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Clarinet Approaches 2: Brahms, Berio, Boulez, Stravinsky, Penderecki, Zappa, Santoro, Golijov... Solos & Concertos

Nos meus idos anos de pós-adolescência, comecei a gostar de clarinete por três vias: ouvindo a série de trios, quintetos e sonatas de Brahms; ouvindo mestres brasileiro do choro, entre eles Abel Ferreira e Paulo Moura; e procurando ouvir clarinetistas de jazz hábeis na linguagem bebop, encontrando em Buddy DeFranco um exemplo impressionante de técnica e fluência. No jazz contemporâneo, Don Byron me forneceu um exemplo admirável de ecleticidade e versatilidade. Mas aqui neste post, quero dedicar as indicações ao clarinete erudito. Brahms é aquele tipo de compositor que, em suas peças camerísticas, prezou mais por criar contrastes harmônicos e melódicos em andamentos moderados do que evidenciar a velocidade e a tecnicidade que o instrumentista poderia atingir -- especialmente nessas obras para clarinete, que foram escritas nas fases finais da sua vida, onde ele adotou um tom expressivamente mais intimista e meditativo. Esse tipo de música me fascina, mas atualmente encontra um momento bem específico em minhas prioridades auditivas: num domingo à tarde, com aquela leseira pós-almoço, aquele silêncio pandêmico, talvez esse seja o momento ideal para se colocar o clarinete de Brahms na vitrola; ou numa noite de insônia, com um bom fone de ouvido... Na maioria das vezes, estou sempre a procurar por música moderna e contemporânea: deixando o barroco, o clássico e o romântico para momentos bem específicos, com estados de espíritos apropriados para essa viagem mais nostálgica ao passado longínquo. Posteriormente, então, eu foquei em procurar peças contemporâneas para clarinete: busca que me levou às indicações que disponho aqui neste post. O clarinete -- ou clarineta, como gosto de chamar no âmbito do choro -- é um instrumento melodioso, harmonioso e com timbre amadeirado que tem uma dinâmica bem lúdica de tons, tessituras, efeitos ressonantes e efeitos de glissandos (efeitos de deslizes de uma nota para outra) -- podendo soar opaco, podendo com soar um tom aberto-amadeirado-cristalino ou podendo soar com um tom mais caricato de clarinete tradicional como acontece na abordagem judaica da klezmer music, por exemplo. Tecnicamente, por ter uma anatomia cilíndrica com saída de ar menos espessa -- diferente do saxofone que é cônico, com uma saída de ar mais aberta --, trata-se de um instrumento difícil, pois o instrumentista precisa despender de um maior esforço quanto ao sopro, à embocadura, à tessitura e um maior esforço para trabalhar todas essas dinâmicas com qualidade, além do chaveamento do instrumento ser mais limitado em termos de recursos ou números de chaves do que o chaveamento do saxofone. Em resumo, essas características fazem com que o clarinetista tenha maior esforço para trabalhar um sopro e uma articulação perfeita -- tanto com o diafragma como com golpes língua, como também no dedilhado -- que não lhe cause piados, resvalar de dedos e outras "falhas" que são chamadas popularmente de "guinchos". Nos meandros do jazz e do choro, esses "guinchos" até são aceitos com certa descontração e casualidade improvisativa. Nos meandros da música erudita, porém, temos um caráter da peça bem polida, do desafio de se explorar os limites do instrumento justamente sem deixar ocorrer esses "guinchos" e da busca pela interpretação perfeita dessa obra que não dá margens para essa casualidade. Dois compositores modernos que desafiaram os clarinetistas com suas obras são Pierre Boulez e Luciano Berio: Boulez com Domaines Pour Clarinette Soliste et Instruments (1961-68); e Luciano Berio com suas Sequenza IX for Solo Clarinet (1980) e a variante Sequenza IXc for Bass Clarinet (1980) e com seu Lied for Clarinet (1983). Curiosamente, Luciano Berio também orquestrou as duas Sonatas para Clarinete e Piano de Brahms, Op. 120, escritas em 1894 (pouco antes da morte do compositor em 1897), o que demonstra o lugar cativo que muitas das obras tardias de Brahms têm entre os modernistas -- quer dizer: Brahms foi um compositor romântico de verve tradicionalista, mas evidenciou uma idiossincrasia de tons, cores e sombreamentos que costuma intrigar até os mais modernistas. Segue abaixo 10 álbuns de concertos e outros tipos de peças para clarinete. Clique nos álbums para ouvi-los.

