Depois de algum tempo sem nada lançar, o Stereolab, uma das bandas mais criativas das últimas décadas, acaba de lançar mais uma das suas ricas compilações que, por certo, mais uma vez ganhará o status de "álbum", dado a apreensividade que a banda gera entre seus fãs -- até por estar em um hiato desde 2009 -- e a marca de grandeza criativa que ela conseguiu imprimir e exprimir na história recente da música pop. Quando falamos de Stereolab, não estamos falando de uma banda comum dos gêneros pop ou rock: estamos falando de uma banda que revolucionou a música com seus temas melódico-nonsenses e seu designer sonoro retrô-futurista marcado pela combinação híbrida de sons orgânicos e sons eletrônicos muito bem elaborados -- com uma seleção muito inteligente e bem imaginativa de órgãos e sintetizadores. Quando falamos de Stereolab, não estamos falando de uma banda que usa o instrumental como um adereço simplório da canção: mas de uma banda que faz canções essencialmente instrumentais com letras engajadas que são mais pontuais do que protagonistas. Quando falamos de Stereolab não estamos falando de uma banda comum que lança um álbum onde apenas duas ou três faixas ganham destaque, e as outras 10 faixas ficam ali escanteadas apenas para preencher o espaço do disco: estamos falando de uma banda com registros onde quase todos seus temas são marcantes, além de uma banda que lançou inúmeros singles avulsos e sortidos em formatos menores (EP, K7, 45 rotações e etc), e que, portanto, tem um baú de preciosidades que lhe permitiu e ainda lhe permite lançar compilações de tanta grandeza quanto um álbum conceitual. Foi assim que a banda lançou sua sempre bem celebrada série de compilações Switched On: Switched On (1992), Refried Ectoplasm: Switched On, Vol. 2 (1995) e Aluminum Tunes: Switched On, Vol. 3 (1998). Este Electrically Possessed: Switched On, Vol. 4 (2021) é, então, o quarto volume dessa série. Muitos dos temas e canções desta compilação foram retirados da série de mini álbuns/ EP's lançados em prensagens limitadas no formato 45 rotações nos anos 90: série que a Duophonic chamou de Super 45 e que já estavam fora do catálogo desde o início dos anos 2000. Então temos aqui praticamente um álbum inédito, considerando que muitas das faixas são desses EP's que estão há muito tempo inacessíveis para os fanáticos em Stereolab. Outro fator que este lançamento evidencia é a atemporalidade que a banda imprime em sua música, que é uma música que combina atmosferas vintage com tecnologia analógica. Enfim...esta compilação não chega a ultrapassar o requinte e a elaboração de álbuns clássicos da banda como Emperor Tomato Ketchup (1996), Dots and Loops (1997) e Cobra and Phases Group Play Voltage in the Milky Night (1999), mas consegue trazer um pouco de surpresa para os fãs e críticos ávidos por alguma novidade da banda.
Jim Black é daqueles bateristas dotados de efeitos polirrítmicos e fraseios intrincados -- um misto de improvisações livres com efeitos jazzísticos contrapontísticos. Um dos bateristas mais destacados das últimas décadas, Jim Black faz parte do fantástico trio BB&C com o saxofonista Tim Berne e o guitarrista Nels Cline e tem uma carreira solo recheada de colaborações ilustres e álbuns interessantes. Este álbum documenta o quarto registro do baterista com seu trio formado com o pianista Elias Stemeseder e o contrabaixista Thomas Morgan. Até por se tratar de uma banda liderada por um baterista afeito a efeitos freejazzísticos, polirritmias e fraseios intrincados, essa banda não se encaixa no "perfil romântico" dos piano-trios mais convencionais afeitos a interpretações de canções, standards e temas melódicos. E também temos aqui um encontro de nuances e características diferentes dos três músicos que moldam o som do trio de uma forma um tanto cativante e intrigante. O pianista Elias Stemeseder, por exemplo, é dotado de um tom intimista e impressionista, além de ter um fraseado ágil repleto de dissonâncias e consonâncias coloridas. O contrabaixo de Thomas Morgan é esparso, forte sem ser sobressalente, e tem uma ambiência que preenche bem o plano de fundo. A bateria de Jim Black reveza-se entre as batidas mais explosivas das suas baquetas com efeitos polirrítmicos e aplicações mais atmosféricas. Com todos os temas autorais, assim o trio segue flutuando entre faixas mais densas e outras mais intimistas, o que confere à banda riqueza de detalhes e sonoridades.
