Para nós, jazzófilos, poucas audições são tão entusiasmantes quanto o ouvir de um bom álbum de big band. O formato da orquestra de jazz, também denominado com o termo "big band", teve em Duke Ellington um moderno e efetivo polimento sonoro já na década de 1920. Nos anos de 1930, com a efervescência culminada pelo estilo do swing jazz, as big bands praticamente dominaram as cenas de Chicago, Los Angeles, Kansas, Nova Iorque e de outros estados americanos, se tornando a forma de banda mais popular da América, frequentemente tendo um grande crooner (um grande cantor popular) como membro -- e passa a ser um dos formatos mais populares do mundo, considerando que a hegemonia econômica e cultural dos EUA possibilitaria que o formato de big band fosse exportado para países da Europa e para o Brasil, por exemplo. Nos anos 40, o swing jazz chega em sua fase de saturação e as custosas big bands começam a dar espaço para as pequenas bandas de bebop, estilo de jazz onde cada músico poderia formar seu próprio quarteto ou quinteto e se apresentar pelos clubes das ruas de Nova Iorque: era o jazz abandonando a dança de salão, adotando uma linguagem visceral e moderna que lhe daria o status de música-arte (em comunhão com os adventos modernos da música erudita de Stravinsky e da pintura de Picasso, por exemplo), e adotando novas combinações instrumentais e novos formatos que lhe permitiria invadir as ruas, os clubes, apartamentos e lofts -- futuramente, aliás, o jazz adentraria cada vez mais para o underground, ao passo em que o soul, o rock e o funk chamariam para si todas as atenções comerciais. Aos grandes titãs das big bands sobraram duas únicas alternativas: insistir no swing passadista com grandes chances de naufrágio ou navegar a favor das ondas de inovações trazidas pelas vanguardas da época. Poucos dos que insistiram no velho estilo sobreviveram ao modelo custoso das big bands numa época em que o declínio desse formato foi generalizado: Count Basie, então lenda viva do Kansas, é um desses poucos. Já Duke Ellington e Stan Kenton, por exemplo, seguiram remando em direção da modernização do formato, praticamente criando amálgamas inovadoras e as mais modernas práticas de orquestração. Uma outra onda de inovações, ainda menos popular, foi idealizada pelo trompista, compositor e arranjador Gunther Schuller, fazendo surgir o conceito da amalgama rotulada como third stream: uma fusão do jazz moderno com a música erudita moderna. E é nessa intersecção de inovações pós Era do Swing onde se inicia nossa pesquisa.
A ideia deste post é apresentar álbuns -- históricos e novos -- que documentam as práticas que inovaram o formato das big band e orquestras de jazz, bem como suas correlações e extensões -- de Duke Ellington à Charles Mingus, de Gil Evans à Maria Schneider, de Ghunter Schuller à Wynton Marsalis, de Michael Mantler à Django Bates. Nas últimas décadas, os padrões composicionais, os arranjos e estruturas tradicionais de big band -- tal como conhecemos: focado apenas naqueles arranjos estridentes de metais embalados com walking bass em 4/4, swing dos anos de 1930, releituras de standards e ritmos dançantes tradicionais -- tem se tornado cada vez mais clichê e passadista mediante as inovações semeadas por compositores e arranjadores visionários como George Russell, Gil Evans, Bob Brookmeyer, Michael Mantler e, mais recentemente, Maria Schneider, John Hollenbeck e Darcy James Argues. Também há, na história do jazz, as formações orquestrais iconoclastas, ou seja, de músicos que radicalizaram ante aos padrões das big bands e dos combos convencionais, criando suas próprias concepções de prática orquestral no âmbito da improvisação livre: casos de Sun Ra e sua Arkestra, John Coltrane via o álbum Ascencion (Impulse!, 1966) (que é inspirado no revolucionário double quartet do álbum Free Jazz: A Collective Improvisation, lançado por Ornette Coleman em 1960), Michael Mantler com sua Jazz Composer's Orchestra, Anthony Braxton e suas versões estendidas de "creative orchestras", e do maestro Butch Morris e sua regência inovadora via gestuais ideográficos. No demais, este post também traz algumas abordagens de "jazz with strings" -- de álbuns de jazz com arranjos de cordas (violino, viola e cello) --, que em seus arranjos mais tradicionais e melodiosos é considerado um pastiche um tanto açucarado, mas que também apresenta aplicações criativas nesse percurso. A lista abaixo traz, portanto, os principais registros que definiram e que embalaram as inovações nos quesitos das big bands e nos mais variados quesitos, contextos e estilos de orquestração onde o gênero do jazz e suas correlações sejan centrais. Clique nos álbuns para ouvi-los e ouça a playlist no final do post.
Black Brown And Beige: A Duke Ellington Tone Parallel To The American Negro (Victor, 1946). Duke Ellington é um dos pais do formato big band e seu grande modernizador. Duke Ellington é considerado por muitos o mais emblemático bandleader e compositor da história do jazz -- um dos nomes de tanta relevância para a história da música quanto Beethoven, ou Stravinsky. Na busca de criar a mais genuína "american music" como um paralelo de grande intelectualidade e requinte frente à música erudita europeia, Ellington praticamente criou uma nova música orquestral americana com todas suas novas práticas de arranjo e novas formas de compor: seu carisma e maestria ao piano, suas inovadoras melodias e harmonias inflexionadas por elementos da canção popular e do blues, os inovadores e bem humorados efeitos com surdina, o inteligente jogo de sincopações e sobreposições entre os naipes, o brilhantismo dos metais, a forma como ele exigia que cada instrumentista fosse um solista habilidoso dentro da sua big band, as mudanças de rítmos e andamentos, sua ambição de não ficar preso apenas aos padrões comerciais da "música de salão" e do swing dance para criar peças mais longas e mais complexas... essas são apenas algumas das características ellingtonianas que criaram essa nova excelência em níveis de complexidade composicional e arranjo orquestral. Mas havia um outro desejo de Duke Ellington que era de alcance ainda mais difícil do que o ato de revolucionar a música: era o seu desejo de colocar os sentimentos afro-americanos suscitados pelo movimento Harlem Renaissance como temática principal no centro dessa criativa música orquestral, e fazer com que público e crítica reconhecessem a dívida indelével que essa nova música americana chamada "jazz" tinha com a figura cultural do negro afro-americano. Em 1931, numa entrevista à um repórter Duke expressou veementemente essa sua ousadia: "I'm going to compose a musical evolution of the Negro race" -- disse ele. Ele inicia, então, sua inédita faceta de compor peças temáticas e programáticas mais longas e mais cheias de arranjos, justamente para elaborar desenvolvimentos mais sofisticados e potencializar os elementos afro-americanos em sua música: caso das peças "Reminiscing in Tempo" (composta em 1935) e "Jump for Joy" (composta em 1941). Porém, o conceito de álbum constituído de um LP ainda não existia e os formatos comerciais da época -- dos compactos de vinis e das rádios -- exigiam temas de apenas 3 minutos, e essa temática racial mais direcionada à importância da história e da cultura negra era algo que sofria preconceito por todos os lados dentro da elitista comunidade nova-iorquina. Duke Ellington só consegue viabilizar a gravação da sua primeira peça mais extensa em 1943, quando o formato do LP já evoluía para possibilitar gravações de peças mais longas e quando seu empresário lhe consegue um concerto no Carnegie Hall, o mais afamado palco de Nova Iorque. Era a chance que Duke Ellington precisava para gravar e apresentar ao público a sua primeira suíte estendida: a Black Brown And Beige, completamente tematizada em sentimentos relacionados à figura do negro afro-americano. Na intenção de ser apreciado por um número considerável de espectadores, Duke até consegue promover seu concerto em revistas e jornais importantes tais como a Time, a Newsweek e o The New York Times. Porém, a recepção do público e da crítica ao concerto e ao álbum não foi das mais calorosas: a temática racial combinada com a complexidade orquestral da peça afugentou boa parte dos críticos e amantes do swing dance que estavam acostumados apenas com os belos e recorrentes temas de três minutos. Contudo, esse sentimento de dívida que os críticos e revisores ainda têm com essa obra chamada Black Brown And Beige apenas mostra o quanto Ellington foi ousado: foi uma das primeiras peças estendidas da história do jazz (ao lado de Rhapsody in Blue, de Gershwin), a primeira peça a ser composta nesse formato de suíte, e é considerada a primeira composição estendida de jazz a abordar tão profundamente uma real e urgente conscientização em torno da temática racial, tomando como inspiração temas como a escravidão, os 700 negros que saíram do Haiti para lutar na Guerra de Independência dos Estados Unidos (1775-1783), a emancipação dos escravos pós Guerra Civil (1861-1865) e a então situação marginalizada dos negros no Harlem. Com essa obra, Duke Ellington abre os caminhos tanto para a música de protesto como para uma ainda maior modernidade do jazz em termos de composição e orquestração.
Ellington Uptown (Columbia, 1948). Apesar de uma inicial aversão da crítica e público à essa nova fase de peças estendidas de Ellington, o compositor segue adiante com mais um registro orquestral fora de série -- e não parou mais: nos anos 50 e 60 seguiria compondo arranjos de longa duração e extensas suítes temáticas. Ellington Uptown é, na verdade, uma visceral evolução dessa sua nova abordagem. O álbum segue com a mesma temática afro-americana combinada com releituras e peças mais complexas e de maior duração, mas com uma energia ainda maior nos solos e arranjos e com uma maior dinâmica entre os naipes, uma maior variedade de andamentos, mudanças rítmicas e desenvolvimentos de blues, gospel e popular songs. A peça principal é "A Tone Parallel to Harlem (Harlem Suite), mais uma vez com o Harlem sendo a temática central. Mas aqui Duke também escala seus principais parceiros para colaborar com alguns arranjos e composições: vide os arranjos em "Skin Deep" (composição do baterista Louis Bellson, que aplica aqui um dos mais enérgicos solos de bateria da época) e "Take the "A" Train" (composição de Billy Strayhorn). A versão em CD, lançada em 2004, vem com a adição de mais seis faixas que compõe a "Liberian Suite", peça estendida que foi encomendada ao Ellington pelo governo da Libéria em 1947, em comemoração aos 100 anos da independência desse país africano.
