Este quarto disco do pianista recifense Amaro Freitas é um registro que exprime suas pesquisas da ancestralidade brasileira em relação à riqueza expressiva que as diásporas negras nos ofereceram -- sem deixar de explicitar, também, resquícios da música afro-americana, que sempre nos foi uma genuína influência. Liderando o seu já aclamado piano-trio, Amaro Freitas é dotado de uma sensibilidade única que congrega uma certa habilidade para o jazz contemporâneo de verve post-bop com noções rítmicas e harmônicas brasileiras, e sem que isso soe folclórico ou passadista -- sempre deixando a rica rítmica do Nordeste do Brasil diluída em seus temas e improvisos, quando não implícitas. Sankofa é um título que vem de um ideograma presente das simbologias africanas do adinkra e é idealizado pela figura de um pássaro com a cabeça voltada para traz: e, para Amaro Freitas, isso quer dizer voar em direção ao futuro sem deixar de estar enraizado com sua ancestralidade. Freitas conta que se deparou pela primeira vez com o símbolo em um manto que estava sendo vendido numa feira africana no Harlem, Nova York, e achou auspicioso para conceituar seu álbum, ainda mais considerando que o Harlem é um dos nascedouros do jazz e casa de alguns dos grandes pianistas da história. Com esse conceito, o pianista usa aqui temáticas baseadas em várias simbologias, personalidades e figuras ancestrais para dar vida a seus temas. A faixa "Baquaqua" é uma homenagem à Mahommah Gardo Baquaqua, que foi trazido como escravo da África Ocidental para o Brasil, mas fugiu para Nova York em 1847, onde aprendeu a ler e escrever -- em uma autobiografia publicada pelo abolicionista americano Samuel Moore há um único relato conhecido dessa figura sobrevivente da escravatura brasileira. A faixa "Vila Bela" leva o nome de uma localidade próxima à fronteira com a Bolívia, na região do Mato Grosso, onde a rainha quilombola do século 18, Tereza de Benguela, liderou a comunidade negra e indígena na resistência à escravidão por duas décadas. A faixa "Nascimento" homenageia o cantor e compositor brasileiro Milton Nascimento, com quem Freitas gravou um EP recentemente e para quem guarda a mais alta admiração -- Milton é, sabidamente, um dos maiores artistas brasileiros a nível mundial e um exemplo de ícone negro que enriqueceu a música com seu canto, sua sensibilidade musical e sua poética cheia de amizade, paz e humanidade. E, assim, Amaro Freitas segue com uma homenagem em cada faixa, sempre com temas marcantes repletos de sombreamentos melódicos e harmônicos que trazem esses ecos ancestrais para uma música do presente que tenta se projetar ao futuro. Há, além de tons brasileiros e jazzísticos, algumas tonalidades um tanto neo-soul e até alguns procedimentos de efeitos repetitivos minimalistas que dão uma atmosfera ainda mais contemporânea ao álbum. Interessante também notar que neste registro na maioria das vezes o piano de Amaro Freitas tende a dar mais ênfase nas exposições dos temas e nas repetições de alguns dos seus tons principais do que aplicar longos improvisos sobre eles. O contrabaixo de Jean Elton contribui de forma magistral com os vários grooves -- que, aliás, podem variar algumas vezes até mesmo dentro de um mesmo tema. A bateria e percussão de Hugo Medeiros soa na medida, aplicando efeitos específicos de pratos e baquetas de acordo a dinâmica de cada momento.