 
O formato de estudos e peças temáticas para clarinete solo na música erudita moderna é tão clássico quanto as sonatas e partitas que Bach escreveu para violino solo: a começar por Three Pieces for Solo Clarinet (1918) de Stravinsky, vários compositores tais como Boulez, Berio, Jolivet, Santoro, Stockhausen, Carter, Penderecki, dentre tantos outros, dedicaram obras para o formato do clarinete solo. As duas sequenzas de Luciano Berio -- escritas em forma livre, sem marcações de tempo e compassos, vide vídeo acima --, são exemplos clássicos de estudos para clarinete solo e de como o compositor trabalha com várias complicações para o clarinetista em termos de articulações, ligaduras, floreios cromáticos (ascendentes e descendentes), variações melódicas, as relações de intervalos e as dinâmicas de intensidade (forte, fraco, piano, pianíssimo, crescendos, diminuendos e etc). A forma como o compositor cria um jogo intervalar com ligaduras e glissandos (através de tons variados de quartas, quintas, sétimas e etc) desafia o clarinetista a deslizar rapidamente entre os tons e ao mesmo tempo manter o controle diante de uma instabilidade de intensidades que varia a todo momento do som forte para o som fraco (e vice-versa) e, às vezes, termina num pianíssimo de difícil execução em termos de estabilidade do sopro em notas de curta e longa duração. Em determinados pontos, essas sequenzas desafiam o clarinetista até a aplicar sons multifônicos -- distorções através do sopro que possibilitam o alcance de duas ou mais notas em simultâneo --, o que diferencia essas peças como exemplos pioneiros de aplicação das técnicas estendidas na música erudita. No demais, vale lembrar que Berio compôs a Sequenza IX para Clarinete Solo em 1980 e, com base nesta, compôs outras duas peças variantes: Sequenza IXb para Saxofone Alto e Sequenza IXc para Clarinete Baixo, explorando as dinâmicas e as características de cada um desses instrumentos. Na Boosey & Hawkes, uma das maiores e mais conceituadas editoras de música erudita do mundo, essas sequenzas recebem graus de dificuldade número 5, um grau de dificuldade médio. Mas foi essa dificuldade de explorar dinâmicas com técnicas estendidas em instrumentos solo -- algo que já vinha acontecendo de forma indiscriminada no jazz e na música improvisada, vide, por exemplo, o registro For Alto de Anthony Braxton -- que Berio enxergou como uma possibilidade pouco ou nada explorada na música erudita.



Além das peças genuínas, o repertório para clarinete solo é frequentemente recheado de partes transcritas de outras peças dedicadas a outros instrumentos ou partes de concertos arranjados para o formato solo. Nos álbuns dispostos acima temos exemplos de alguns dos principais clarinetistas das últimas décadas que deram atenção para esse tipo de repertório. O célebre clarinetista francês Paul Meyer gravou as Three Pieces for Solo Clarinet (1918), peças precursoras do repertório para clarinete solo compostas por Stravinsky, a Sequenza e o Lied de Berio, a peça In Freundschaft, Op. 46 (1977) de Stockhausen, Ascèses Pour Clarinette (1967) de Andre Jolivet e partes das miniaturas de Boulez, dos seus chamados "Domaines" Pour Clarinette Seuls (1968). Já o italiano Luca Luciano, incluiu as peças de compositores brasileiros em um repertório com Stravinsky, Cage, Berio e Messiaen: foram inclusas a Melodia (1974) de Osvaldo Lacerda, e a Fantasia Sul América para Clarineta (1983) de Claudio Santoro. O alemão Karl Leister, por sua vez, lançou um registro onde faz uma síntese pessoal da aplicabilidade do clarinete solo através de uma mescla do repertório moderno com o repertório clássico, incluindo em seu registro o Estudo para Clarinete em Dó Maior de Donizetti e transcrições tiradas dos Caprichos para Violino Solo de Paganini e de Syrinx L. 129 de Debussy.Sergio Bosi, também italiano, faz uma síntese parecida abordando um repertório estritamente de compositores italianos em seu registro lançado pela Naxos. O clarinetista suíço Eduard Brunner, por sua vez, lançou um registro com um repertório mais diferenciado, com peças de vários outros compositores que não são frequentemente abordados dentro do repertório padrão: Henri Pousseur, Fabio Nieder, Alexander Goehr, Edison Denisov, Arthur Lourié, Aribert Reimann, Toshio Hosokawa e Jörg Widmann. Ademais, um outro registro interessante para clarinete solo é o álbum Contrechant, que o clarinetista suíço Reto Bieri lançou pela ECM Records, seguindo o perfil minimalista de música de vanguarda estabelecido pela gravadora: incluindo parcerias e peças encomendadas, o repertório desse registro é formado por Lied de Luciano Berio, Contrechant e Rechant de Heinz Holliger, Gra de Elliott Carter, Let me Die Before I Wake Up de Salvatore Sciarrino, Derwischtanz de Péter Eötvös e Lightshadow-tremling de Gergely Vajda.