Há poucos dias atrás aqui no blog, falamos deste trio fantástico no post onde elencamos seis projetos de releituras sobre as composições de Anthony Braxton -- lembrando que o trio lançou em 2020 o interessantíssimo registro The Anthony Braxton Project (Cuneiform Records), em celebração aos 75 anos de idade do mestre. Sendo este o sexto álbum do trio -- formado por Mary Halvorson na guitarra, Tomas Fujiwara na bateria e Michael Formanek no contrabaixo --, Never Is Enough traz aqui peças autorais, mas ainda com reflexos braxtonianos: uma vez que, segundo o que relatam os próprios músicos, algumas das peças deste álbum foram escritas, desenvolvidas e curtidas enquanto o trio ainda estava imerso no The Anthony Braxton Project. Por consequência, aqui neste álbum há uma mescla de faixas com aqueles sombreamentos mais espaçados e lentos -- ao estilo braxtoniano de se trabalhar com as sombras e efeitos em meio aos silêncios --, faixas mais intrincadas com improvisos mais livres e outras faixas mais intimistas. A guitarra de Mary Halvorson soa sempre rica de efeitos diversos: distorções, delays, reverbs, bends, desafinações propositais e etc. O contrabaixo de Michael Formanek preenche bem os espaços deixados por Mary Halvorson, num jogo interessante de contraponto improvisado. A bateria de Fujiwara é sempre rica de efeito de pratos e integra-se bem ao jogo da bateria e do contrabaixo sem se sobrepor.
Numinous é um ensemble liderado pelo aclamado compositor americano Joseph C. Phillips Jr., que faz um tipo de música híbrida de elementos estéticos diversos o qual ele mesmo denomina como "música mista". Essa sua "música mista" é resultado tanto da sua vivência eclética -- em termos de educação, gostos musicais e censo de contemporaneidade --, como também da sua ideia de delinear as temáticas das miscigenações culturais e raciais por meio de uma música incategorizável. Nos últimos anos, Joseph C. Phillips Jr tem recebido diversas bolsas e comissões para apresentar suas peças com o Numinous nos EUA e no exterior, atualmente sendo um dos compositores mais aclamados dentro desta linhagem da 'new music' eclética. Apresentada ao público no final de 2020, este registro da sua ópera The Grey Land tem sido um dos mais aclamados nas críticas jornalísticas, sites, portais e plataformas especializadas. Descrita pelo próprio compositor como uma “mono-ópera não narrativa" -- ou seja que faz uso da fala e do canto, mas sem oferecer uma narrativa lógica, uma só história ou estória, mas várias estórias e histórias -- e tendo o título tirado de uma frase do romance “Native Son” de Richard Wright, a obra emprega textos falados e cantados, além de uma interface audiovisual e excertos que enriquecem seu teor crítico e conscientizador. O projeto da peça ao vivo, como um todo, apresenta a coreógrafa Edisa Weeks, o músico de eletrônica Michael Hammond, os cineastas Malik Isasis e Ryan Booth, o videoartista Xuan Zhang e o diretor de teatro e cinema Ozzie Jones. A soprano Rebecca L. Hargrove canta em uma das faixas a qual retrata a estória de uma mãe negra lutando para criar seu filho numa América repleta de preconceitos e discriminações institucionalizadas. The Gray Land é, enfim, uma ópera contemporânea que trata das questões sociais, econômicas e culturais, mostrando as fendas sistêmicas por onde vazam as secreções dos problemas históricos que tanto afetam os EUA: as disparidades sociais, a violência policial, a luta de classes e etc. O ensemble Numinous junta canto lírico com eletrônica, partes faladas, guitarra psicodélica com arranjos camerísticos, pitadas de jazz, soul e por aí vai... A peça The Gray Land foi comissionada pela American Composers Forum com fundos fornecidos pela Jerome Foundation e apoio pela New Music USA.