The Atomic Mr. Basie (Roulette, 1958). Count Basie não foi um grande compositor no quesito de escrever peças cerebrais mais extensas ou no quesito de ter composto um grande número de originais em seu nome. Mas Basie personificou a excelência da big band no swing jazz dos anos 30 e continuou a fazê-lo mesmo quando o bebop chegava para substituir o estilo do swing como a nova sensação de modernidade. Se estabelecendo em Kansas, Basie trabalhou com o formato de big band praticamente toda sua vida e conseguiu manter seu estilo pessoal de swing jazz sempre em alta. Este álbum acima sacramenta o encontro de Basie e sua orquestra com as composições e os arranjos de Neal Hefti, considerado um dos grandes arranjadores dos anos 40 e 50 em termos de big bands, arranjos de cordas e similares. Neal Hefti começa a trabalhar com Basie em 1950 e manteria essa parceria por duas décadas, sendo arranjador e compositor fixo da banda. E este álbum acima evidencia a modernidade e a excelência que a big band de Count Basie alcançou com as composições e arranjos de Hefti. A temática da bomba atômica e da equação de Einstein na capa do álbum -- num momento emblemático de pós-guerra e de início de Guerra Fria -- associada ao requinte das composições e a um momento de revival das big bands nessa época da segunda metade dos anos 50 -- com Dizzy Gillespie e sua big band em alta, o sucesso Duke Ellington no Newport Jazz Festival, e etc --, foram alguns dos principais motivos para as faixas deste álbum terem alcançado boas posições nos principais ranking charts da época e para o álbum ter sido considerado, logo de imediato, um clássico do jazz. Destaque para o estilo pianístico de Basie preenchendo os espaços entre os rompantes orquestrais: as vezes ele emite um singelo solo com apenas a mão direita, e outras vezes usa as duas mãos em velocidade, evocando as formas do ragtime, stride e swing.
Bird With Strings (Mercury, 1950). Era o final dos anos 40, o bebop era a nova linguagem modernizadora do jazz e Charlie Parker, nome central dessa nova linguagem-arte, estava numa guinada impressionante na carreira quando grava estas sessões com um ensemble de cordas (com violinos, violas e cellos). O formato de "jazz with strings" não era novo -- era algo sempre presente em musicais e álbuns de canções --, e, para efeito de comparação, era até então considerado um formato comercial cuja palatividade não tinha qualquer correlação com as inovadoras e intrincadas improvisações do bebop em voga. Além disso, o repertório de Bird With Strings é constituído apenas de standards populares. Essas gravações, portanto, até hoje suscitam críticas e dúvidas em relação à escolha de Parker em se submeter a essa abordagem mais comercial e popular de tocar standards com melodiosidade açucarada, num momento em que a novidade da vez eram seus próprios temas, e as pirotécnicas improvisações do bebop recebiam cada vez mais associações com as modernistas e abstratas abordagens da literatura beatnick e das artes plásticas, por exemplo. "Teria sido escolha de Parker? “...”Ou teria sido uma condição lhe imposta por seu produtor, Norman Granz?". A história contada é que o próprio Parker teria tido essa predileção em tocar acompanhado de um conjunto de cordas e sugeriu uma gravação desse tipo a Granz, e o produtor fez o projeto acontecer: na ocasião, Parker estava no estúdio com Granz quando presencia uma das sessões de gravação do arranjador Neal Hefti gravando takes apenas com orquestra e um ensemble de cordas sem solista, e daí o próprio Parker teria pedido para atuar como solista junto ao ensemble. O fato é que os solos intrincados do mestre do bebop com acompanhamentos melodiosos de cordas caiu no gosto popular e o saxofonista foi logo convidado para se apresentar no Carneggie Hall, dando origem no registro "Charlie Parker With Strings – Midnight Jazz At Carnegie Hall". Daí em diante, vários músicos adotariam essa abordagem de "jazz with strings": Stan Getz, Clifford Brown, Dizzy Gillespie, Sonny Stitt, Milt Jackson...dentre tantos outros.
City of Glass (Capitol, 1951). Esta gravação espetacular pode ser considerada um dos primeiros registros a documentar uma peça estendida da fusão que ficaria conhecida como third stream. É uma fase em que Stan Kenton, principal bandleader da West Coast, chega ao auge do seu estilo de orquestração brilhante e cintilante de big band e decide, então, a ir de encontro cada vez mais de um estilo de jazz que ele passou a chamar de "jazz progressivo". Stan Kenton já tinha ideias próprias e inovadoras de orquestração no início dos anos 40, e seu laboratório orquestral ficou ainda mais avançado com a chegada do arranjador Pete Rugolo, que era fascinado pela exuberância das peças de compositores eruditos como Bela Bartok e Stravinsky. É dessa época o inovador registro Artistry in Rhythm (Capitol, 1946). Um dos elementos-chave da orquestração de Stan Kenton era ter um maior número de trompetistas em seu naipe de metais, com arranjos sempre em agudos cintilantes, o que conferia à sua orquestra um colorido-brilhante incomparável. Essa primeira fase com Pete Rugolo como arranjador é interessante porque é a fase em que Stan Kenton consegue equilibrar suas orquestrações inovadoras com as exigências comerciais do swing dance e da música popular da época -- ainda que o swing já não fosse a principal sensação. Mas a fase mais experimental viria a seguir com a chegada do jovem compositor e arranjador Bob Graettinger que, em 1947, apresentou a Stan Kenton duas das suas composições de então: "Thermopylae" e um poema sinfônico chamado "City of Glass". Se Pete Rugolo tinha uma predileção por Bártok e Stravinsky, Bob Graettinger já tinha uma predileção ainda mais arraigada pelas novas modernidades de Charles Ives e pelas atonalidades de Arnold Schoenberg, Anton Webern e Olivier Messiaen. Trocando o nome da sua orquestra por Progressive Jazz Orchestra, Stan Kenton maturou essas e outras peças de Bob Graettinger por quatro anos até conseguir um contrato com a Capitol Records para gravar essa música orquestral nova e perturbadora. Os arranjos presenciados nesta gravação de City of Glass, também evidenciam uma clara influência das concepções estendidas de Duke Ellington, principalmente na forma como Bob Graettinger escreveu os arranjos separadamente para cada naipe e para cada músico, criando inovadoras sobreposições entre saxofones e metais. Em alguns momentos as peças soam como uma espécie de "jazz sinfônico" com pouco uso da bateria, principalmente nos momentos que evidenciam modernos arranjos de cordas. Este é, enfim, um dos registros orquestrais mais interessantes da história do jazz pelo fato de Stan Kenton e Bob Graettinger conseguirem criar uma amálgama, uma exuberância e um colorido sem precedentes com essas composições, amalgamando dissonâncias advindas das modernidades europeias com suas brilhantes orquestrações de big band americana, e dando espaço para texturas mais cool e arranjos de cordas que se remetem à uma nova amálgama de jazz e música sinfônica. Participam do projeto a cantora June Christy e vários dos mais impressionantes instrumentistas que faziam sucesso no West Coast, incluindo o guitarrista brasileiro Laurindo Almeida (que na época se estabelecia por lá), os trompetista Maynard Ferguson, Conte Candoli e Shorty Rogers e os saxofonistas Art Pepper, Buddy Shank, Lee Konitz, Richie Kamuca, Lennie Niehaus, dentre outros. Ademais, uma outra figura importante relacionada a este disco é a presença de Ghunter Schuller nos bastidores, aqui participando como o writer das linner notes que foram impressas nos LP's. Ghunter Schuller, como veremos abaixo, era o principal idealizador e conselheiro quando o assunto era projetos deste tipo: de fusão do jazz com arranjos da música erudita.
The Birth Of The Third Stream (Columbia, 1957/ 1958). Fusões elementares de jazz com música erudita aconteciam desde os primórdios das big bands, assim como muitos compositores eruditos já enxertavam elementos jazzísticos em suas obras desde os anos de 1910...1920. Mas desde finais dos anos 40, esse conceito chamado third stream -- muito influenciado pela música erudita moderna de Stravinsky, Bartók, Ives, Copland, Milhaud e etc -- já vinha se desprendendo tanto da concepção "erudita" quanto da sonoridade de "big band" para uma concepção mais amalgamada, estendida e contemporânea de orquestra, concepção que conquista o status de vanguarda com as ideias do trompista e compositor Ghunter Schuller, que discretamente influenciou desde os arranjos orquestrais do cool jazz trabalhados por Gil Evans até as orquestrações mais viscerais e experimentais de George Russell e Charles Mingus. Na verdade, a definição estética com esse nome, "third stream", só seria explanada em 1957: ou seja, esse rótulo "third stream" era, na verdade, uma tentativa de Ghunter Schuller de explicar as fusões modernas de elementos da música erudita com os novos arranjos orquestrais que já vinham acontecendo pelo menos desde finais dos anos 40 -- vide, por exemplo, o álbum City of Glass gravado por Stan Kenton em fins dos anos 40, álbum que conhecemos acima. Segundo Gunther Schuller, esse nome "terceira corrente" era, então, apenas uma definição para uma nova possibilidade de fusão criativa que vinha sendo recorrente: ou seja, existia a corrente da música erudita europeia, existia a corrente do jazz, e agora existia uma terceira corrente criativa, uma nova forma de fusão que permitia amalgamar os elementos do jazz e da música erudita em peças híbridas. E esta compilação acima, intitulada The Birth Of The Third Stream, contém registros das principais peças que definem essa nova estética. A compilação reúne peças gravadas em dois registros: Music for Brass (Columbia, 1957) e Modern Jazz Concert (Columbia, 1958). Ambos os álbuns foram idealizados por Ghunter Schuller, mas também contém peças de outros contemporâneos: sua erudita peça "Symphony For Brass And Percussion, Op. 16", interpretada sob a batuta do maestro Dmitri Mitropolous; "Poem For Brass" composta pelo trombonista J.J. Johnson; "Three Little Feelings" composta pelo pianista John Lewis (do Modern Jazz Quartet); "Pharaoh" composta pelo clarinetista Jimmy Giuffre; "All About Rosie" composta pelo pianista George Russell; "On Green Mountain (Chaconne After Monteverdi)" escrita pelo compositor Harold Shapero; "Revelations (First Movement)" escrita por Charles Mingus; "All Set", escrita por Milton Babbitt; dentre outras. As inspiradas interpretações de Miles Davis como solista principal nas peças “Three Little Feelings” de John Lewis e “Poem for Brass” de J.J. Johnson foram determinantes para que o produtor George Avakian convencesse a Columbia Records a se comprometer com um novo projeto de Miles com Gil Evans: esforço que acabou por gestar o álbum Miles Ahead (Columbia, 1958). Foi a partir daí que a parceria de Miles Davis com Gil Evans foi reativada, gestando outros álbuns como Porgy and Bess (1959) e Sketches of Spain (1960). Percebe-se então que essa nova terceira corrente advinha de um fio condutor que só agora, após sucessivas evoluções, ganhava status de uma estética independente.