Fred Frith é um dos guitarristas experimentais e improvisadores mais icônicos das últimas décadas: sua arte consiste em dialogar com ruídos, emitir os sons mais inconcebíveis por meio de técnicas estendidas e criar combinações ruidosas exóticas, tanto com instrumentos e objetos como também com aparatos eletrônicos. E aqui ele encontra sua amiga e parceira de longa data Ikue Mori, musicista e improvisadora especializada em eletrônicos, uma das precursoras e pioneiras do uso de programas de laptop em interações em tempo real com improvisadores. O encontro se deu através de um convite do cineasta Werner Penzel fez para que os dois criassem trechos para a trilha do filme Zen for Nothing (2016). O encontro se deu em 2015 na Alemanha e, após a gravação dos trechos para o filme, Fred Frith e Ikue Mori decidiram usar o tempo livre que restava no estúdio para gravar um duo de peças improvisadas. Na verdade, há pelo menos quatro décadas que os dois improvisadores se encontram regularmente em projetos partilhados com outros músicos, tanto em projeto de ambos como em projetos de terceiros e concertos ao vivo -- um desses encontros, inclusive, pode ser presenciados no box de 3 CDs lançado em nome de Fred Frith, Live at the Stone (Intakt, 2019). Contudo, este é o primeiro álbum em duo que os dois gravam sem estar acompanhados de outros improvisadores. E essa inédita interação de intimidade musical, vinda de dois músicos que se conhecem bem em dinâmicas e ruídos, não poderia ter surtido melhores efeitos do que aqui.
O Electro-Acoustic Ensemble foi formado em 1990 por Evan Parker e Paul Lytton como um sexteto para explorar as possibilidades de processamento eletrônico em interação com as ruidagens acústicas no contexto da livre improvisação europeia -- e desde sempre foi um ensemble que se propôs a "compor" peças espontâneas por meio da improvisação livre com a mesma propriedade que um genuíno ensemble erudito dispõe diante de uma composição escrita em pauta. A quem possa interessar, os registros lançados por este ensemble foram editados pela gravadora alemã ECM, e podem ser encontrados com certa facilidade. Contudo, já fazia quase uma década desde que o último registro fora gravado. O ensemble volta, então, em 2019 no festival Ad Libitum de Varsóvia e ganha agora essa bela edição do selo polonês Fundacja Słuchaj -- um selo cheio de ótimos registros de improvisadores europeus, diga-se de passagem. Desde sua formação inicial em 1992, o Electro-Acoustic Ensemble contou com a passagem e a colaboração de diversos improvisadores. Nesta última encarnação, Parker e Lytton permanecem como os únicos membros fixos desde o início do projeto e temos também a participação da dupla de manipuladores de eletrônica do projeto FURT, composta por Richard Barrett e Paul Obermayer, a qual colabora com o ensemble desde 2007. Outros participantes aqui incluem o clarinetista Peter van Bergen, que começou colaborando com ensemble em 2010 e cinco músicos recém-chegados: Adam Linson, contrabaixo e eletrônica; Matt Wright, laptop e toca-discos; Percy Pursglove, no trompete; Mark Nauseef, na percussão; e Sten Sandell, no piano e sintetizador. A ruidagem aqui combinada de sons acústicos-instrumentais com sons eletrônicos nos fornecem uma música híbrida de atmosferas e extratos sonoros indescritíveis.