Chris P. Thompson é um percussionista, manipulador de eletrônicos e membro de longa data de ensembles aclamados e especializados em música moderna e contemporânea tais como o Alarm Will Sound e o American Contemporary Music Ensemble. Aqui neste seu trabalho autoral, o músico e compositor explora uma vertente mais pós-minimalista através da eletrônica e de quatro tecladistas usando o sistema de afinação conhecido como "just intonation", onde os pianos foram afinados com frequências baseadas em números inteiros para alcançar intervalos conhecidos como "justos". Essa característica soa estranha até para os ouvidos mais acostumados às experimentações atonais da música contemporânea pelo fato de fazer a música soar, aparentemente, desafinada -- uma vez que nossos ouvidos estão acostumados em uma afinação que, ao longo dos séculos, foi temperada pelas culturas ocidentais para soar agradável e consoante. Chris P. Thompson também se inspira na matemática da aritmética (dos números naturais, racionais, inteiros e etc) e na história do físico Hermann von Helmholtz e sua esposa Anna von Helmholtz: no século 19, o físico, especializado nos estudos das percepções visuais e auditivas, inventou um aparelho chamado Ressonador de Helmholtz que lhe possibilitou identificar, de forma precisa, as várias frequências e tons que compõe a onda senoidal pura, algo que possibilita hoje conseguirmos afinar um instrumento a partir dessas frequências. Um registro para quem gosta de música nova.
Este álbum é um registro verdadeiramente empolgante pelo leque de aberturas e misturas -- confluência de ritmos, elementos de diferentes estéticas e diferentes sonoridades -- que ele apresenta. Recém lançado pelo Third Coast Percussion em parceria com a cantora e multi-instrumentista brasileira Clarice Assad e seu pai Sergio Assad -- violonista do célebre Duo Assad --, este projeto consiste numa peça extensa de 12 partes chamadas de Archetypes. As 12 partes foram escritas para piano, voz, violão e ensemble de percussão e foram estruturadas em formas eruditas, mas com aberturas para várias direções advindas da música brasileira, da world music, do jazz, da música minimalista e além. Não faz muito tempo, o Third Coast Percussion foi ganhador de um prêmio Grammy na categoria Best Chamber Music (Small Ensemble Performance) através do álbum “Third Coast Percussion | Steve Reich". Agora, em parceria com esses dois criativos músicos brasileiros, mais uma vez o ensemble americano encontra-se envolto de um projeto que é uma verdadeira obra prima. A voz cristalina de Clarice Assad -- aqui explorada na forma de um canto instrumental, emitido sem palavras -- é um manto melódico brasileiro que se enxerta perfeitamente às sonoridades da marimba, vibrafone e violão. Sergio Assad também contribui em muito para que a sonoridade do álbum se aproxime da estética do instrumental brasileiro. Os músicos do Third Coast Percussion trazem momentos de uma percussão mais tribal e em outros momentos trazem resquícios de Steve Reich, Philip Glass e do jazz contemporâneo -- por um momento, aliás, temos a impressão de estarmos envoltos de flashes advindos do álbum Águas da Amazonia com peças de Philip Glass sendo interpretadas pelo mitológico grupo brasileiro Uakti. O piano e sintetizador de Clarice Assad são pontuais, mas expandem ainda mais o leque de possibilidades de todo o grupo. As 12 peças foram baseadas nos conceitos dos "12 arquétipos humanos" estudados na psicologia, os quais transcendem as crenças e ignoram as distâncias e são inerentes a todos nós, independentes de nacionalidade: o Amante, o Bobo, o Criador, o Cuidador, o Explorador, o Rebelde, o Governante, o Herói, o Inocente, o Mago, a Pessoa Comum e o Sábio. Então, como cada faixa é composta para expressar subjetivamente esses 12 arquétipos, o álbum todo reflete vários momentos melódicos e harmônicos de simplicidade, sentimento, nostalgia, tensão e densidade, entre outras impressões que compõe a miríade de tons e nuances da masterpiece. Gravado no final de janeiro de 2020, imediatamente após a estreia da obra em palco e após a formação da grade de concertos programados em vários locais americanos, o projeto teve suas apresentações interrompidas devido à pandemia COVID-19 que obrigou praticamente todos os países do mundo a adotarem o lockdown. Contudo, agora com os EUA voltando à normalidade, o projeto encontra um amplo espaço para apreciação de público e crítica. O álbum, em si, já pode ser considerado um dos melhores lançamentos de 2021.