The Nubians of Plutonia (El Saturn, 1958-59/ 1966). Com seus primeiros registros germinativos datados entre 1953 e 1955, Sun Ra, o pai do afrofuturismo, começa sua carreira justamente como bandleader e arranjador de big bands e grupos de doo-wop (estilo de música vocal, descendente dos corais gospel acappella, formado por três ou quatro vocais, muito comum no início do R'n'B, um estilo precursor dos recorrentes backing vocals que seriam usados nos grupos e bandas posteriores de soul, funk e rock). É já entre 1956 e 1957, que Sun Ra surge em discos inteiros à frente da sua big band a qual ele distintamente chamaria de Arkestra. Essa fase pode ser apreciada em álbuns como Jazz by Sun Ra (Transition, 1957), Sound of Joy (Delmark, 1956/ 1968) e Jazz in Silhouette (El Saturn, 1959). E ainda que esses álbuns soem antenados com a estética da big band -- com claras influências de Duke Ellington, Fats Waller e Fletcher Henderson --, os temas compostos por Sun Ra já evidenciam motivos melódicos estranhos, um estilo teatral e imagético, e vários títulos místicos relacionados à planetas, cosmologia, temáticas do Egito e outras viagens. Mas é no álbum indicado acima, com faixas gravadas entre 1958 e 1959, onde temos o principal documento a evidenciar, com maior latência, o definitivo enviesamento de Sun Ra e sua Arkestra -- que, aliás, já recebia "nicknames" variados: Arkestra, Solar Arkestra, Myth Science Arkestra...entre outros -- para uma seara cada vez mais independente, exótica, abstrata e transcendente, refletindo ainda mais a sua fixação por cosmologia, astronomia, ufologia e afins. Tanto que, nessa fase do final dos anos 50, muitas dessas composições de Sun Ra eram relacionadas com o estilo musical rotulado como "exótica", que tinha o pianista Martin Denny como principal expoente. Normal: muito antes, em 1956, Sun Ra já era legitimamente o precursor de várias dessas estéticas de música transcendente e de vanguarda que haveria de surgir: afrofuturismo, exótica, space-age, free jazz, avant-garde, fusion, eletrônica...E é neste disco, pois, que Sun Ra começa expandir sua Arkestra para além do formato convencional da big band em busca de uma ainda maior transcendência: empunhando seus exemplares Wurlitzer e Clavioline (dois dos primeiros pianos elétricos, precursores do sintetizador), distanciando-se do swing ellingtoniano e do hard bop, deixando as rítmicas e sonoridades mais soltas e abstratas, mostrando com ainda mais força sua predileção pela percussão dos povos etíopes e egípcios de Núbia (o berço mais antigo da civilização humana, localizado entre Egito e Sudão), e solicitando que todos os músicos da Arkestra vestissem uma fantasia sideral para dar uma abordagem sempre teatral pra sua "big band". Aliás, Sun Ra chegava a pedir que todos seus sidemans -- saxofonistas, trombonistas e trompetistas -- também cantassem e se empunhassem de tablas, sinos, gongos e tambores para potencializar essa percussão transcendente com a qual ele mostrava inspiração nos povos etíopes e egípcios-nubianos. Portanto, passa ser recorrente, a partir deste álbum acima -- e nos próximos álbuns, que já seriam fortemente incursionados nos conceitos do free jazz -- que sua Arkestra soe dispersa ou simplesmente não soe como uma big band ou orquestra de jazz em muitos momentos: pois havia momentos em que os músicos simplesmente deixavam seus instrumentos e naipes de lado para cantar, batucar, ou mesmo para aguardar os momentos em que o próprio Sun Ra preferia aplicar sozinho seus devaneios, suas viagens sonoras e explorações com os primeiros pianos elétricos, celestas, e outros teclados precursores.
New York, N.Y. (Deca, 1959). Pouco se fala da importância de George Russell e das suas inovadoras contribuições ao jazz: talvez o maior inovador da harmonia do jazz moderno, e um dos grandes inovadores da composição jazzística e do arranjo orquestral. Seu trunfo foi as avançadas aplicações da sua própria teoria no campo do estudo do cromatismo modal reveladas em seu livro Lydian Chromatic Concept of Tonal Organization, lançado em 1953. O álbum The Jazz Workshop (RCA Victor, 1956), com um sexteto, é um dos registros onde ele inicia essa avançada aplicação harmônica. Mas esta experiência seria aperfeiçoada, sobretudo, a partir de dois dos seus primeiros álbuns onde ele utiliza-se do formato de uma moderna big band. Trata-se dos álbuns New York, N.Y. (Deca, 1959) com três composições suas e um medley de standards, e Jazz in the Space Age (Deca, 1960), esse de colorido ainda mais cromático apenas com seus temas autorais. Membros da sua big band nesta época incluem nomes importantes como Benny Golson, Phil Woods, Jon Hendricks, Paul Bley, Bill Evans, John Coltrane, Art Farmer, Bob Brookmeyer e Max Roach. Em Jazz in the Space Age, George Russell inicia uma fase ousada em compor peças extensas para trabalhar suas ideias harmônicas modais e cromáticas de forma ainda mais intensiva e extensiva: uma dessas peças é a "Chromatic Universe", uma suíte dividida em três partes -- aliás, as formas extensas de suíte, sonatas e outros formatos eruditos seriam regularmente usados em sua obra composicional jazzística. Interessante notar ainda em Jazz in the Space Age é que além da ousadia em trabalhar com a harmonia modal no âmbito de uma big band, George Russell também usou dois pianos nas sessões de gravação -- Paul Bley e Bill Evans --, sendo, talvez, o primeiro álbum da história do jazz a usar dois pianos ao mesmo tempo. Com George Russell temos um avançado colorido cromático que, ainda hoje, precisa ser mais estudado e entendido!
Sketches of Spain (Columbia, 1960). Outro dos estilos inovadores de orquestração jazzística é o empreendido pelo arranjador Gil Evans, que misturou as concepções do chamado cool jazz com noções eruditas advindas da third stream, ideia cunhada pelo trompista Gunther Schuller. Na verdade, Gil Evans surgiu no início dos anos 40, justamente na orquestra de Claude Tornhill, bandleader que liderava uma big band de orquestração híbrida de rasantes solos de músicos precursores do bebop com ideias de suaves texturas camerísticas. Em Março de 1956, a Capitol Records compila algumas faixas que o trompetista Miles Davis gravara em 1949 com um curioso noneto formado de músicos que eram membros dessa orquestra de Claude Tornhill -- com Gil Evans e Ghunter Schuller, entre os nove músicos -- e as lança sob o título The Birth of the Cool: a Capitol estava, na verdade, aproveitando um momento de franca ascensão de Miles Davis, onde seu estilo "cool" de tocar, macio e priorizando as texturas e ambiências intimistas, começava a ficar cada vez mais popular -- vide seu comovente e icônico solo de "Round Midnight" no Newport Jazz Festival de 1955, que lhe deu ainda mais propriedade para atuar em solos desse tipo. O lançamento ajuda, também, a alçar ainda mais o nome do trompetista ao estrelato. Era o momento em que Miles, agora com um quinteto fixo -- seu Primeiro Grande Quinteto --, vencia o vício da heroína, rescindia seu contrato com a Prestige e assinava com a gigante Columbia Records. A participação de Miles numa sequência de gravações empreendidas por Ghunter Schuller entre os anos de 1957 e 58 -- vide o álbum compilativo The Birth Of The Third Stream, resenhado acima -- também foi decisiva para que o produtor George Avakian convencesse os executivos da Columbia Records a explorar essa potencialidade do trompetista em um novo projeto orquestral. George Avakian e os executivos da Columbia logo enxergam a oportunidade comercial de potencializar ainda mais essa amostragem cool e third stream e, para tanto, convocam o arranjador Gil Evans, que tinha trabalhado com Miles nas sessões de The Birth of the Cool, lá atrás em 1949. Em Outubro de 1957 estava sendo lançado, então, o álbum resultante desse novo projeto de Miles Davis em parceria com Gil Evans: o álbum foi intitulado Miles Ahead e trazia Miles solando sobre 10 temas compostos por standards, medleys e originais, apresentando seu característico tom intimista -- quase sempre com um tom médio de surdina, sua marca registrada -- e sendo acompanhado por uma orquestra de 19 instrumentistas de palhetas e metais, numa tratativa de texturas orquestrais que Gil Evans elaborou justamente para potenciar esse estilo que agora era chamado de "cool jazz". O estilo fresco e moderno dessa orquestração cool atinge seu auge criativo em 1960 com o álbum Sketches of Spain, onde Miles expõe seus próprios temas e traz consigo a influência da música flamenca adquirida após uma visita à Espanha, incluindo uma versão singela da peça erudita Concierto de Aranjuez, do compositor Joaquín Rodrigo.