Um álbum muito interessante que descobri recentemente foi o Clarinete Solo Brasileiro, do clarinetista Jairo Wilkens. Um dos poucos registros brasileiros do gênero, o CD aborda peças pioneiras de compositores consagrados tais como Três Estudos para Clarineta (1942) e Fantasia Sul América (1983) de Claudio Santoro (1919-1989), Três Peças para Clarineta Solo (2008) de Guilherme Bauer (1940- ), Introspecção I (1983) de Harry Crowl (1958 - ), Lúdica I (1983) de Ronaldo Miranda (1948- ), Suite Clarinet Opus 65 (2002) de Liduino Pitombeira (1962- ), Melodia (1974) de Osvaldo Lacerda (1927-2011), Pequena Peça Brasileira (1987) de Murillo Santos (1931- ) e Três Estudos (1980) de Antonio Gilberto Machado de Carvalho (1952- ). Das 12 peças abordadas no CD, duas delas foram compostas por compositores jovens exclusivamente para serem estreadas pelo próprio Jairo Wilkens: Iguaçu - Da nascente à Garganta do Diabo (2016) de Eduardo Frigatti (1985 - ) e Inquietações (2016) de Alexandre Ficagna (1984 - ). Essas duas peças mais novas apresentam, inclusive, uma dinâmica mais exploratória de técnicas estendidas: uso de efeitos produzidos pela garganta e língua em simultâneo ao som natural da clarineta, efeitos produzidos pela articulação das chaves, sons multifônicos, entre outras. É um álbum, portanto, bem completo no sentido de abordar a tecnicidade da clarineta, e no sentido de abordar tanto as principais peças dos principais compositores consagrados do modernismo brasileiro como também peças compostas por compositores mais jovens -- e também, há peças de compositores veteranos que foram escritas recentemente. Ademais, Jairo Wilkens termina o álbum com uma curiosa versão do choro O voo da Mosca (1952) de Jacob do Bandolim (1918-1969) com a evidente intenção de parodiar O voo do Besouro de Rimsky-Korsakov, mostrando um admirável domínio técnico na articulação de notas rápidas. O timbre abrasileirado da clarineta de Jairo Wilkens também agrada: com um som mais claro e aberto do que opaco -- que chega a soar forte sem ser estridente em alguns pontos mais elevados das peças --, seu equilíbrio entre as tessituras e as dinâmicas de fraco e forte mostram um completo domínio técnico do instrumento.