Ainda que a música de Wynton Marsalis soe passadista em relação à estética mais "modern creative" do jazz contemporâneo, ela não envelhece em termos da identificação e do discurso politizado imbuído de conscientização social, racial e cultural que ela se dispõe levar às pessoas. Ao longo das décadas, Wynton não criou apenas um estilo pessoal de se fazer jazz e de se escrever música, mas criou uma verdadeira identidade musical intrinsecamente ligada à história e à cultura americana, abordando -- de forma continuada, escrita e falada, instrumental e cantada, revisionista e original -- da tradição mais arcaica aos elementos mais modernos, e tentando alcançar jovens e velhos, negros e brancos, e pobres e ricos. Portanto, ninguém melhor do que Wynton Marsalis -- que consegue alcançar tantas pessoas -- para escrever uma música sobre um tema tão denso, tão abrangente e, atualmente, tão decepado e desacreditado como o tema da DEMOCRACIA. Quer dizer: esse registro não soa revisionista como os registros onde o trompetista aborda o jazz mais tradicional de New Orleans, mas as premissas de modernizar o blues e de fazer uma metáfora moderna do swing como uma dinâmica musical que se assemelha à dinâmica social da democracia já são premissas extensivamente repetidas e soam não menos que passadistas em relação ao jazz atual, que é mais eclético, polirrítmico, miscigenado e universal. Contudo, o álbum precisa ser entendido sob o espectro da cultura e da história recente americana e Wynton já se fez entender que para ele o jazz é a veia arterial da música americana e é moderno e atual em toda sua extensão histórica e social -- do mais caricato new orleans jazz ao mais impressionista post-bop, passando pelas influências de Ornette Coleman, ele não faz distinção de "velho" e "novo". E convenhamos que nas mãos de Wynton Marsalis essas premissas também soam não menos que poderosas e objetivas no âmbito cultural -- algo que deixa claro a tal identificação cultural que o músico criou junto ao público e à mídia ao longo das quatro últimas décadas. A gestação deste registro ocorre justamente num período onde a pandemia da Covid-19 inflamava os ânimos dos americanos e num momento de debates acirrados entre o presidente republicano Donald Trump -- que vinha tentando a reeleição com ideias extremistas e inclinações supremacistas -- com o então candidato democrata Joe Biden: sendo que, envolta deste debate, uma série de fissuras econômicas e cicatrizes sociais eram abertas, expondo os velhos problemas raciais, sociais e econômicos que sempre ameaçaram a democracia americana, problemas ainda mais potencializados com a pandemia e o isolamento social. Wynton Marsalis aproveita esse momento tenso, então -- assim como já fizera em outros momentos polêmicos da história recente americana --, para criar uma composição que lhe desse base para seu sempre bem afinado discurso, criando mais uma das suas suítes temáticas e conscientizadoras. Para o projeto, ele resgata o formato de um septeto convidando músicos da sua própria big band Jazz at Lincoln Center Orchestra e lança o álbum através da sua própria gravadora Blue Engine, a gravadora atualmente responsável pelos registros da big band JLCO e seus músicos. Eu daria mais duas estrelas para este álbum se eu não fosse um wyntomaníaco que já conhecesse projetos passados musicalmente mais ousados tais como Black Codes (com seu Quinteto dos anos 80), In This House, On This Morning (com seu poderoso Septet dos anos 90) e Blood on The Fields (com sua big band). Mas aqui fica claro que Wynton não quer surpreender: a intenção não é criar uma das suas peças extensas cheias de ousadias e arranjos cerebrais. Ele quer tocar simples, com temas mais diretos: ele quer apenas fazer as pessoas entender, de forma simples e objetiva, que a dinâmica da improvisação jazzística sobre um tema compartilhada por sete músicos ao mesmo tempo é uma clara metáfora para a convivência pacífica em democracia; ele quer apenas criar uma música leve, prazerosa, com temas mais curtos, que apenas seja um divã que lhe dê base para um conscientização pacifista em prol desse assunto tão simples de entender, mas atualmente tão difícil de ser praticado pelos governos e pelas sociedades. E esse objetivo ele sempre alcança com primazia.