Out Of The Cool... Into The Hot (Impulse!, 1960 - 61). Se com a parceria com Miles Davis, Gil Evans alcançara a fama e seria lembrado eternamente como um dos grandes arranjadores da história do jazz, seria apenas em seus projetos individuais que sua personalidade evoluiria definitivamente para os novos rompantes de uma nova vanguarda de músicos que se inicia nos anos 60. Em 1960, por exemplo, numa sequência de dois lançamentos pelo selo Impulse!, Gil Evans pôde dar mais asas à sua liberdade em busca de um ecletismo que reunisse suas principais inspirações de antes e de então: o blues, a bossa nova, a música latina (principalmente a música espanhola, que passou a ser uma constante em seus álbuns), o recém surgido free jazz, os temas dos modernos musicais de Kurt Weill, a música erudita moderna e a harmonia modal de George Russell, e etc. O álbum que inicia esta fase é, justamente, o Out of the Cool (1960), onde, como o próprio título diz, o arranjador começa a se afastar do estilo cool para uma postura mais eclética. Já no álbum Into the Hot (1961), o arranjador convida a banda de ninguém menos que o insano pianista do free jazz Cecil Taylor: o grupo, conhecido como The Cecil Taylor Unit, era formado por Cecil Taylor ao piano, Jimmy Lyons no saxofone alto, Archie Shepp no saxofone tenor, Henry Grimes no contrabaixo e Sunny Murray na bateria, com a adição de Ted Curson no trompete e Roswell Rudd no trombone. Em 2012 o selo Not Now Music lançaria uma edição conjunta destes dois álbuns citados: Out Of The Cool... Into The Hot, na versão em CD remasterizada. É a fase de entrada de Gil Evans para abordagens orquestrais mais vanguardistas e progressivas. Contudo, apesar desse enviesamento para a vanguarda, sua assinatura meio cool, suas texturas orquestrais próprias, nunca foi abandonada: essa sua assinatura apenas se amalgamou com as influências mais progressivas, psicodélicas e vanguardistas dos anos 60.
Big Band Bossa Nova (Mercury, 1962). Quando comecei a formular essa lista focada em orquestras e big bands já sabia que seria interessante considerar um trabalho mais comercial de algum daqueles bandleaders geniais que começaram sua carreira no jazz, mas posteriormente fariam a escolha de se tornarem grandes compositores para cinema e produtores de hits: casos do compositor Henri Macini, do saxofonista Oliver Nelson ( que produziu álbuns para Nancy Wilson, James Brown, The Temptations e Diana Ross) e do trompetista Quincy Jones (que compôs diversas trilhas e produziu Frank Sinatra, Michael Jackson, Will Smith, e tantos outros). Oliver Nelson, por sinal, tem ótimos álbuns de big band -- e fica aqui, então, como uma dica indireta. Mas este álbum acima, apesar do seu tino comercial, é um daqueles registros inesquecíveis que costumam ser a porta de entrada de muitos neófitos para os universos do jazz e da música brasileira. Quincy Jones, que iniciou sua carreira como um trompetista ligado aos estilos do bebop e hard bop e como um produtor de muitos músicos e cantores de jazz e soul music, sempre foi um aficionado pelo formato big band e começa a formar seus conjuntos orquestrais já em meados dos anos 50 -- evidenciando uma certa influência de Count Basie, por sinal. A partir dos anos 60, contudo, Quincy Jones começa a produzir álbuns para artistas pop -- como Frank Sinatra, Little Richards, Brook Benton... -- e começa a receber encomendas de Hollywood para compor trilhas e para produzir compositores ligados ao cinema. Essa fase coincide com a explosão da música de Tom Jobim e da bossa nova em solo americano -- e no mundo. Quincy Jones, então, trata logo de formar uma luminosa big band com alguns dos mais talentosos músicos de jazz da época para produzir sua trilha de hits brasileiros com seus arranjos. O resultado é este álbum acima, que traz alguns dos principais hits da bossa nova mais um tema próprio de Quincy Jones que também se tornaria um hit pop de muito sucesso: o tema "Soul Bossa Nova". Este álbum, enfim, documenta um dos poucos momentos do show business em que o formato big band retornaria às paradas de sucesso tal como acontecera na Era do Swing -- e com considerável qualidade musical. Curiosamente, esse título "Big Band Bossa Nova" seria usado em ao menos quatro álbuns lançados no mesmo ano de 1962: este de Quincy, um de Stan Getz, outro de Enoch Light, e outro de Oscar Castro-Neves. Desses quatro, os mais interessantes, na opinião desse que vos escreve, é justamente este álbum acima de Quincy Jones e o álbum lançado pelo guitarrista brasileiro Oscar Castro-Neves.
Bernstein Plays Brubeck Plays Bernstein (Columbia, 1961). Dave Brubeck também gravou dois dos mais caprichados exemplos de álbuns próximos à estética do third stream, conceito cunhado pelo compositor Gunther Schuller que pregava uma simbiose entre o jazz e a música erudita. Em 1960, Brubeck trabalhou num projeto muito interessante -- e, à época, muito bem aclamado pela crítica, por sinal -- com ninguém menos que o compositor e maestro Leonard Berstein, o principal nome do meio sinfônico ligado às fusões de jazz e da canção popular americana com a dita música erudita moderna. Essa inesperada parceria surtiu na gravação do álbum Bernstein Plays Brubeck Plays Bernstein, onde Dave Brubeck e seu quarteto interpretam, junto à New York Philharmonic, a peça “Dialogues for Jazz Combo and Orchestra”, composta por Howard Brubeck (irmão mais velho de Dave Brubeck, também músico e compositor de sucesso). No segunda face do LP estão as famosas canções e peças do próprio Leonard Berstein, dentre elas "West Side Story" e "Wonderful Town", sendo interpretadas por Dave Brubeck e seu afamado quarteto, sem orquestra. Ademais, um outro real exemplo da estética "third stream" ligado a Dave Brubeck foi o álbum Brandenburg Gate: Revisited. Os temas desse álbum foram compostos pelo próprio Dave Brubeck e arranjados por seu irmão Howard Brubeck. A faixa título Brandenburg Gate com 18 minutos e 31 segundos de tema e variações sobre o tema evoca certos ecos das orquestrações clássicas e românticas europeias amalgamadas com arranjos e improvisos jazzísticos: os improvisos ficam a cargo de Dave Brubeck e seu quarteto, acompanhados por uma orquestra sinfônica de músicos alemães.
Gillespiana (Verve, 1960). Na segunda metade dos anos 50, Dizzy Gillespie foi um dos responsáveis por um certo revival das big bands. Este álbum acima é um dos registros dessa fase e documenta a parceria que ele empreendeu com Lalo Schifrin. Pianista e compositor argentino, naturalizado americano, Lalo Schifrin é outro dos nomes importantes quando o assunto é composição e arranjo para big bands e orquestras. Em 1956, após voltar da Argentina para os EUA, Schifrin conhece Dizzy Gillespie e se oferece para compor uma peça estendida para a sua big band. Dizzy Gillespie precisa ser sempre lembrando quando o assunto é big bands porque ele foi um dos principais entusiasta do formato, mesmo quando as inovações do bebop anunciavam o seu declínio em meados dos anos 40 -- e sendo ele, aliás, o principal bebopper a impulsionar as inovações da nova linguagem ao lado de Charlie Parker. E agora, nessa época da segunda metade dos anos 50, havia uma clara tendência de revival do formato das big bands, com Dizzy e sua orquestra participando de diversos shows e festivais e gravando alguns dos melhores álbuns com esse formato. Esses álbuns de Gillespie com sua orquestra são inovadores, aliás, na forma como insere o fast swing e os modernos temas de linguagem bebop no contexto dos naipes de saxofones e metais. Ademais, Dizzy Gillespie também era um inveterado entusiasta da música afro-latina, tendo tocado com diversos músicos cubanos nos anos 40 e nessa sua fase de retomada do formato big band. E é pensando nessas características de Dizzy -- os temas modernos e os improvisos rápidos do bebop, a predileção pela percussão e pela música afro-latina, o uso de rompantes agudos e etc -- que Lalo Schifrin elaborou um conjunto de faixas e arranjos de uma suíte orquestral que foi chamada Gillespiana, concluída em 1958 e gravada em 1960. Ademais, abaixo deixo um outro exemplo de álbum em que Lalo Schifrin trabalha como compositor e arranjador. O álbum Jazz Suite on the Mass Texts do flautista Paul Horn é interessante porque que traz um conjunto de missas cantadas em coral de vozes com arranjos de uma orquestra de jazz misturados com elementos da música erudita moderna, resultando numa combinação no mínimo exótica e bem próxima da estética third stream -- um dos primeiros registros com essa combinação. Tanto Lalo Schifrin como Paul Horn tomaria rumos diferentes, posteriormente. Paul Horn seria um dos pioneiros da estética new age e Lalo Schifrin começaria a compor música de concerto e música para o cinema, alcançando enorme sucesso com suas trilhas sonoras.
Uhuru Afrika / Highlife (Roullete/ Capitol, 1960-63/ 1990). Em 1961, o pianista Randy Weston recebe um patrocínio da American Society of African Culture para se apresentar em uma série de shows de jazz em Lagos, Nigéria. Explodia, nessa região da África, um estilo muito popular chamado highlife: estilo que fundia os arranjos do jazz com as percussões yoruba -- um estilo precursor do afrobeat, que eclodiria nos anos 70 com a chegada do funk. Randy Weston absorve todas as melodias e percussões africanas e, voltando aos EUA dois anos depois, passa a ser o principal músico americano a fundir o jazz com suas raízes africanas. Dizzy Gillespie, Art Blakey, Ahmed Abdul-Malik e Yusef Lateef já vinham unindo o jazz com as raízes afros e orientais. Mas Randy Weston foi o músico de jazz que mais se aprofundou nas raízes do West African. Este box acima, lançado pelos selos Roulette Jazz e Capitol Records em 1990, compila faixas de dois álbuns de big band que Randy Weston gravou no início dos anos 60, justamente na fase em que ele se aprofunda nas questões da diáspora africana: a compilação traz sua suíte gravada no álbum Uhuru Afrika (que traduzido, significa Freedom Africa), gravado em 1960 pelo selo Roulette, e mais as faixas do álbum Highlife (Music from the New African Nations featuring the Highlife), lançado em 1963 pelo selo Colpix. O álbum Uhuru Afrika, inclusive, foi um dos álbuns de jazz banidos pelo Apartheid na África do Sul junto com Here's Lena Now!, da cantora Lena Horne, e Freedom Now Suite, do baterista Max Roach: isso por causa do caráter libertário da suíte homônima que Randy Weston compôs com a colaboração do poeta Langston Hughes, que ficou a cargo das letras e das linner notes do disco. Já o álbum Highlife foi gravado após a chegada de Randy Weston da sua estadia na África: o álbum celebra não apenas a música e a cultura nigeriana, mas celebra o fato de vários países africanos terem conseguido sua independência, procurando evidenciar os ritmos e os estilos musicais desses países. Esses álbuns evidenciam, então, as formas inovadoras com as quais Randy Weston levou esses ritmos e elementos africanos para o plano da big band americana. E esse box acima traz um compêndio fantástico do início dessa sua fase inovadora!