 

Para os ouvintes afeitos ao clarinete baixo -- popularmente chamado de clarone -- o clarinetista holandês Harry Sparnaay é um dos mais indicados no âmbito do repertório de peças contemporâneas, incluindo uma notável incursão pelas explorações do clarone em interação com a eletroacústica. Em 1972, após ter adotado o clarone como seu instrumento de ofício, Harry Sparnaay foi o primeiro clarinetista baixo a ganhar uma edição do Gaudeamus International Interpreters Award. Só para se ter uma ideia da sua importância para o repertório contemporâneo dedicado a esse instrumento, mais de 650 peças foram escritas para ele por compositores como Luciano Berio, Morton Feldman, Brian Ferneyhough, Jonathan Harvey, Helmut Lachenmann, Gérard Grisey, Iannis Xenakis e muitos outros. É um feito um tanto notável para um clarinetista baixo, uma vez que esse instrumento não chega nem perto de figurar entre os instrumentos solistas mais frequentemente abordados nas grades de concertos dos grandes essembles e orquestras. O clarone, aliás, parece ser mais "popular" no jazz do que na música erudita, tendo como patrono Eric Dolphy, de quem Harry Sparnaay é um fã confesso -- aliás, a Dolphy credita-se muito do prestígio que o clarone ganhou a partir dos anos da segunda metade dos anos de 1960 para cá. Contudo, em torno de Harry Sparnaay foi desenvolvido todo um repertório específico para clarone que ainda precisa ser mais disseminado. Dois registros recomendados para se ter uma introdução no fantástico mundo de Harry Sparnaay e seu clarone contemporâneo são os dois álbuns que documentam as interpretações do Fusion Moderne, um duo que ele formava com o pianista Polo De Haas: o álbum Bass Clarinet Identity, lançado em formato LP em 1978 pela editora holandesa Composers' Voice, um exemplo precursor da interação do clarone com eletroacústica, tendo o Fusion Modern interpretando obras de compositores holandeses como Paul Termos, Jos Kunst, Ton De Leeuw, Joep Straesser e Enrique Raxach; e o CD Urgent (Atacca, 2002), que é uma compilação de interpretações diversas, incluindo peças que abordam a eletroacústica e a livre improvisação. Além dos álbuns com o duo Fusion Modern, Harry Sparnaay têm ao menos mais um álbum acessível nas plataformas digitais onde ele explora as possibilidades do clarone solo, bem como as possibilidades interativas com a eletrônica: trata-se Ladder Of Escape, onde o clarinetista aborda uma peça de Eric Dolphy, peças eruditas sortidas de compositores holandeses e peças livres com intuitos de mostrar as técnicas estendidas e extravasar a sonoridade do clarinete baixo com livres improvisos.

Outro álbum super interessante que descobri enquanto pesquisava mais registros relacionados ao clarone é este acima, primeiro EP lançado pelo clarinetista português Hugo Queiroz. Em Time and Motion (Orlando Records, 2020) o clarinetista aborda obras para clarone solo e clarinete contrabaixo compostas por Raphaël Cendo, Franco Donatoni, Brian Ferneyhough, Michael Jarrell e Johannes Maria Staud. Hugo Queiroz escolhe um repertório variado com peças escritas nos últimos 40 anos, sendo a complicada peça Time and Motion Study I (1977) para clarinete contrabaixo, escrita pelo compositor britânico Brian Ferneyhough (1943), a mais antiga peça aqui apresentada. Outra peça para clarinete contrabaixo aqui disposta é Ombra (1984), do compositor italiano Franco Donatoni (1927-2000). Afora essas duas peças para clarinete contrabaixo, as outras foram escritas para clarone. Registro vibrante!
Os concertos para clarinete e orquestra, ou clarinete acompanhado por ensembles maiores, também me soa uma viagem fascinante no âmbito mais modernista. Nesse âmbito iremos encontrar as mais variadas abordagens: o melodioso Duo Concertino para Clarinete e Fagote (1947) de Richard Strauss (1864-1949), por exemplo, apresenta uma interação fantástica de clarinete e fagote dentro da estética do romantismo tardio; o Concert for Clarinet, Strings and Harp de Aaron Copland apresenta uma estética lúdica do neoclássico americano, sendo uma peça escrita originalmente para o balé Pied Piper (1951); já o Ebony Concerto traz as exuberâncias timbrísticas e rítmicas características das inspirações jazzísticas de Stravinsky, sendo uma peça originalmente escrita para o clarinetista de jazz Woody Herman e sua big band, em 1945. Aliás, não é à toa que muitos compositores do século XX inspiravam-se em clarinetistas de jazz para escrever concertos para esse instrumento. Até finais dos anos 40, o clarinete foi um dos principais instrumentos solistas nas big bands do swing jazz, com exímios