O pianista Vijay Iyer, o baterista Tyshawn Sorey e a contrabaixista Linda Oh criam aqui um registro de post-bop sensível e contemporâneo nos moldes atmosféricos da ECM Records. Mas não se trata de uma sensibilidade que romantiza o jazz, mas que faz dele um veículo de espiritualidade e reflexão. Gravado em dezembro de 2019 -- e, por certo, com o lançamento na época interrompido pela Covid-19 -- as temáticas aqui apresentadas são sobre fatos recentes ou, no mínimo, relacionadas à fatos sempre atuais. O tema "Children of Flint" subjetiviza a recente contaminação por chumbo de diversas pessoas da comunidade negra pelas águas do Rio Flint, em Detroit. A segunda faixa "Combat Breathing" é dedicada aos protestos que o pianista acompanhou e presenciou em 2014 após o estrangulamento de Eric Garner pela polícia nova-iorquina e aos recentes protestos do movimento Black Lives Matter -- lembrando que esse movimento de protestos anti-discriminação começou com a morte de Eric Garner e foi ainda mais potencializado após um policial branco de Mineápolis chamado Derek Chauvin ter abordado um homem negro chamado George Floyd com o joelho em seu pescoço, no chão da rua, impedindo-o de respirar (daí o termo "Breathing") e, consequentemente, matando-o em poucos minutos. Já na faixa "Entrustment", Vijay Iyer apresenta inspirações espirituais budistas advindas da sua visita à histórica cidade de Dunhuang, no deserto de Gobi, China. Assim -- com oito temas autorais, um standard (Night and Day, de Cole Porter) e um tema da falecida pianista Geri Allen ("Drummer’s Song") --, o trio segue delineando-se entre passagens mais improvisadas e outras mais reflexivas, gestando um registro que é para se ouvir com atenção e comoção em relação à essas sensíveis temáticas da atual humanidade. Vijay Iyer nos apresenta aqui um fraseado ímpar e bem calibrado em termos de fluência no dialeto post-bop -- assim como o contrabaixo de Linda Oh e a bateria Tyshawn Sorey se interagem, se contrapõe e se contracenam de forma não menos que impecável. É, então, um álbum onde o pianista Vijay Iyer deixa sua caricatura de frases intricadas e freejazzísticas mais de lado, para apoiar-se na expressão de um post-bop dotado de fluência e sensibilidade. Neste álbum, enfim, suas inclinações às intrincâncias advindas da música indiana carnática e suas polirritmias e ousadias advindas do m-base e do free jazz soam diluídas, implícitas, quase imperceptíveis. Embora este seja o álbum de estreia do trio -- que aqui atua no formato de co-liderança, com os créditos compartilhados entre os três músicos --, Vijay Iyer, Tyshawn Sorey e Linda May Han Oh já vinham se encontrando antes: desde 2014 quando tocaram em trio pela primeira vez no Banff International Workshop in Jazz and Creative Music, no Canadá. Sinto saudades das fases mais ousadas de Vijay Iyer. Mas aqui fica claro que a idéia é apresentar sensibilidade, reflexão e solidariedade. Que mais registros deste trio estelar surjam!