The Black Saint and the Sinner Lady (Impulse!, 1963). Charles Mingus foi o principal modernista a expandir o formato de big band ellingtoniano para uma versão ainda mais estendida de orquestra com influências diretas da então concepção third stream de Ghunter Schuller, e quase sempre com arranjos nervosos, viscerais, irônicos e sarcásticos que, na verdade, traziam para sua música elementos de um avant-garde emergente e da sua própria personalidade conturbada e irascível. Este álbum -- um dos clássicos da discografia de Mingus, sempre listado entre os grandes álbuns de jazz de todos os tempos -- é uma das suas obras mais aclamadas e foi gestada a partir da parceria que ele teve com o arranjador Bob Hammer, seu principal colaborador para esses projetos orquestrais mais estendidos. A orquestra, compactada em 11 músicos, ensaiou a partitura original durante uma estadia de seis semanas no club Village Vanguard em 1963, onde Mingus sedimentou a peça permitindo que os músicos incluíssem seus próprios improvisos livres sobre os temas originais. No estúdio, porém, Mingus desferiu seu irritante perfeccionismo diante de Bob Hammer e os 11 músicos, fazendo com que este seu registro fosse o primeiro a ser finalizado com as novas técnicas de edição de estúdio que ficariam conhecidas como overdubbing. Em termos de estrutura composicional, The Black Saint and the Sinner Lady é uma espécie de suíte-balé formado por uma coleção de temas e variações e por um medley que finaliza a peça, onde as temáticas principais estão ambientadas em danças tradicionais espanholas, africanas, latinas e elementos do blues, gospel e folk americano, sendo descrito pelo próprio Mingus como um registro da sua concepção de "ethnic folk-dance music". Dentro das variações desses temas temos diversos momentos: sessões de repetição, baladas, interlúdios com evocações modais, desenvolvimentos com solos sobrepostos entre os músicos, solos inflamados (alguns deles até acrescentados posteriormente por meio de overdubs), arritmias e polirritmias, improvisos livres e cacofonias propositais. Inspirando-se em Duke Ellington, Mingus escreveu algumas partes dedicadas exclusivamente para potencializar as características de cada naipe e de cada músico: "Each man’s particular style is taken into consideration. They are given different rows of notes to use against each chord but they choose their own notes and play them in their own style, from scales as well as chords, except where a particular mood is indicated. In this way I can keep my own compositional flavor… and yet allow the musicians more individual freedom in the creation of their group lines and solos" -- explicava Mingus quando algum entrevistador lhe perguntava sobre como ele distribuía as performances dentro dessas suas peças estendidas. Nos solos se destacam Jerome Richardson no sax soprano, Charlie Mariano no sax tenor, Richard Williams no trompete, Quentin Jackson no trombone, Jacki Byard no piano, Don Butterfield na tuba e Jay Berliner na guitarra acústica flamenca. Embora este seja um dos mais densos e abstratos registros orquestrais da história do jazz, nas linner notes Mingus diz que este seu registro era para ouvir e dançar, e era um registro que significava seu epitáfio vivo do dia em que nasceu até o dia em que ouviu os nomes de Charlie Parker e Dizzy Gillespie, e que essas suas anormais idiossincrasias sonoras representava, na verdade, as suas próprias misturas de estilos e ideias diante de um mundo que pregava a normalidade, mas uma normalidade para aprisionar as pessoas dentro de um certo sistema. Um fato curioso relacionado às linner notes deste disco são as partes em que Mingus permite que seu psicoterapeuta Edmund Pollock também acrescente um depoimento -- detalhe que mitifica ainda mais este registro e sua personalidade de gênio tresloucado. Outro fato curioso é que essa peça acima é uma espécie de "paralelo simplificado" em relação ao mais ousado projeto orquestral que Mingus já vinha idealizando, mas não conseguiu realizar em vida: a sua Suite Epitaph, resenhada abaixo. Esses álbuns, enfim, mostram o quanto Mingus levou a big band ellingtoniana para uma estética ainda mais visceral, intrincada e complexa.
Mingus Epitaph (Sony Music, 1990). Se o álbum The Black Saint and the Sinner Lady foi considerado por Mingus como seu "epitáfio vivo", a Epitaph Suite é considerada seu epitáfio post mortem. A Epitaph Suite é um e peça "inacabada" de Charles Mingus, que teve sua estréia póstuma no final dos anos 80. Considerado o projeto mais ousado e intrincado de Mingus, a Suite Epitaph é uma peça estendida que demorou anos pra ser esquematizada e, no final das contas, nem chegou a ser concretizada da forma como Mingus queria. Sabe-se que já em 1962, o ano de um suposto término da obra, Mingus reuniu 30 músicos no espaço do Town Hall para executar a peça em sua totalidade. O resultado foi desastroso! Das duas, uma: ou precisaria muito mais ensaios para se chegar ao perfeccionismo raivoso de Mingus, ou alguns músicos ali simplesmente não possuíam as condições técnicas para dar forma às duas horas de arranjos detalhistas e frases sinuosas que as partituras exigiam. Mingus, portanto, aborta a missão de levar adiante o projeto de uma gravação, e deixa as partituras e manuscritos inacabados em uma gaveta. O projeto só seria retomado após o falecimento do compositor, na segunda metade dos anos 80, quando Sue Mingus, sua esposa, convida Gunther Schuller para gerir a empreitada rumo ao toque final e à gravação da peça. Sob supervisão de Sue e Schuller, a Epitaph finalmente chega em sua forma final e é apresentada ao público em 1989 no palco do Alice Tully Hall, no Lincoln Center, em Nova Iorque. A conclusão final realmente chega à um formato que condiz com o desejo de Mingus em vida: ter um epitáfio post mortem que resumisse toda a identidade da sua obra. A magnífica suíte, composta para uma double big band de 30 músicos (com o dobro de instrumentos para cada naipe, incluindo dois pianos e dois contrabaixos), é um conjunto de 19 movimentos constituídos de partes que foram compostas entre o período de 1940, quando Mingus ainda era um jovem sideman iniciante, e 1962, quando ele já era um leader e compositor consagrado. Há, por exemplo, composições que foram escritas inicialmente para serem executadas por combos menores na década de 50 como “Better Get Hit in Yo’ Soul” e “Peggy’s Blue Skylight", além das composições mais antigas como “Chill of Death,” composta por Mingus quando ele tinha 17 anos, “The Soul,” escrita nos anos 40 para a banda de Lionel Hampton, “This Subdues My Passion,” também composta nos anos 40 e outras composições escritas no início dos anos 60, consequentemente mais contemporâneas e complexas frente às compostas anteriormente. O álbum foi lançado em 1990 por Sue Mingus e a Mingus Big Band, sob supervisão dele: Gunther Schuller.
Africa/ Brass (Impulse!, 1961). A primeira incursão autoral de John Coltrane com um grupo "orquestral" ocorre em 1961 com este emblemático álbum Africa Brass (Impulse!). Já era uma fase de expansão onde Trane reúne algumas inspirações africanistas e alguns gatilhos do estilo brass band (um cojunto compacto de trompetes, trompas, saxofones e tuba) e amalgama-os com o hard bop do seu Quarteto, que já caminhava para as aberturas do post-bop e as rupturas do free jazz -- aliás, corrigindo, John Coltrane não conceituaria sua imersão ao free jazz (ou "new thing, como ele chamava) como uma música anárquica de ruptura, mas simplesmente como uma extensão das suas experiências e descobertas (em relação ao avant-garde, música hindu, música africana, músicas e filosofias orientais, religiões, astronomia e etc), aos poucos escancarando uma porta para sua liberdade musical e sua transcendência cósmica e espiritual. Mas, afinal, essa fase de Ornette, Trane, Ayler, Sanders e companhia foi não apenas trasncendente, mas revolucionária! E é em Ascension (Impulse!, 1966), um álbum já totalmente imerso no free jazz, que Trane efetivamente atinge o pico dessa transcendência. Na verdade, em Ascension Coltrane se inspira veementemente no revolucionário álbum Free Jazz: A Collective Improvisation (Atlantic), lançado por Ornette Coleman em dezembro de 1961, registro que inaugura a livre improvisação coletiva na história do jazz. Potencializando seus característicos e idiossincráticos motivos modais e convidando alguns dos mais emblemáticos saxofonistas e trompetistas para serem solistas, Trane faz explodir em Ascension uma espiritual e densa masterpiece de livre improvisação coletiva que influenciaria todas orquestras e coletivos do avant-garde nos EUA e na Europa -- vide, por exemplo, o fato do saxofonista alemão Peter Bröztmann sempre referenciar essa gravação como sua principal inspiração na produção do seu álbum Machine Gun (BRÖ/ FMP, 1968/ 71). Uma observação pertinente é que estes álbuns de Coltrane -- tanto Africa Brass (1961), quanto Ascension (1966) -- não são considerados álbuns de big band ou obras orquestrais: alguns revisores, por não encontrar muita conexão dessas masterpieces com a tradição das big bands ou traços orquestrais ellingtonianos, preferem usar o termo "coletivo", ao invés de "big band" ou "orquestra". Mas, na real, essa é a essência dessas peças. Coltrane, particularmente, se referia à Ascencion como uma "big band new thing". Para nós, réles mortais, basta apenas ter em mente que essas obras revolucionaram o conceito de improvisação coletiva: quer seja utilizando os rótulos de orquestra, big band ou coletivo -- independente do conceito ou rótulo, trata-se de um formato expandido iconoclasta e revolucionário.