solistas que apresentavam seus ágeis e invejáveis fraseados sincopados e suas pirotecnias improvisativas. O Clarinet Concerto No. 2 Opus 115 do compositor inglês Malcolm Arnold, por exemplo, foi escrito para Benny Goodman -- um dos nomes centrais do swing jazz, e um dos poucos a brilhar tanto no jazz como na música erudita --, sendo estreado na edição de 1967 do Red Rocks Music Festival com Goodman acompanhado pela Denver Symphony Orchestra. Deixando aqui este prelúdio com indicações rápidas dos precursores concertos para clarinete no âmbito mais modernista, e seguindo essa linha de indicar concertos com abordagens variadas, abaixo comento 10 registros com concertos para clarinete:

Este álbum reúne peças baseadas na estética do romantismo tardio: de um lado o Clarinet Concerto (1949) Opus 31 e as 5 Bagatelles for Clarinet and Piano (1945) Opus 23 do compositor inglês Gerald Finzi (1901-1956); e de outro lado o Clarinet Concerto in A Minor (1902) Opus 80 e os 3 Intermezzi for Clarinet and Piano (1879) do compositor irlandês Charles Villiers Stanford (1852-1952). A clarinetista é a inglesa Emma Johnson que, além deste álbum, lançou vários outros pela ASV Records acompanhada pela Royal Philharmonic Orchestra. Com uma escuta fácil e agradável, as interpretações soam sensíveis, belas e serenes. Escolhi este álbum para indicá-lo aqui pelo fato dele registrar dois dos principais concertos da região do Reino Unido, e também pelo fato do álbum ser complementado com peças para clarinete e piano dos dois compositores, sendo um álbum inteiramente dedicado a esse instrumento. O Clarinet Concerto Opus 31 de Gerald Finzi tem uma beleza romântica passadista sedutora e, por certo, agradará os ouvintes mais afeitos ao repertório clássico.
Este álbum da clarinetista israelense Sharon Kam aborda peças e temas clássicos do repertório americano: abordando o Concerto for clarinet, strings and harp de Aaron Copland (1949); Prelude, Fugue And Riffs for jazz ensemble e solo clarinet de Leonard Bernstein, completada em 1949 para o clarinetista Woody Herman; Derivations For Clarinet And Band de Morton Gould (1955); o curioso Concerto For Clarinet composto pelo clarinetista de jazz Artie Shaw; e quatro canções de George Gershwin transcritas para clarinete. Como se pode atestar, todas essas peças são de compositores americanos neoclássicos que se inspiraram no jazz e na música tradicional americana. Mas ainda mais curioso é o fato de termos aqui um Concerto para Clarinete escrito pelo clarinetista do swing jazz Artie Shaw. Sharon Kam é acompanhada pela London Symphony Orchestra sob regência de Gregor Bühl.
Se o álbum anterior acima mostra alguns dos primeiros exemplos americanos de peças modernas nacionalistas para clarinete inspiradas pelo jazz, este álbum já evidencia um modernismo mais contemporâneo, já adentrando ao minimalismo e às interações eletrônicas. Este álbum foi lançado em 1999 e traz o maestro David Robertson à frente do Ensemble Intercontemporain -- diretor artístico do Ensemble de 1992 até 2002, antes de se tornar regente da St. Louis Symphony Orchestra -- abordando algumas das mais recentes peças americanas para clarinete dos anos 80 e 90. Uma dessas peças, inclusive, fora escrita anos antes ao lançamento deste álbum para o próprio Ensemble Intercontemporain: o Clarinet Concerto (1996) de Elliott Carter -- compositor americano adepto ao modernismo cerebral, abstrato e intricado -- foi encomendado para celebrar o 20º aniversário do Ensemble, e teve sua première em Janeiro de 1997 com o clarinetista Alain Damiens sob regência do maestro Pierre Boulez. Eliott Carter ainda colabora com mais uma peça: Gra (1993) for solo clarinet, a qual ele escreveu para comemorar o 80º aniversário do amigo e compositor Witold Lutoslawski. Essas peças de Carter expressam o lado mais modernista-atonal, o lado mais abstrato, que o compositor adotou a partir dos anos 60, sendo um dos compositores que fez o caminho inverso em relação a muitos dos seus colegas contemporâneos: enquanto alguns que iniciaram como compositores modernistas rumavam para as estéticas do nova consonância, do neoclássico e neorromântico, Carter volta de um início de composições tonais, nacionalistas e neoclássicas para firmar-se numa escrita modernista intrincada, abstrata e idiossincrática -- e essa guinada lhe conferiu sucesso, uma vez que muitos intérpretes e orquestras passaram a ver suas peças como únicas, ou seja, com poucos paralelos no repertório contemporâneo em termos de peças desafiadoras. Já a peça Tephillah (1997) for clarinet and electronics do compositor