Neste álbum, lançado como um projeto que se inspira nessa fase de isolamento social exigido pela pandemia da COVID-19, temos uma compilação de 15 faixas divididas em 2 LP's que foram gravadas no decorrer dos anos nas edições do Unsound Festival, um festival de música eletrônica criativa que tem sua base e sua curadoria na cidade polonesa da Cracóvia, mas também conta com produções em cidades como Toronto, Nova York, Adelaide, Londres e cidades da Europa Oriental, Ásia Central e Cáucaso -- tendo uma ampla parceria, inclusive, com curadores e artistas da região pós-soviética. Contracenando artistas renomados com artistas emergentes, o festival abrange várias estéticas da música eletrônica contemporânea, indo das batidas mais pop até a exploração mais experimental da noise music, mas quase sempre estando alinhado com um conceito criativo mais próximo à ambient music. Para se ter uma ideia da verve criativa empreendida por seus curadores e artistas, a primeira edição, acontecida em 2003, terminou com os artistas sendo expulsos de um clube por tocar uma música que era muito estranha para os regulares clientes do local. Contudo, seus curadores decidiram manter o festival até que ele se tornasse conhecido e anualmente produzido não apenas na Polônia, como também em outros países. Outra curiosidade é o projeto conhecido como Ephemera, no qual o renomado perfumista Geza Schoen cria "composições olfativas" baseadas nas ressonâncias e reverberações eletrônicas empreendidas pelo Unsound Festival, tendo criado com base nesse festival uma série inovadora de perfumes chamada Escentric Molecules, série na qual o perfumista lança seus mais conceituais e vanguardistas aromas com base nessa pesquisa de "sinestesia olfativa" que há entre os sons eletrônicos e o cheiro. Na primeira fase do projeto, o perfumista criou perfumes com base em peças eletrônicas de artistas como o designer de som australiano Ben Frost, o artista sonoro canadense Tim Hecker e o DJ escocês Steve Goodman (também conhecido como Kode9): com base nas criações sonoras destes três manipuladores de eletrônicos, o perfumista criou, então, três aromas diferentes que tiveram considerável aclamação de público: Noise, Drone e Bass. Interessante notar, também, que esse projeto inclui que esses e outros aromas não apenas sejam encapsulados em frascos como perfumes exclusivos, mas também sejam frequentemente usados para aromatizar ambientes de performances e instalações artísticas, tendo como sons-ambientes as exatas trilhas sonoras que os inspiraram. A produção deste álbum duplo teve apoios e cofinanciamentos do Município de Cracóvia, Fundusz Wsparcia Kultury, We Are Europe, SHAPE, Creative Europe, Adam Mickiewicz Institute, Goethe-Institut, Music Norway e Austrian Cultural Forum.
O pianista erudito e designer sonoro Shi-An Costello, natural de Chicago, empreende uma curiosa carreira onde as recriações de peças de Bach, Scarlatti e Haydn convivem sem nenhum conflito estético com projetos eletroacústicos e experimentais -- ficando evidente, lógico, que o músico preza sempre por uma elaboração inteligente e requintada em seus projetos. Este álbum acima é o registro de um projeto de comissionamento de obras compostas para piano preparado por jovens compositores americanos tais como Viet Cuong, Marina Kifferstein, Aeryn Santillan, Mischa Salkind-Pearl, Danny Clay, Alex Temple, Michal Massoud e Dorothy Chan. A ideia de Shi-An Costello para este projeto foi dar ao seu piano a mesma configuração de piano preparado com ligas metálicas que o conceitualista musical e compositor John Cage (1912 - 1992) empregou em suas Sonatas e Interlúdios para Piano Preparado de 1948. Dessa forma, Shi-An Costello não apenas faz o trabalho de preparação caseira do seu piano e da curadoria de reunir obras desses compositores, como também atua como intérprete dessas obras num álbum que une sensibilidade melódico-harmônica com a faceta conceitual de extrair novos timbres acoplando metais nas cordas do piano. Em algumas peças há, também, a sempre bem vinda interação entre a timbrística do piano preparado com sons eletrônicos -- que é das combinações contemporâneas que mais nos fascinam.