Em 2010 nascia a gravadora JACC Records, fruto dos encontros organizados pela associação sem fins lucrativos Jazz ao Centro, em Portugal. Desde então, a gravadora já conta com mais de 40 álbuns, tendo sido uma alternativa para registros de diversos músicos portugueses e estrangeiros tais como Luís Vicente, John Dikeman, Yedo Gibson, William Parker, Hamid Drake, Hugo Antunes, Agustí Fernández, Roger Turner, António Eustáquio, Carlos Barretto, Carlos Zíngaro, Hernani Faustino, dentre outros. Neste álbum, ambientado no free jazz, nós temos a banda Fail Better!: Luís Vicente (trompete), Albert Cirera (saxofones tenor e soprano), Marcelo dos Reis (guitarra eléctrica), José Miguel Pereira (contrabaixo) e Marco Franco (bateria, flauta). O álbum começa com a faixa "Ground Floor" onde temos a guitarra elétrica numa sonoridade psicodélica combinando seus livres improvisos com o contrabaixo imitando as distorções psicodélicas com o arco, enquanto o sax soprano aplica seus cigarreios abstratos tentando contrastar com o trompete tocado com surdina, e a bateria apenas condimenta o ambiente de forma sutil, sem soar sobressalente. A segunda faixa já inicia com uma tensão mais cacofônica com os sons do trompete (agora sem surdina) se duelando, se contrastando e se chocando com os sons da guitarra (agora numa sonoridade mais semiacústica) e com as abstrações do saxofone tenor, enquanto a bateria aumenta a tensão com ataques e fraseios de baquetas que dialogam com os fraseios livres dos sopros, e o contrabaixo apenas harmoniza o plano de fundo -- já no final da faixa a guitarra aumenta ainda mais a tensão com altos decibéis transformados de uma sonoridade semiacústica para uma densidade sonora mais eletrificada. A terceira faixa "Falling Stars" apresenta apenas sons desconexos, atmosféricos, com os cinco músicos temperando o ambiente com abstrações esparsas compostas por ruídos emitidos através de técnicas estendidas -- é uma faixa que dialoga com o silêncio e apresenta uma ambiência intimista de ruídos esparsos. E assim o quinteto segue variando os timbres, as combinações e os improvisos, trabalhando diversas dinâmicas com notas soltas, cacofonias ou apenas ruídos. Um álbum pra ouvir com atenção, deixando-se levar pelos sons.
Não é de hoje que a gravadora francesa Ayler Records é uma fonte ultra contemporânea de criatividade e esmeros sonoros. Neste álbum do trompetista americano Dennis González e seu Ataraxia Trio -- com o contrabaixista Drew Phelps e o percussionista Jagath Lakpriya, aqui acompanhados de mais dois músicos convidados: o tecladista Derek Rogers nos sintetizadores e o harpista Jess Garland -- nos apresentam um trabalho que se centra mais na combinação de texturas reluzentes e cintilantes do que em estruturas composicionais e improvisativas. As combinações texturais aqui apresentam uma atmosfera sedutora e "noir", com uma eletrônica ambiente recebendo um contraste um tanto 'world music' com tablas, conchas, djembes e kits cintilantes de percussão, além da harpa que contribui com uma atmosfera um tanto espiritual e com uma cintilância ainda maior de cores. Trata-se de um registro onde Dennis González sai um pouco fora da sua curva dos registros freejazzísticos -- que dizer: este registro até apresenta certa aproximação com a música improvisada, mas o faz de uma forma mais idiossincrática através de sons ambientes e combinações de texturas eletrônicas com texturas orgânicas. Para quem ainda não conhece Dennis González, o trompetista apresenta em sua discografia parcerias e colaborações não menos que curiosas com músicos tais como Nels Cline, Alex Cline, Andrew Cyrille, Ingebrigt Håker Flaten e com o unsung hero Charles Brackeen (pelo selo Sikheart, nos anos 80), dentre muitos outros. O trompetista também tem uma sequência de álbuns lançados pela gravadora portuguesa Clean Feed. Já pela Ayler Records, este é seu quinto álbum, nos restando saber se os outros quatro registros são dotados de tanto requinte quanto este Nights Enter.