Howard Sandroff é uma das pioneiras peças com processadores de áudio manipulados por computadores Macintosh: a peça foi escrita, na verdade, em 1990 sob encomenda da divisão de instrumentos musicais da Yamaha Corporation of America, a pedido do clarinetista John Bruce Yeh da Chicago Symphony, e aqui a peça é reprogramada para ser interpretada pelo clarinetista Alain Damiens do Ensemble Intercontemporain. A peça Gnarly Buttons (1996) for clarinet and small ensemble de John Adams, por sua vez, é uma peça pós-moderna onde o compositor já estava diluindo seu minimalismo latente em uma miríade de elementos neoclássicos, neorromânticos, jazzísticos e até elementos da folk music: em gravações americanas deste concerto, por exemplo, o compositor incorpora sonoridades do folk caipira estadunidense com um banjo, um mugido de vaca e com pontuações rítmicas bem lúdicas. A peça mais antiga do álbum é a minimalista New York Counterpoint (1985) for clarinet and tape, que é fruto das explorações de drones repetitivos em interação com eletrônica que o compositor Steve Reich explorou durante um período inicial da sua carreira dos anos 70 até meados dos anos 80. O álbum traz, então, o Ensemble Intercontemporain dentro desse contexto da viagem do clarinete do moderno ao pós-moderno, passando pelo minimalismo e pela eletrônica. O solista em todas as peças é o clarinetista Alain Damiens.
Neste seu idiossincrático Concerto para Clarinete, o compositor americano John Corigliano tem a concretização de um sonho de juventude: poder escrever uma peça para a New York Philharmonic Orchestra e para o clarinetista Stanley Drucker. Isso porque o pai do compositor, John Paul Corigliano Sr., foi spalla dessa orquestra por 23 anos, período em que o pai levava o filho ainda criança para assistir os ensaios e concertos da filarmônica, na época regida por Leonard Berstein. Sendo uma das peças contemporâneas para clarinete mais executadas, é também um dos concertos mais difíceis: tanto para a orquestra quanto para o clarinetista. A peça insere o clarinete em uma cadência de densidade repleta de passagens agitadas, floreios, rompantes cintilantes de metais, espasmos percussivos e efeitos orquestrais impetuosos. A obra foi dedicada ao clarinetista Stanley Drucker e ao regente Leonard Berstein, os quais levaram-na ao palco para ser estreada em 6 de dezembro de 1977, no Avery Fisher Hall. John Corigliano compõe, então, essa peça com inspirações nessas lembranças de quando era criança e acompanhava seu pai nos ensaios, tendo feito amizade com todo o plantel da orquestra desde tenra idade. Este álbum acima é a primeira gravação da obra sob a regência de Zubin Mehta e tendo o próprio Stanley Drucker como interprete. Um dos mais impressionantes concertos contemporâneos para clarinete.

   
O compositor polonês Krzysztof Penderecki foi um mestre inconteste dos formatos extensos de concertos e sinfonias, apresentando em sua música uma fase atonal nos anos 50 e 60 e um romantismo tardio repleto de expressividade, sombreamentos misteriosos e dissonâncias melódicas inigualáveis nas décadas posteriores. Seu primeiro Concerto para Clarinete (1997) se origina, na verdade, de uma transcrição do seu Concerto para Viola (1983) e começa com o clarinete em um lamento melódico lento com um acompanhamento grave e misterioso, seguindo de fortes e fortíssimos majestosos antes de voltar ao lamento misterioso de outrora: o concerto trabalha, na verdade, com variações em torno de um mesmo motivo melódico, sempre flutuando entre andamentos lentos e andamentos rápidos (vivo e vivace), expondo a surpreendente criatividade do compositor em aplicar efeitos inventivos à cada variação. Já o Concerto Grosso No. 2, for five Clarinets and Orchestra (2004), encomendada pela Orquestra Sinfônica de Madrid, traz um único andamento de adágio com uma conversação mais lúdica entre os cinco clarinetes que se contracenam entre si e com a orquestra, que aqui já não soa sombria e misteriosa como no mencionado acima -- é um concerto mais lúdico e intimista para se observar os efeitos melódicos que esses entrelaces entre os cinco clarinetes e a orquestra proporcionam. Esse segundo concerto para cinco clarinetes é trabalhado na forma moderna do concerto grosso barroco, onde a intenção é fundir e entrelaçar esses instrumentos solistas nos arranjos da orquestra ao invés de apresentá-los como solistas sobressalentes. Para quem quer ter uma incursão mais extensiva e completa na obra de Penderecki, recomenda-se procurar esses e outros concertos a partir das compilações lançadas pelo selo polonês Dux Records.