Este é o segundo registro da imersão do baterista Gerald Cleaver em improvisações eletrônicas -- o primeiro álbum chama-se Signs e também foi editado pela 577 Records, em 2020. Gerald Cleaver -- que é um dos mais multifacetados bateristas do jazz contemporâneo, frequentemente colaborador de grandes músicos tais como Matthew Shipp, Jeremy Pelt, Ivo Perelman, Charles Gayle, Craig Taborn, Miroslav Vitous, dentre muitos outros --, mostra toda sua proficiência em uma seara na qual tem sido cada vez mais comum que músicos de jazz adentrem para dar um tom mais contemporâneo às suas composições ou mesmo para mostrar suas abstrações, imaginações e suas combinações timbrísticas mais inovadoras: a exploração de instrumentos eletrônicos. E seja qual for a confusão de rótulos que se empregue para essa música eletrônica mais criativa, composicional e improvisativa -- sendo comum críticos relacionarem essas criações com rótulos como nu jazz, jazztronica, IDM (Intelligence Dance Music), breakbeat, drill'n'bass, drum'n'bass e etc --, podemos perceber que a eletrônica tem oferecido um amplo universo de novos sons a se explorar, sendo, sem dúvidas, um dos recursos a continuar a moldar o futuro do jazz e da música em geral. No caso de Gerald Cleaver, embora só agora mais recentemente o baterista tenha imergido nessa seara, a eletrônica é uma influência que praticamente percorre suas veias: o baterista é de Detroit, a capital americana da música eletrônica, onde os afluentes do soul jazz e do jazz-funk sempre estiveram presentes e inundaram o cenário da house e da techno music entre meados dos anos 80. Sendo um álbum de atuação solo -- com o baterista atuando com teclados, sintetizadores vários, bateria eletrônica e outros aparelhos --, a essência deste álbum em termos de inspiração é a de homenagear a "tribo", os "griots", a "comunidade" musical que cerca o músico -- lembrando que "griots" é um termo que advém da cultura africana e está relacionada aos anciãos responsáveis por passar as influências, sabedorias e os costumes para os mais novos. Cada uma das faixas apresentam texturas e combinações rítmicas diferentes e cada uma delas é inspirada em um grande músico ou algum tipo de influência do círculo de convivência e da admiração pessoal de Gerald Cleaver: sua mãe em "Remembrances"; o legendário pianista Cooper-Moore; o icônico saxofonista Faruq Z. Bey, que atuou em Detroit com a banda Griot Galaxy nos anos 80, muitas vezes apresentando idiossincráticas composições em métricas rítmicas inusuais; o baterista Victor Lewis; a icônica pianista Geri Allen; o trompetista Ambrose Akinmusire, que também participa nessa faixa dedicada a ele; e assim por diante. Gerald Cleaver ainda conta com o pianista e tecladista cubano David Virelle e apresenta dois remixes usando dois excertos: um do Buena Vista -- deixando implícita sua admiração pela percussão cubana -- e outro do contrabaixista William Parker. O que Gerald Cleaver realiza aqui, enfim, é criar combinações onde as inspirações e influências rítmicas e sonoras soem implícitas numa amálgama inovadora de ideias eletrônicas, mas que, ao mesmo tempo, deem o tom de mistério e curiosidade que incitará o ouvinte mais aplicado a querer saber de onde ele tirou tais ideias. Griots foi editado pela 577 Records, e é também distribuído pelos selos Positive Elevation e Meakusma.
Aqui estamos diante de um registro onde podemos presenciar as mais tórridas psicodelias inseridas no contexto do free jazz e da improvisação livre europeia. Ao convidar o compatriota Rodrigo Pinheiro para assumir os teclados, o guitarrista português Luís Lopes reedita aqui seu Lisbon Berlin Trio -- com o qual já lançara álbuns pela Clean Feed em 2011 e 2014 -- e nos apresenta um quarteto da mais incendiária sonoridade. O Lisbon Berlin Trio é reeditado, então, como Lisbon Berlin Quartet e traz seus dois músicos de Lisboa e seus dois músicos de Berlim: Luís Lopes na guitarra, Rodrigo Pinheiro nos teclados, Christian Lillinger na bateria e Robert Landfermann no contrabaixo e efeitos. A polirritmia de beats e pratos defenestrados pela bateria de Christian Lillinger mistura-se numa fantástica e densa massa sonora produzida pelos dedilhados e efeitos do contrabaixista Robert Landfermann, dos teclados de Rodrigo Pinheiro e da guitarra psicodélica de Luís Lopes, nos proporcionando um autêntico exemplo do free jazz contemporâneo com uma sonoridade marcada por eletrificações, distorções e timbrísticas cruas. O encarte traz, em suas notas, observações de que a temática do álbum é inspirada pelas ameaças fascistas -- do nazismo de Hitler e da ditadura de Salazar -- que infelizmente ainda hoje ecoam de um passado sombrio.