Formado por Tim Gocklin (oboé), Cari Lander (clarineta), Matt Lander (saxofones), Andrew Coppe (clarone) e Ryan Reynolds (fagote), o Akropolis Reed Quintet, de Detroit, é um dos grupos de sopros mais interessantes da atualidade. Quem acompanha as plataformas do Bandcamp e as novidades de magazines e sites especializados como o I Care If You Listen e The Wire já deve ter se deparado com positivas críticas a respeito dos seus registros, sempre ambientados em peças inéditas de compositores contemporâneos que, muitas das vezes, compõe exclusivamente para o quinteto. As peças encomendadas são sempre divertidas, interativas e ressaltam bem o colorido de cada instrumento -- quem leu aqui no blog a resenha do álbum anterior e ouviu o registro, o EP Birds (Independent, 2020), sabe do que se trata. Neste álbum, mais extenso que o EP anterior, o quinteto apresenta peças escritas de compositores tais como Stacy Garrop, Michael Gilbertson, Niloufar Nourbakhsh, Jeff Scott e Theo Chandler. Trata-se de um registro menos lúdico que o EP anterior, ainda que tão imagético quanto. É um álbum com peças que expelem um modernismo com partes mais sentimentais e meditativas, mas um registro que mantém a dinâmica interativa e o aventuroso colorido timbrístico. Os aspectos do meditativo e do sentimental dão-se pelo fato das peças -- todas escritas em três ou quatro movimentos --- se referirem à temática dos vários fantasmas da existência da humanidade e da matéria orgânica. A peça "Rites for the Afterlife" da compositora Stacy Garrop baseia-se na mitologia egípcia e tenta narrar, em seus quatro movimentos, as etapas da vida pós morte em forma de uma fantasia imagética: o desprendimento da alma do corpo, que fica protegido por meio de encantos e feitiços gravados por meio de hieróglifos em sua tumba; a viagem dessa alma até uma espécie de julgamento, e os encontros com serpentes, crocodilos, demônios, lagos de fogo e outros terrores no meio do caminho; o julgamento diante de 42 juízes; e por fim, o encontro festivo dessas almas com as almas dos seus parentes e amigos anteriormente falecidos. Já a peça Kinds of Light, do compositor Michael Gilbertson, é uma obra homofônica, ou seja, sem variação de ritmo entre os instrumentos, mas rica em coloridos harmônicos que salientam as características timbrísticas de cada sopro. Em seguida, a peça Firing Squad de Niloufar Nourbakhsh, baseia-se numa frase do aclamado livro Cem Anos de Solidão do escritor colombiano Gabriel García Márquez: "Many years later, as he faced the firing squad, Colonel Aureliano Buendia was to remember that distant afternoon his father took him to discover ice". Seed to Snag de Theo Chandler, por sua vez, é uma peça que se baseia na poética do início e o fim do ciclo de vida da matéria orgânica, ou seja, entre a semente e o nó. E, por fim, o álbum termina com a peça Homage to Paradise Valley, do compositor Jeff Scott, que é uma homenagem ao bairro Black Bottom, que na primeira metade do século 20 foi um velho centro de população negra, tendo contribuído em muito com a cultura do jazz em Detroit antes das demolições e expulsões empreendidas pelos novos projetos imobiliários -- peça que recebe um poema da poetisa Marsha Music.
Interessante projeto de um dos duos mais criativos da música contemporânea atual formado pela pianista Nicoletta Favari e o percussionista e manipulador de eletrônicos Christopher Salvito. Trata-se de um EP breve com cinco epigramas curtos onde o duo italiano teve a curiosa idéia de explorar as sonoridades de um sintetizador Buchla em uníssono com um piano acústico. Os dois músicos tiveram a idéia mediante a audição da peça Tape and Double Opus 207 (1969/1970) para dois pianos e tape do compositor austro-americano Ernst Krenek, que foi um dos primeiros compositores eruditos a usar esse distinto sintetizador através dessa peça. Na verdade Ernst Krenek foi um compositor que iniciou a carreira com peças influenciadas pelo romantismo tardio e depois apaixonou-se pelo modernismo serial, chegando a encomendar, em 1967, dois sintetizadores Buchla para seu estúdio na cidade de Krems an der Donau, na Áustria. Apoiados pelo AIR Niederösterreich e pelo Ernst Krenek Institut in Krems, na Austria, o duo escreve, então, uma peça composta por cinco epigramas curtos para piano em uníssono com os osciladores, filtros e geradores de envelopes de um dos raros Buchla deixado por Krenek, com a real intenção de potencializar as cores emitidas pelas combinações entre teclas brancas e pretas do piano -- além da aplicação de efeitos atmosféricos sutis que criam uma ambiência mais sedutora em torno dessa escrita. Ademais, o duo não fica apenas no delinear cristalino das teclas do piano: eles também exploram uníssonos com o uso de técnicas estendidas de piano preparado, dedilhados direto nas cordas do piano e explorações estendidas de harmônicos para alcançar uma fronteira timbrística tênue entre os sons acústicos e eletrônicos. É uma peça que, apesar de se inspirar num compositor modernista-serial, soa até minimalista, de certa maneira -- trata-se de uma fronteira curiosa e sutil entre as influências minimalistas com as influências seriais eletrônicas. Uma crítica pessoal negativa aqui fica por conta de se tratar apenas de um EP de curta duração, quando o duo -- talvez -- poderia ter lançado, para além dos uníssonos aqui apresentados, um formato maior com ideias mais variadas em torno dessa rica combinação de piano com sintetizador Buchla.