Frank Zappa também tinha o clarinete entre seus instrumentos preferidos -- nutrindo uma grande admiração pelo clarone de Eric Dolphy. Ainda que não muito aparente, o clarinete é até frequentemente inserido nos ensembles e orquestras que dão luz aos seus registros instrumentais repletos de elementos do rock progressivo, fusion, free jazz, percussão erudita, colagens, e efeitos eletrônicos, vocais e etc. Mas a principal peça a destacar o clarinete em sua discografia é Moe and Herb's Vacation, apresentada no clássico álbum London Symphony Orchestra Vol. 1, contando com o clarinetista David Ocker (pupilo da clarinet master Michelle Zukovsky) e com o maestro Kent Nagano. Além de clarinetista, David Ocker foi o copista principal de Zappa e o principal responsável por programar seus teclados e sintetizadores. Assim como muitas das peças eruditas de Zappa partem de excertos das suas peças instrumentais progressivas, essa peça foi originada de dispersas versões menores de poucos minutos, as quais tiveram ao menos três títulos distintos: "Moe's Vacation," "Herb's Vacation," e finalmente "Moe and Herb's Vacation". A peça começa a originalmente tomar forma quando David Ocker começa a combinar com Zappa um aumento da sua remuneração como copista, chegando à conclusão que, ao invés do aumento, seria melhor que Zappa lhe escrevesse e lhe dedicasse uma peça para clarinete e orquestra como presente. Não é um concerto para clarinete nos mesmos padrões eruditos convencionais: há muita percussão inspirada por Edgar Varèse, abstrações instrumentais intrincadas, arranjos orquestrais extensos onde o clarinete não aparece, mas as partes onde o instrumento aparece são marcantes.
Após uma primeira fase experimental nos anos 80 e 90, o compositor finlandês Magnus Lindberg começou a mudar sua escrita para as estéticas neorromânticas e neoclássicas, passando a ser requisitado para ser o compositor residente em várias orquestras tais como a Filarmônica de Nova Iorque, a Filarmônica de Berlim e a San Francisco Symphony. Uma das obras que mais sintetizam essa mudança de rumo é o seu Concerto para Clarinete e Orquestra, concluído em 2002 e dedicada ao clarinetista finlandês Kari Kriikku, que foi amigo de Lindberg em seus estudos musicais pós-adolescência na Academia Sibélius. Desde sua estreia em Helsinque em 2002, esse concerto se tornou uma das peças contemporâneas mais executadas de Magnus Lindberg, consequentemente se tornando uma das peças mais executadas do repertório contemporâneo para clarinete. Curiosamente, esse concerto soa com arranjos orquestrais mais brilhantes e carregados, sem evocar tanto aquela melancolia nórdica com a qual alguns compositores escandinavos sinestesicamente retratam seus trópicos glaciais, lagos negros, montanhas de neve, suas temáticas vikings e outras imagéticas e poéticas nórdicas. A gravação mais indicada desse concerto está neste álbum acima tendo como solista o próprio Kari Kriikku ao lado da Finnish Radio Symphony (Orquestra da Radio Filandesa) sob a regência de Sakari Oramo. O CD ainda traz mais duas peças de Lindberg no mesmo estilo do seu neoclassicismo contemporâneo: Gran Duo e Chorale. Sobre o concerto, o próprio Magnus Lindberg fala um pouco sobre o que o inspirou e o que este concerto lhe representa: "I wrote the Clarinet Concerto for Kari Kriikku, whom I’ve known since the late 1970s: he studied harmony with me at the Sibelius Academy. So after 25 years I think we’ve developed quite an understanding – and I couldn’t have written it without him. During the summer, I work at my cottage on an island in the Gulf of Finland: the house has been in my family since the 1830s and it’s where I grew up. Kari Kriikku lives on the outskirts of Helsinki and though I could drive to his house, it’s much easier to take the boat. So each spell of writing the concerto ended with a wonderful recreation, a boat trip! It was a perfect reward. The Clarinet Concerto is a big work, not in length but in scale. Kari’s first words to me were “Write something fortississimo".