É impossível ser entusiasta do free jazz contemporâneo sem passar por ao menos um registro onde a surpreendente pianista Silvye Courvosier esteja presente nas listas anuais de lançamentos -- uma pianista de sensibilidade única e muitos recursos (inclusive eruditos). Courvosier -- suíça, naturalizada norte-americana -- é uma artista que sempre esteve mais a dispor de projetos colaborativos e gravações colideradas com outros músicos americanos e europeus do que propriamente em registros solo onde seu nome venha aparecer sozinho. Contudo, ano a ano, a pianista está sempre presente em bons registros. Em 2017, Silvye Courvosier já havia lançado o ótimo registro In Cahoots, pela Clean Feed, onde ela vem acompanhada de Ned Rothenberg nos sopros e do marido Mark Feldman no violino. Neste álbum acima, ela reedita a parceria com Rothenberg (sax alto, clarinete, clarone e shakuhachi) e conta também com o baterista e percussionista suíço Julian Sartorius. O registro acima é composto de oito faixas compostas pelos três músicos, as quais trazem temáticas inspiradas pela pandemia da COVID-19, mais especificamente pelas sensações, sentimentos e ideias que o processo de isolamento social e interrupção das atividades públicas impostos pelos governos, e conhecido como "lockdown", gerou para esses músicos e para a sociedade como um todo. As faixas são dotadas de abstrações sonoras que flutuam entre a composição escrita e o livre improviso indefinível, entre as texturas sombrias e misteriosas e os improvisos mais efusivos, entre o abstrato expressionista e o abstrato impressionista -- tudo para capturar essas ideias, sentimentos e sensações impostos pelo lockdown. Atenção para como a pianista explora efeitos sensíveis com as teclas graves e agudas do piano em meio à densidade dos sopros e dos efeitos percussivos das baquetas e pratos.
Este é, certamente, um dos registros mais criativos editados pela Shhpuma, subsidiária da Clean Feed Records, nessa temporada 2021 de lançamentos -- e já me arrisco a dizer que, se formos relacioná-lo num ranking junto com todos os outros registros do universo Clean Feed, este poderia figurar facilmente como um dos melhores lançamentos da editora portuguesa nesses seus 20 anos de existência. Temas em ritmos e grooves angulares, drum set polirrítmico, kits inúmeros de percussão e bricolagem, ruídos vários (acústicos e eletrônicos), livres improvisações vocais ou vozes texturais (cantadas e faladas), uma guitar rock psicodélica e efeitos eletrônicos atmosféricos e reverberantes são alguns dos elementos misturados neste salseiro freejazzístico e noisecore -- e que não soa apenas free jazz em sua forma totalmente cacofônica ou apenas ruidoso nas formas mais indefiníveis do noisecore, mas também soa com passagens onde podemos identificar um jazz altamente estruturado nos meandros do modern creative. A banda aqui presente chama-se The Killing Popes e recentemente já havia lançado o álbum Ego Pills (Shhpuma, 2019) com sua formação original com os músicos alemães Oli Steidle (bateria, percussão, marimba) e Frank Möbus (guitarra), e os músicos ingleses Dan Nicholls (teclados, sintetizadores, bass, sampling) e Phil Donkin (contrabaixo) -- tendo a colaboração, também, do alemão Phillip Gropper (saxofones). Agora, aqui neste registro, a banda vem com os mesmos integrantes e recebe as adições de Jelena Kuljić (voz, sampler), Nathalie Sandtorv (voz) e Liv Nicholls (backing vocals). E é essa adição de vozes que deixa os experimentos ainda mais interessantes. Exemplo seminal de como a subsidiária portuguesa Shhpuma Records pretende enriquecer ainda mais a música criativa europeia.