Ascension (Impulse!, 1966)Skyes of America (Columbia, 1971). Como vimos acima, nos anos 50 o compositor, educador e arranjador americano Gunther Schuller apresentou seu conceito da "terceira corrente" ao mundo da música, onde o jazz seria perfeitamente compatível para unir-se à música erudita em uma linguagem única. Ainda que Schuller estivesse sempre nos bastidores, discreto, essa ideia influenciou a maioria dos grandes músicos do jazz do final dos anos 40 e anos 50. Foi sob influência deste conceito que Miles Davis, por exemplo, gravaria álbuns orquestrais tais como Miles Ahead (1957), Porgy and Bess (1959) e Sketches of Spain (1960) em parceria com Gil Evans. Mas essa ideia também refletiria na nova geração de vanguardistas que dominaria as inovações do jazz nos anos 60. Ornette Coleman, pai do free jazz, é o caso mais emblemático. Quando Ghunter Schuller conheceu Ornette Coleman (com seu curioso saxofone branco de plástico) no final dos anos 50, percebeu que o enigmático saxofonista precisava urgentemente de umas aulas de teoria musical no âmbito da harmonia e logo se ofereceu como educador, convidando Ornette para algumas aulas em seu apartamento. Não deu muito certo -- Ornette, autodidata, não incorporou as harmonias do bebop, e nem as novas ideias da harmonia modal: antes, aliás, ele já tinha suas próprias ideias melódico-harmônicas as quais mais tarde ele as denominaria como "harmolódicas" --, mas entre os dois floresceu uma inspiradora amizade. Ghunter Schuller chegou a, inclusive, convidar Ornette Coleman para alguns trabalhos e o incentivou a escrever arranjos e peças para orquestra. Ornette é, então, fortemente influenciado por este conceito da third stream idealizado por Schuller, chegando a compor duas grandes peças para orquestra na intenção de gravar um álbum nesse formato: as peças eram Inventions of Symphonic Poems (1967) e Sun Suite of San Francisco (1968). Mas um projeto dessa magnitude só seria possível em 1971 quando a Columbia Records, a mesma gravadora de Miles Davis, resolveu bancar e lançar as gravações. Ornette Coleman, já aclamado como um grande inovador do jazz, consegue um contrato com a London Symphony Orchestra e expande o projeto com mais temas em um formato longo de peça, o que gestou esta extensa peça chamada Skies of America. Inicialmente ele propunha uma espécie de concerto com sua banda de free jazz como solista principal sendo acompanhado pela orquestra em questão, a London Symphony Orchestra. Porém, indecisões quanto aos termos contratuais não apenas barraram a participação da banda de Ornette, como também limitaram seus próprios solos de jazz junto à célebre orquestra de Londres. Com um cunho crítico e patriótico, Skies of America é uma gravação em álbum duplo com 21 faixas breves na média de três a quatro minutos as quais constituem uma espécie de "suíte", onde há sempre um motivo bem característico da sonoridade harmolódica ornettiana que repete ao longo da composição. A regência ficou a cargo do maestro David Measham, à frente da Orquestra Sinfônica de Londres. A peça é inspirada num grupo de nativos americanos os quais Ornette Coleman conheceu em um retiro de férias no Estado de Montana, em 1965.
Jazz Composers Orchestra (JCOA, 1968). Muito embora aqui o conceito de orquestração não venha das afluências ellingtonianas das big bands e Michael Mantler não tenha tido uma ligação direta com Ghunter Schuller e os primeiros músicos e compositores ligados à third stream, o nome de Michael Mantler como um inovador das orquestrações de vanguarda não pode ser omitido. Podemos dizer, aliás, que as peças e arranjos de Michael Mantler são uma natural evolução em relação às primeiras peças do movimento third stream. Compositor com predileção pela junção de elementos da música erudita moderna com o free jazz e a livre improvisação -- unindo a já mencionada livre improvisação coletiva de Ornette Coleman e John Coltrane com procedimentos da música erudita --, Michael Mantler surgiu ao lado de Carla Bley liderando uma troupe dos principais nomes do avant-garde e do rock progressivo dos anos 60, com alguns dos quais formou a legendária Jazz Composer's Orchestra e passou a empreender suas composições e arranjos inovadores, muitas delas denominadas inicialmente apenas como "Communications". Essas suas peças denominadas "Communications" tinham a real intenção de apresentar arranjos e orquestrações que equilibrassem uma interação entre os músicos onde a ordem e o caos coexistissem dentro de certas formas estruturadas. A lista de músicos que colaboram com Mantler neste álbum inclui o trompetista Don Cherry, o saxtenorista Pharoah Sanders, o saxtenorista Gato Barbieri, o guitarrista Larry Coryell, o trombonista Roswell Rudd e sua esposa, Carla Bley, no piano. A peça que finaliza o álbum é um curioso concerto para piano e orquestra escrito exclusivamente para o pianista Cecil Taylor, que na época já alcançava o auge do seu estilo percussivo de tocar piano. As ideias orquestrais expansivas de Mantler influenciaria, inclusive, a própria Carla Bley, que até inicia seus projetos-solo com essa abordagem mais free improvisation, mas mais à frente adotaria um estilo de big band compacta menos calcada em cacofonias e livres improvisos e mais calcada em arranjos cômicos, humorísticos e irônicos, mostrando um estilo próprio com diretas influências de Kurt Weil e Charles Mingus: caso do álbum Musique Mecanique, indicado abaixo. Sobre as facetas da carreira de Carla Bley, inclusive, falamos aqui, na ocasião da entrada do seu nome para o Hall of Fame da Downbeat Magazine. Outro álbum indicado do trompetista e compositor Michael Mantler é Something There (WATT/ ECM, 1983) com Carla Bley ao piano, Mike Stern na guitarra, Steve Swallow no contrabaixo elétrico e Nick Mason na bateria acompanhados por arranjos de cordas da Orquestra Sinfônica de Londres sob a direção do arranjador Michael Gibbs. Something There é um contemplativo registro de jazz-rock com arranjos de cordas -- "jazz-rock with strings".
Something There (WATT/ ECM, 1983).Central Park Noth (Blue Note, 1969). Mesmo numa época comercialmente dominada pelo soul, funk e rock, a Thad Jones/Mel Lewis Orchestra alcançou o estrelato, sendo considerada a principal big band da segunda metade dos anos 60 e dos anos 70, e considerada por muitos a mais aclamada big band depois das orquestras de Duke Ellington, Count Basie e Stan Kenton. Formada em 1963 pelo cornetista Thad Jones (talentoso trompetista, fluente na linguagem bebop e ex-membro da big band de Count Basie) e pelo baterista Mel Lewis (talentoso drummer e ex-membro da orquestra de Stan Kenton), a Thad Jones/Mel Lewis Orchestra foi inovadora na forma como abordou praticamente todos os estilos de jazz no âmbito orquestral: swing, bebop, funk, baladas, gospel, as texturas cool, e até texturas fusion... Além do mais, ela se tornou célebre por preencher por décadas todas as noites de segunda-feira do famoso clube Village Vanguard, sendo um palco que revelou diversos grandes músicos, incluindo Bob Brookmeyer, que seria um dos arranjadores e inovadores da orquestra. Este álbum acima, Central Park Noth de 1969, é interessante porque marca a empreitada de Thad Jones em aderir aos grooves do jazz-funk em suas peças e arranjos, sendo este um dos primeiros álbuns de big band e incorporar esses novos grooves. Os álbuns da Thad Jones/Mel Lewis Orchestra são interessantes, portanto, pela riqueza de ideias e estilos que podem variar bastante de registro para registro, ou mesmo dentro do set list de um álbum -- e tudo isso mantendo um admirável estilo singular. A versatilidade desta e doutras gravações garantem que Thad Jones foi um dos grandes compositores e arranjadores da história do jazz. Abaixo, temos um álbum com arranjos do trombonista Bob Brookmeyer, que no final dos anos 70 se tornou o diretor musical e principal arranjador da orquestra após o êxodo de Thad Jones para a Dinamarca. Bob Brookmeyer, por sua vez, vindo do cenário do West Coast e de uma predição pelo cool jazz, levaria essa big band para uma nova direção de texturas orquestrais. Neste primeiro registro com Bob Brokmeyer já presenciamos um tipo de jazz orquestral com um conceito reformulado do uso de metais, com uso de timbres médios mais suaves, linhas melódicas mais contemporâneas e um uso mais solto da bateria, voltada para efeitos do que apenas para o ritmo. Bob Brookmeyer se tornaria o principal precursor do conceito orquestral que começaria a nortear as composições da bandleader Maria Schneider a partir dos anos 90. A Thad Jones/Mel Lewis Orchestra, renovada e rejuvenescida de geração em geração, passaria a se chamar New Art Orchestra após o falecimento de Mel Lewis, e agora, após a morte de Bob Brookmeyer, é chamada de Vanguard Jazz Orchestra, continuando a ocupar as programações nas noites de segunda feira do Village Vanguard.
Music Inc. (Strata-East, 1971). Este álbum acima documenta a big band que o trompetista Charles Tolliver e o pianista Stanley Cowell formaram em finais de 1960, mas não conseguiram apoio de nenhuma gravadora para um registro. Para viabilizar o lançamento, Tolliver e Cowell inauguram, então, a Strata-East, um dos célebres e primeiros casos de gravadoras independente da história do jazz gerida por músicos negros. Apesar de ainda ser um registro embrionário da lendária gravadora -- não evidenciando, de imediato, toda a riqueza criativa que viria em seguida --, aqui já presenciamos uma visão de big band um tanto contemporânea, com todas as composições e arranjos de autoria de Tolliver. A big band foi formada em torno de um quarteto que Charles Tolliver já mantinha com Stanley Cowell (piano), Cecil McBee (contrabaixo) e Jimmy Hopps (bateria): a eles juntaram-se outros músicos que fariam parte do plantel da Strata-East nos anos seguintes: entre eles, os trombonistas John Gordon e Dick Griffin, e os saxofonistas Jimmy Heath e Clifford Jordan. A estética sonora deste disco pode ser entendida como um post-bop contemporâneo da época onde já se tinha implícitas e diluídas as rítmicas funky e as contemporaneidades nutridas pelos músicos negros da época. Arranjos ricos e interações telepáticas entre os naipes de saxofones, trompetes, trombones e tuba é o que podemos apreciar aqui.