Trio fantástico formado pela pianista eslovena Kaja Draksler, pelo contrabaixista sueco Petter Eldh e pelo baterista e percussionista alemão Christian Lillinger. Em 2018 o trio já havia lançado seu elogiado debut, e agora retorna com mais um rebento que, por certo, agradará muito a crítica especializada. O Punkt. Vrt. Plastik produz aqui neste álbum um tipo de free music que não se centra apenas em cacofonias aleatórias, mas explora temas marcantes (como nas faixas "Natt Raum" e "Somit"), contrapontos assimétricos (como na faixa "If Asked"), envergaduras e pontilhismos melódicos (como na faixa "Vrvica") e peças com sombreamentos intrigantes (como na faixa "Axon"). Uma curiosidade é que as exposições dos temas e seus desenvolvimentos são curtos -- alguns temas, aliás, apresentam pequenos trechos repetitivos em um formato quase de peças-miniaturas --, o que faz com que cada faixa tenha entre 3 e 4 minutos em média. Apesar de termos aqui um free jazz de primeira grandeza, essa dinâmica de temas curtos com caricaturas melódicas marcantes, e com desenvolvimentos improvisativos também curtos, é o que faz o álbum soar mais como um registro de temas jazzísticos contemporâneos do que um registro de improvisação livre -- isso se considerarmos que muitos dos álbuns de improvisação livre são compostos de longos improvisos e faixas mais extensas. Os contrapontos freejazzísticos do baterista Petter Eldh e do contrabaixista Christian Lillinger fornecem um intrincado jogo de entrelaces -- com destaque para o timbre seco e vívido das baquetas de Eldh e seus efeitos rítmicos quebradiços, que contrastam bem com o grave bem esparso do contrabaixo de Lillinger e com o frescor melódico dos pianos de Draksler. O senso melódico-harmônico de Kaja Draksler se mostra aguçado e parece trazer impressões melódicas únicas, próprias. Uma outra curiosidade é o fato de Kaja Draksler empunhar aqui dois pianos verticais (os chamados pianos de parede) um ao lado do outro, culminando em uma ambiência de sons acústicos com efeitos ressonantes um tanto inebriantes, diferentes aos apresentados quando ouvimos apenas um piano de cauda. As linner notes do álbum são escritas pelos aclamados Alexander Hawkins (pianista) e Paul Lytton (baterista e percussionista), ambos do cenário da livre improvisação inglesa.
Este álbum documenta a parceria firmada entre o clarinetista Ben Goldberg e percussionista, baterista e manipulador de eletrônicos Kenny Wollesen. A combinação do timbre cristalino-amadeirado do clarinete de Goldberg com a ressonância do vibrafone e os efeitos acústicos e eletrônicos de Kenny Wollesen é de uma beleza não menos que interessante. Kenny Wollesen empunha aqui vibrafone, arco de diddley, sinos, drum machines, eletrônicos e outros apetrechos. A música centra-se em temas curtos que soam como verdadeiras landscapes sonoras -- ora com temas com uma melodia mais clara, ora com temas com improvisos melódicos mais impressionistas. O registro é lançado pelo selo BAG Production, de propriedade do próprio Ben Goldberg, que se mostra um clarinetista refinado e ao mesmo tempo muito rico de ideias e aberto às influências várias: da livre improvisação ao jazz mais palatável, passando pela eletrônica e pelo ecletismo da Downtown. É preciso estar atento, aliás, para as produções mais recentes de Ben Goldberg, bem como para os próximos registros que virão. Trata-se de um músico completo com visão ampla!