Mammal Hands é um quarteto de jazz de Manchester, Inglaterra, onde bandas e músicos como GoGo Penguin, John Ellis, Matthew Halsall, Noya Rao, Phil France e Portico Quartet fazem a cena, sempre bem aparados pela gravadora independente Gondwana Records. Donos de um jazz sempre muito embebecido por temas pop, influências advindas da eletrônica, do indie rock mais atual e das texturas pós-minimalistas -- combinação contemporânea que pode não agradar os mais puristas e os menos ecléticos --, é inegável que os músicos da banda Mammal Hands e seus conterrâneos estejam enriquecendo a cena instrumental inglesa com um som que emite uma vibrante contemporaneidade. A banda é formada por Jordan Smart nos saxofones, Nick Smart no piano e Jesse Barrett empunhado seu drum kit e tablas -- sem mencionar os eletrônicos pontualmente trabalhado pelos três músicos. Além dessa postura mais pop e pós-minimalista, é perceptível como esses músicos também são entusiastas da world music, principalmente da música hindu. Neste seu mais recente álbum, preenchido totalmente por composições autorais, o trio tenta trabalhar sentimentos, opiniões, ideias, crenças e espiritualidades relacionados à ancestralidade, inconsciente coletivo, pertencimento à uma vida ou à um local, destino, pessoas como espíritos reencarnados e outras impressões. Unindo uma certa sonoridade pop contemporânea com uma notável fluência jazzística, seus temas e improvisos soam quase sempre como hits e riffs marcantes que têm como ideia principal construir verdadeiras trilhas sonoras, ou de construir uma sensação imagética das temáticas propostas.
Recém chegado na gravadora britânica Edition Records, em 2019 o saxofonista Chris Potter lançava seu excelente álbum Circuits com uma capa ilustrada por um circuito eletrônico, e numa paleta de cores que enfatiza o colorido harmônico do jazz contemporâneo em meio às imersões eletrônicas. O registro foi lançado logo nas primeiras semanas daquele ano e foi logo ovacionado com as mais positivas críticas, deixando os críticos e fãs a se perguntarem se os próximos tentos seriam tão bons quanto esse Circuits. Naquela ocasião, o saxtenorista teve a colaboração de Eric Harland na bateria, James Francies nos teclados (piano elétrico, sintetizadores, samplers e afins) e Linley Marthe no contrabaixo elétrico, formando com esses músicos uma das principais bandas de então nos meandros do post-bop contemporâneo. Esse álbum Circuits evocava, então, alguns traços e sonoridades que Chris Potter já empreendera no passado, mas expandia as tratativas em torno das aplicações eletrônicas: podemos dizer que trata-se de uma franca evolução ao seu extinto quarteto Underground, grupo com o qual, em meados dos anos 2000, passou a explorar um sofisticado post-bop com beats e grooves de funk, texturas fusionistas e releituras a temas do pop e rock contemporâneos. Com a pandemia da COVID-19 interrompendo todas as atividades públicas, a banda só pôde retornar ao estúdio em Setembro de 2020 numa das flexibilizações das exigências sanitárias, só podendo lançar este álbum acima em Maio deste ano de 2021. Aqui em Sunrise Reprise, Chris Potter retorna com a mesma banda, mas agora em trio com o tecladista James Francies e o baterista Eric Harland, sem contrabaixo -- com uma sonoridade mais crua, mas sem perder aquele frescor contemporâneo que surpreendeu a todos em 2019. Muito interessante, aliás, como que os graves do contrabaixo são substituídos aqui pelo talento do tecladista James Francies, ao passo em que a impressionante fluência e sagacidade dos fraseados do saxofone de Chris Potter e as polirrítmicas marcações da bateria de Eric Harland se dialogam e se contrapõe por entre as harmonias do Fender Rhodes e outras teclas. Chris Potter, enfim, não pára de surpreender! Tanto no anterior Circuits em quarteto como aqui neste Sunrise Reprise em trio, Chris Potter mostra sua sofisticada verve composicional e faz uma fusão ultra-moderna usando sua já conhecida fluência em frases sofisticadas ao estilo do post-bop contemporâneo com base em beats funkeados, grooves polirrítmicos e texturas eletrônicas. Um trio que soa com tantos recursos e possibilidades que nos dá a impressão de haver mais músicos presentes tocando na banda. Chris Potter também inclui baladas em seu repertório e faz uso da flauta em algumas passagens.