Creative Orchestra (Köln) 1978 (hatART, 1995). Oriundo do cenário de Chicago e um dos membros-chaves da AACM (Association for the Advancement of Creative Musicians), Anthony Braxton é o iconoclasta do jazz que mais se inspirou na vanguarda da música erudita ( Schoenberg, Webern, Feldman, Cage e etc) para expandir sua música. E é por causa dessas e doutras, que Braxton passou a ser o mais ousado músico oriundo da segunda geração do free jazz a criar todo um universo sonoro particular: com sistemas próprios de composição e notação musical, com conceitos teóricos particulares e com experimentos instrumentais até então inéditos -- isso já na segunda metade dos anos 60. Após ter lançado várias gravações em formatos de solos, duos, trios...combos menores, em meados da década de 70 ele expande sua exploração sonora para combos maiores e cria, então, sua Creative Orchestra. E muito embora essa sua música se remetesse ao vanguardismo atonal erudito e aos seus conceitos particulares de música criativa, esse seu projeto orquestral vinha num momento em que ele voltava seus estudos para a tradição do jazz, incluindo o bebop de Charlie Parker e as abordagens orquestrais de Duke Ellington, Charles Mingus e Ornette Coleman. Curiosamente, aliás, Braxton passa a mostrar uma incomum predileção em voltar ao tempo longínquo para apreciar, também, os elementos das brass bands e marching bands de John Philip Sousa, considerado um dos legendários criadores musicais do período pré-jazz, na passagem do final do século 19 para o início do século 20. Foi o que mostrou a gravação do primeiro álbum desse projeto, o clássico Creative Orchestra Music, gravado em fevereiro de 1976, onde Braxton une o seu latente free-bop e seu vanguardismo conceitual com suas releituras iconoclastas repleta de resquícios mais tradicionais e mais autênticos do jazz, incluindo vários elementos das big bands e brass bands. Ademais, outras versões desta sua Creative Orchestra surgiram no álbum Anthony Braxton Creative Music Orchestra – RBN----3° K12 registrado em um concerto na França e lançado pela Ring Records em 1972, e neste álbum acima indicado Creative Orchestra (Köln) 1978 (hatArt, 1978). Esses dois álbuns posteriores, com peças distintas um dos outros, são ainda mais expansivos pelo fato de contar com os improvisos eletroacústicos de Richard Teitelbaum, um dos pioneiros da eletroacústica e do uso de sintetizadores e computadores na música improvisada. Particularmente, acho esse álbum de 1978 gravado em Colônia (Alemanha) o mais interessante entre os três registros mencionados: é o que mais traz volumes de sons elétricos e eletrônicos, de guitarra elétrica e sintetizadores, junto às suas abstrações e à esses elementos mais tradicionais e autênticos do bebop, big bands, marching bands, brass bands e etc -- lembrando que a eletroacústica, através dessa parceria com Teitelbaum, seria outra das tônicas da música braxtoniana entre fins dos anos de 70 e início dos anos 80. Essas abordagens experimentais e conceituais de Braxton influenciaria toda uma legião de músicos e compositores da nova geração do free jazz e do modern creative nas décadas mais adiante. Essa é uma das portas de entrada para o misterioso e intrigante universo musical de Anthony Braxton, que exploraria vários formatos criativos de orquestras a partir de então.
African Portraits (Teldec, 1995). Para o jazzófilo que só vê seu nome de passagem em alguma das linner notes dos álbuns dos anos 70 e 80, o trompetista Marvin "Hannibal" Peterson, que depois passou a assinar simplesmente como Hannibal Lokumbe, é apenas mais um daqueles muitos "underrated musicians". Mas para quem já parou pra ouvir algum dos seus discos, logo sua originalidade se tornou uma lembrança inesquecível -- uma daquelas lembranças que fica ali pulsando na memória de tempos em tempos. Particularmente, me lembrei de Hannibal Lokumbe porque já havia apreciado suas abordagens dos anos 70 e 80 junto à sua inflamável The Sunrise Orchestra. Mas é possível apreciar seus solos de trompete, também, nos álbuns que Lester Bowie gravou com a emblemática Brass Fantasy. A constatação conclusiva é que: Hannibal Lokumbe é um grande trompetista e um grande compositor. É o que mostra este álbum acima, que marca uma fase muito prolífica na carreira de Lokumbe, onde ele se envereda de vez para a composição erudita e várias das suas peças são encomendadas e comissionadas por grandes orquestras e ensembles tais como Kronos Quartet, American Composers Orchestra e as orquestras sinfônicas de Filadélfia, Baltimore, Cleveland, Detroit e Houston. Nesta sua abordagem erudita, Hannibal Lokumbe adere-se com muita agudez à estética third stream -- algo que ele absorve dos tempos em que colaborou com Gil Evans, afinal --, e viaja com muita propriedade aos cânticos dos tempos e campos de trabalho das fazendas de algodão onde seus ancestrais foram criados. Dessa forma, suas peças dessa fase compreendem-se em profundos oratórios repletos de blues, spirituals, cântico coral, conexões do Sul dos EUA com as origens africanas, refrões com adereços do gospel, além das elaboradas linhas de acompanhamento sinfônico. Essa abordagem de cântico gospel amalgamada com orquestra tem sua largada precursora em Black Brown And Beige, de Duke Ellington: vide, por exemplo, a gravação de 1958 que traz a big band do duque ao lado da suprema primeira dama do gospel, Mahalia Jackson. Mas podemos dizer, sem exagero, que Hannibal Lokumbe expande com muita propriedade essa abordagem para o campo da música sinfônica -- abordagem essa que só teria uma próxima evolução com as composições estendidas de Wynton Marsalis, logo adiante. Essa peça referenciada acima, African Portraits, foi comissionada pela American Composers Orchestra no final dos anos 80 e, com o grande sucesso da peça, Hannibal Kolumbe logo consegue um contrato com a Teldec e com o célebre maestro artentino-israelense Daniel Barenboim para um registro com a Chicago Symphony Orchestra. O registro é emblemático e a peça passa a ser interpretada inúmeras vezes nos EUA e no estrangeiro! Tanto, que Kolumbe conquistaria seguidas oportunidades de receber encomendas e comissões para gravar outras das suas peças: vide as peças Dear Mrs. Parks, gravada com a Detroit Symphony Orchestra pelo selo Naxos em 2009, e a peça Can You Hear God Crying? que foi gravada com a Chamber Orchestra of Philadelphia em 2014, também pelo selo Naxos. Neste álbum acima, Hannibal Lokumbe atua com um quarteto de jazz ao lado da Chicago Symphony Orchestra, vocalistas com extensões para o soul e gospel, um narrador ao melhor estilo africano dos griots, o renomado conjunto vozes Morgan State University Choir e percussionistas e músicos habilitados nas abordagens africanas, todos regidos pelo aclamado maestro Daniel Barenboim. African Portraits é, enfim, uma projeção musical das experiencias que Hannibal Lokumbe teve em uma estadia em Serenguéti, junto ao povo massai da Tanzânia. E o que Hannibal Kolumbe faz é mostrar, no âmbito sinfônico, as conexões que essas africanidades têm com suas origens no blues, spirituals, gospel, jazz e outras vivências do sul dos EUA.
David Murray Big Band Conducted By Lawrence "Butch" Morris (DIW/ Columbia, 1991). Este álbum é interessante por dois motivos: primeiro porque David Murray, um colosso do sax tenor no âmbito do free jazz setentista, parte da ideia de compor música nova através de adereços e elementos observados em grandes saxtenoristas do passado tais como Paul Gonçalves, Lester Young e Ben Webster; segundo porque aqui temos a presença do inovador maestro Lawrence "Butch" Morris, que inventou uma nova regência composta de sinais ideográficos próprios onde cada um desses sinais gesticulados conduzia os músicos da orquestra em uma idéia musical específica, de forma que essa sequência espontânea de sinais ia conduzindo os músicos a praticamente criar uma nova composição no ato da performance -- uma forma inovadora de conduzir, improvisar e compor ao mesmo tempo. Ou seja, esse novo conceito com um maestro gesticulando sinais ideográficos para criar uma peça musical no ato da performance já traz uma nova forma de estruturar uma livre improvisação coletiva que antes -- a partir da influência dos álbuns Free Jazz de Ornette Coleman e Ascension de John Coltrane -- era essencialmente caótica, cacofônica e aleatória, podendo produzir, ou não, efeitos contrapontísticos e contrastantes, mas acontecendo sempre de forma indeterminada. E foi justamente trabalhando com o saxtenorista David Murray e com o baterista Charles Moffett (responsável por lhe instigar a reger em meados da década de 70), que Butch Morris teve esse insight de desenvolver esse novo conceito de regência, conceito que foi tomando forma até ficar famoso entre os coletivos e orquestras de livre improvisação do mundo todo a partir dos anos 90. David Murray, por sua vez, que sempre foi um freejazzer mais apegado à tradição das big bands e ao cânone dos grandes colossos do sax tenor dos anos 30, 40 e 50, é convidado para substituir Gil Evans e sua orquestra no club Sweet Basil de Nova York e forma, então, essa sua big band em meados dos anos 80, convidando Butch Morris para ser o maestro e para aplicar essas novas ideias de condução em suas composições ou simplesmente criar as curiosas e espontâneas peças em tempo real a partir desses sinais ideográficos. Formalizavam-se, então, todos os sedimentos, ingredientes e oportunidades para a gravação deste álbum acima. As três primeiras faixas são intituladas por David Murray como "Paul Gonsalves", "Lester" e "Ben", em homenagem aos três grandes sax-tenores do swing jazz Paul Gonsalves, Lester Young e Ben Webster. A peça tributada a Gonsalves é uma reinvenção orquestral do solo executado pelo respectivo saxofonista em sua lendária performance com a Duke Ellington Orchestra no Newport Jazz Festival de 1956: o solo transcrito é oriundo de um arranjo de Ellington para o seu standard "Diminuendo and Crescendo in Blue, ao qual David Murray dá formas orquestrais estendidas para os 27 chorus improvisados por Gonsalves naquela ocasião de 1956. Mas Murray já inicia este seu álbum de forma um tanto idiossincrática ao contar com a colaboração do virtuoso do pífano Joel A. Brandon, que também é um mestre das técnicas de assobio. Já as peças "Lester" e "Ben" evidenciam a grande expressividade de David Murray no tocar de baladas, refletindo as características dos sopros estilosos de Lester Young e Ben Webster. No demais, o restante das faixas já trazem peças autorais e livres improvisações estruturadas que procuram instigar o espírito criativo dos músicos da big band: vide a peça "Calling Steve McCall" (dedicada ao baterista Steve McCall), uma composição espontânea que Butch Morris cria com os músicos em tempo real usando seu inovador conceito de regência com sinais ideográficos, e também fazendo uso de um canto evocando o poema de David Henderson. O álbum ainda traz uma faixa cantada por Andy Bey, com ecos salientes da estética soul. Este álbum é, enfim, um ótimo exemplo de conexão entre os ecos históricos da música criativa afro-americana -- dos elementos primordiais do jazz, soul e blues -- com os desenvolvimentos contemporâneos do free jazz, da livre improvisação e da intelectualidade pós anos 60 que nortearia as invenções desses músicos advindos dos movimentos conhecidos como Black Artists Group (BAG, de St. Louis) e Black Arts Movement (BAM, de Nova Iorque).
