um duo de guitarra com os guitarristas Bruce Johnson e Rodney Jones. Sobre Bruce Johnson há poucos registros e informações, a não ser um álbum que ele lançou na Itália em 1980: o álbum Sea Serpent (Dire Records) onde ele explora guitarra, vibrafone e contrabaixo em duo com John Abercrombie, e também conta com participações do saxofonista Hugo Heredia e o trompetista Enrico Rava. Sobre Rodney Jones, já há muita informação disposta: além de colecionar inúmeras participações como sideman ao lado de cantoras de jazz e R'n'B tais como Lena Horn e Ruth Brown, ele também colaborou com músicos tais como Jimmy McGriff, Maceo Parker, Lucky Peterson, Dizzy Gillespie, Christian McBride, James Carter, Regina Carter, dentre muitos outros, sendo atualmente membro do corpo docente da Juilliard School e considerado um dos maiores nomes do seu instrumento nessas últimas décadas. Rodney Jones, aliás, é reconhecido como um intérprete distinto de guitarra por usar muitas harmonias com intervalos de quarta em suas conduções e acompanhamentos -- o que lhe confere um tom diferenciado. Aqui pois, temos dois guitarristas jovens lançando seu primeiro álbum pela Strata-East, com um duo incendiário de guitarras, mostrando muitos tons de blues, tons modais, brincadeiras ao estilo folk-country, livres improvisos, passagens evocando o flamenco espanhol e outros devaneios guitarrísticos. A contemporaneidade desse duo de guitarras faz jus ao título do álbum.
Erotica Suite (1978). Aqui temos uma curiosa suíte com inspirações um tanto "lúdicas", em uma temática pouco usual no jazz. Trata-se de uma suíte em quatro partes que apresenta temas carregados de um certo ludismo proveniente do erotismo, como o próprio título supõe. Obra composta pelo trombonista John Gordon, também conferimos aqui as colaborações de James Spaulding no sax alto e flauta, John Miller no piano e teclados, Waymond Reed no trompete, Lyle Atkinson no contrabaixo e Frank Derrick na bateria e sinos. Só pra se ter ideia, o álbum começa com um spiritual jazz alucinante com solos de trombone e sonoridades inexplicáveis de sintetizador -- sendo, ao que parece, um sintetizador analógico Crumar Stringman -- e termina com um curioso tema num ritmo irregular em compasso 7/4: no meio dessas assincronias encontramos curiosos improvisos em linguagem bebop, blues esquizofrênicos, uma espécie de boogaloo-latin-funky com efeitos eletrônicos e solos de flauta, entre outras idiossincrasias. Uma obra que apesar de ser de fácil digestão para os acostumados no jazz mais cerebral, nunca teria encontrado um lugar cativo nas gravadoras mainstream, a depender da sua temática e da sua sonoridade incomum. Registro reeditado recentemente pela label Everland Music.
The New York Bass Violin Choir (1980). Ao que parece, este é o último registro do catálogo da Strata-East. Assim como o pianista Stanley Cowell formou um The Piano Choir (uma espécie de coro ou "ensemble" só de instrumentos de teclas), o contrabaixista Bill Lee -- pai do famoso cineasta Spike Lee -- aqui inventa de fundar seu The New York Bass Violin Choir. Trata-se de um projeto onde Bill Lee junta outros seis contrabaixistas para criar seu inédito "ensemble" de cordas com Lisle Atkinson, Michael Fleming, Milt Hinton, Richard Davis, Ron Carter e Sam Jones. Sim, isso mesmo: estamos aqui diante de um septeto de contrabaixos!!! Aliás, o termo "bass violin" aqui é meramente estratégico. Além do mais, uma das peças centrais do álbum é ópera "Baby Sweets" que Bill Lee escreveu inspirado pela música de Bob Dylan, artista com o qual ele frequentemente colaborava. Além dos seis contrabaixistas, Bill Lee tem a colaboração de Sonny Brown (percussão), Harold Mabern (piano) e George Coleman (sax tenor).
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