O californiano Carlos Gabriel Niño é um pesquisador de sonoridades, um produtor musical, percussionista, performer, arranjador, compositor, DJ, consultor musical, poeta e organizador de eventos... -- entre esses e outros ofícios, ele já foi produtor e apresentador de diversos programas de rádio para estações locais de Los Angeles e da BBC de Londres. Um dos seus projetos mais interessantes é o Carlos Niño & Friends com o qual lança registros desde 2009 e chega, com este álbum acima, em seu nono lançamento. O interessante nesse projeto -- que envolve misturas de jazz, eletrônica, texturas ambient, efeitos de percussão, world music, sons pré gravados e etc -- é que não há a imposição de uma coesão sonora ou linguística da música, não há um padrão estético delineável, e trata-se de um projeto totalmente aberto a novos convidados e novos ingredientes sonoros. Carlos Niño explica: "...the concept is really about me doing whatever I want creatively, with whoever I want. Just really freeing it up. These are the people I’m closest with personally. They’re literally my closest friends. They’re on the record because of that, and because they’re among my favorite musicians and people to collaborate with". Neste seu nono lançamento participam consagrados músicos locais de Los Angeles tais como o saxofonista Sam Gendel, o pianista e tecladista Jamael Dean e o guitarrista Nate Mercereau, bem como o aclamado baterista Jamire Williams e o mundialmente renomado saxofonista inglês Shabaka Hutchings.
O aclamado sax-altoísta Sam Gendel é um dos músicos principais a fervilhar a cena criativa de Los Angeles em meio a outros músicos consagrados tais como o contrabaixista Thundercat, o saxofonista Kamasi Washington e o percussionista, mencionado acima, Carlos Niño. Essa geração, inclusive, entra nas universidades do West Coast entre finais dos anos 90 e início dos anos 2000 para aprender música num contexto onde os avanços passados do jazz já estão definitivamente revalorizados e institucionalizados nas grades educativas, mas no mundo real eles se deparam com pop, hip hop, rock alternativo e muita eletrônica, e são naturalmente influenciados por essas sonoridades contemporâneas. Em entrevistas, Sam Gendel conta, inclusive, que um dos incidentes que o fizeram buscar sua própria voz e pesquisar suas próprias misturas foi o fato dos colegas da universidade compararem seu som com o do saxofonista Kenny Garrett, o que gerou um sentimento de não estar sendo original e não estar sendo verdadeiro consigo mesmo: "I realized I couldn’t be that and switched gears entirely. I spent hours in a practice room, just trying to understand my own sound" -- explica o músico. Este álbum independente acima, pois, é fruto da solitária atividade de Gendel -- em meio às imposições dos seguidos lockdowns por causa da pandemia -- em reunir suas gravações caseiras e gravações públicas com amigos que nunca haviam sido lançadas e há muito tempo estavam arquivadas em seu disco rígido. A antologia acima de Sam Gendel reúne, então, 52 faixas ecléticas coletadas do seu arquivo pessoal e compreendem um período de 2012 à 2020, mostrando exatamente as misturas de sonoridades que ele e seus amigos estavam buscando. Com um arquivo majoritariamente constituído de gravações caseiras e solitárias das suas buscas sonoras, as outras faixas que gravou com amigos conta com participações de músicos como o percussionista e DJ Carlos Niño, o baterista Jamire Williams, o guitarrista Daniel Aged, o contrabaixista Gabe Noel e o baterista Philippe Melanson.
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