A compositora finlandesa Kaija Saariaho concebeu aqui um dos mais fantásticos concertos para clarinete das últimas décadas. Aqui sim: a compositora inicia sua escrita justamente com algumas nuances orquestrais largas, esparsas, intimistas e imagéticas e com tons e efeitos bem característicos da orquestração nórdica -- mas, logicamente, inflexionados de uma forma original, pessoal, inventiva. Em seguida, entra o clarinete-solista aplicando trinados, glissandos, distorções multifônicas e efeitos oriundos de técnicas estendidas de uma forma bem larga, subjetiva e esparsa -- sem um discurso, sem um fraseamento ou delineamento claro. É essa abstração nórdico-finlandesa expressa de forma tão original que faz desta peça um tipo incomparável de concerto de clarinete. Sobre a obra, posteriormente a compositora explicaria o motivo de ter imprimido nessa peça formas e tons tão idiossincráticos: "...the clarinet part began to be increasingly soloistic, and I found the instrument was speaking to me in a new way". A peça foi inspirada pelo conjunto de tapeçarias medievais conhecido como The Lady and the Unicorn, exposto no Musée de Clun, em Paris. O conjunto das seis tapeçarias foram manufaturados para representar os cinco sentidos humanos, e aqui a compositora nomeia cada uma das partes do seu concerto com esses sentidos e baseado nessas tapeçarias: "L'Ouïe" (audição), "La Vue" (visão), "L'Odorat" (olfato), "Le Toucher" (tato) e "Le Goût" (paladar). Um sexto e último sentido é incluído como temática do último movimento e é intitulado "A mon seul Désir", sendo este dedicado ao sentido do desejo. Além do intuito de trabalhar essas temáticas dos sentidos e desejos humanos de forma subjetiva e sinestésica, a partitura requer que o solista se mova pela sala de concerto durante a apresentação -- sendo, portanto e também, um concerto performático. A compositora também explica essa outra aplicação curiosa da performance do solista: "It came as a surprise even to me that the work began to come alive in its space, and that the clarinet – itself a unicorn – plays only some of its music in the soloist's position. This appropriation of space became an inherent element of the work at the composition stage". Kaija Saariaho também dedica este seu concerto para o célebre clarinetista finlandês Kari Kriikku.
Financiado pela Milken Family Foudation e lançado pela Naxos, este álbum acima, Klezmer Concertos and Encores, é um dos inúmeros títulos do catálogo da Milken Archive of Jewish Music que compila e documenta a música judaica nos EUA. Este registro, apesar de não ser arrebatador, é um exemplo substancial da aplicação da klezmer music judaica na música erudita contemporânea a partir de obras de grandes compositores de descendência judia com histórico de estadia nos EUA: Robert Starer (1924-2001), Paul Schoenfield (b. 1947), Jacob Weinberg (1879-1956), Abraham Ellstein (1907-1963) e Osvaldo Golijov (b. 1960). A peça mais idiossincrática em termos de elementos inventivos é a Rocketekya de Golijov: a peça combina solos de clarinet klezmer, violino, contrabaixo e eletrônica. Embora aqui neste álbum haja peças e concertos abordando a flauta e o canto lírico, o destaque fica por conta do clarinete de David Krakauer, um especialista em klezmer, jazz, música erudita e avant-garde, colecionando colaborações e parcerias que vão desde John Zorn até o Kronos Quartet, além das suas explorações autorais que englobam de música de câmera às interações do clarinete com a eletroacústica. Os solistas aqui nesta compilação estão acompanhados da Orquestra Sinfònica De Barcelona I Nacional De Catalunya, Rundfunk-Sinfonieorchester Berlin e Seattle Symphony Orchestra.