The African Game (Blue Note, 1984). Se você já considera a concepção harmônica de Jazz Space Age (Deca, 1960), citado acima, de audição complexa, espere só para analisar as harmonias e os arranjos deste The African Game (Blue Note, 1984), que é uma extensão das fusões das ideias modais e cromáticas de George Russell com as instrumentações elétricas e eletrônicas trazidas pelo fusion, rock progressivo e world music. George Russell chegará ao ápice dessa experimentação entre finais dos anos 70 e início dos anos 80, quando dá sequência a um dos seus projetos mais ambiciosos: a Living Time Orchestra, uma big band contemporânea com a qual trabalharia pelo resto dos anos seguintes da sua carreira, evidenciando uma orquestração com um colorido cromático ainda mais amalgamado do que suas misturas dos anos e 60. Em 1983 e 1986, George Russell grava, respectivamente, dois álbuns com esta orquestra pela Blue Note: esta obra-prima chamada The African Game e o álbum So What, onde aplica arranjos sobre às composições de Miles Davis, Carla Bley e David Baker. The African Game, o álbum de mais sucesso nesta fase, traz a The Living Time Orchestra executando composições de uma suíte que traz grande ecleticidade e complexidade de ideias, com influências do free jazz, modal jazz, fusion, música atonal, rock, funk e, principalmente, da música africana, tão bem representada pelo grupo Olu Bata. Aqui temos, enfim, a concepção do cromatismo modal de George Russell elevada ao seu mais alto nível de fusão e experimentação -- e isso dentro de um caldeirão com forte densidade orquestral. Alcançando merecido reconhecimento, este álbum recebeu duas indicações ao Grammy, além de ter sido considerado pelos críticos um dos principais álbuns da década de 80.
Aura (Columbia, 1989). Pouco se fala neste registro idealizado pelo trompetista, compositor e arranjador dinamarquês Palle Mikkelborg e lançado em nome de Miles, como um registro emblemático no campo da orquestração. Mas aqui temos uma incomum simbiose entre a instrumentação eletrônica do jazz fusion com a arte do arranjo orquestral, arranjos que são elaborados justamente para potencializar as atmosferas e caricaturas tonais da música de Miles Davis. Na verdade, o que Palle Mikkelborg faz em Aura (Columbia, 1989) é usar elementos da música erudita contemporânea em suas composições e arranjos -- de sonoridade mais dissonante, europeia -- e colocar Miles como solista principal diante da orquestra, além de potencializar algumas características observadas nas gravações fusion do trompetista. Essa parceria surte efeito em um dos registros de sonoridades mais distintas da discografia de Miles, como se já não bastasse os tantos registros de sonoridades distintas que ele já havia cravado na história do jazz -- ou seja, aqui temos um distinto registro numa fase em que a carreira do mítico trompetista já chegava perto do seu estágio final. Para escrever as composições, Palle Mikkelborg utiliza uma base de 10 notas correspondentes às letras do nome "M-I-L-E-S-D-A-V-I-S", usando um conceito de criptograma musical que só fora usado antes em peças conceituais da música erudita, quando, por exemplo, alguns compositores começaram a usar motivos melódico-harmônicos baseados nas letras do nome do compositor BACH ou no hexacorde de Schoenberg (baseado nas letras "EsCHBEG"). O uso dessa técnica conceitual de composição e arranjo e as inspirações em torno dos coloridos tonais que Palle Mikkelborg enxerga na aura musical de Miles são a base para a gestação deste distinto álbum, gravado em 1985 na Dinamarca. A orquestra é formada por músicos pertencentes ao núcleo da Danish Radio Big Band, com outros músicos convidados tais como Niels-Henning Ørsted Pedersen, Thomas Clausen, Marilyn Mazur, John McLaughlin, Vince Wilburn (sobrinho de Miles), dentre outros. Um álbum conceitual de exótica sonoridade.
Hot House Flowers (Columbia, 1984). O ano é 1984, as fusões elétricas e eletrônicas do jazz fusion já beiram a saturação e o jazz acústico agora ressurge do limbo com a implacável força dos pulmões de um jovem nerd vindo de New Orleans. O nome dele é Wynton Marsalis: e, curiosamente, ele surge com uma inspiração inicial que advém justamente das abordagens sessentistas de Miles Davis -- do cool, modal jazz e post-bop -- antes da famigerada fase elétrica. Hot House Flowers, inclusive, surge influenciado pela abordagem "cool" que Miles empregou em suas ricas parcerias com Gil Evans, mais especificamente nas gravações com arranjos orquestrais de álbuns como Miles Ahead (Columbia, 1957) e Sketches of Spain (Columbia, 1960). A diferença é que aqui Wynton mistura arranjos de palhetas e metais com arranjos de cordas, ao passo que Gil Evans e Miles amaciou seus arranjos apenas com naipes de palhetas e metais. As críticas negativas da época irão dizer que o jovem Wynton está apenas revivendo os bons ecos de outrora. A consciência de Wynton lhe dirá o contrário: que agora o futuro do jazz consistia em reviver o passado dos mestres e seus standards com uma releitura atualizada. E este disco deixa clara essa expectativa de se vestir os standards clássicos com arranjos contemporâneos, sem comprometer os elementos originários. As interpretações de Wynton Marsalis são finíssimas: a primeira faixa é considerada uma das versões mais belas da manjada "Stardust", com Wynton trabalhando os detalhes com muita minuciosidade, desde a intensidade do seu sopro, passando pelo lirismo das frases, até os improvisos, interagindo com maestria telepática com a orquestra de metais e a sessão de cordas regidos pelo arranjador Robert Freedman. Características como essas também aparecem em igual quantidade nas faixas "Django", original de John Lewis, e "Melancholia", de Duke Ellington. Além dos sete standards arranjados, a faixa onde Wynton mais imprime sua própria originalidade e sua promissora marca composicional é na faixa-título, a requintadíssima balada "Hot House Flowers", que traz belos solos Kent Jordan (flauta) e Branford Marsalis (sax soprano). Aqui temos um "jazz with strings" mais contemporâneo.
Blood on the Fields (Columbia, 1997). Ao lado de Duke Ellington e Charles Mingus, Wynton Marsalis é o compositor de peças estendidas mais ousado que se tem notícia, inclusive tendo escrito diversos concertos e sinfonias no âmbito third stream. Seu estilo próprio de sincopações é inconfundível e suas composições estendidas são de uma criatividade ímpar, com uma elaboração rica de detalhes e um aprofundamento de pesquisas fora de série. Incorporando a figura do educador-missionário, Wynton é um revisionista do jazz e da cultura tradicional americana que desde sempre rechaçou o imediatismo do pop, as letras degradantes do hip hop, a eletrônica sintética do fusion e as abstrações exploratórias do avant-garde e tomou para si a missão de manter viva a consciência em torno dos elementos característicos da identidade americana constituída de tradições de brancos, negros e índios. Dentro de um certo range de tempo e estéticas que compreende do ragtime e work songs do final do século 19 até o post-bop de Miles Davis e o free jazz de Ornette Coleman nos anos de 1960 do século 20, Wynton já abordou, resgatou, revisou e se inspirou em tudo: dos fundamentos primordiais do blues e ragtime até o free jazz que Ornette Coleman elaborou em torno das suas primeiras ideias harmolódicas. O problema que seus críticos mais ferrenhos alegam existir é que toda a vanguarda subsequente pós Ornette, que subverteu os padrões e as convenções timbrísticas e melódico-rítmico-harmônicas dessa fase inicial entre surgimento e modernização do jazz, são omitidas ou tratadas com uma gélida indiferença pelo trompetista em sua missão de porta-voz principal do jazz no complexo do Lincoln Center, nas entrevistas de jornais e nos programas de TV dos quais participa. Ademais, o principal lema de Wynton é "All Jazz is Modern": ainda que ele reconheça que há estilos diferentes em cada época, ele rechaça a ideia que exista uma divisão temporal da música, um tipo de jazz tradicional-antigo e outro tipo de jazz moderno, ou um tipo de jazz moderno e outro tipo de jazz de vanguarda que seja esteticamente mais avançada e contemporânea que o jazz moderno de outrora -- e é com essa visão que ele cria a maioria das suas mais longas e estendidas peças, as quais são sempre repletas de elementos variados da história do jazz. Liderando a big band Lincoln Center Jazz Orchestra -- atualmente chamada Jazz at Lincoln Center Orchestra -- que ele mesmo fundou no final dos anos 80, as duas principais inspirações de Wynton quando o assunto são os fundamentos da orquestração jazzística são Duke Ellington e Charles Mingus.
Pode-se considerar que o trabalho de Wynton Marsalis com a Jazz at Lincoln Center Orchestra em suas peças mais estendidas é uma extensão natural das concepções de Ellington e Mingus, com peças que são apresentadas com a real intuição de potencializar, exacerbar e até transcender -- sem as subverter -- as características e os arranjos em torno das inspirações advindas desses dois titãs das composições estentidas e da orquestração.
Especificamente em Blood on the Fields, Wynton Marsalis usa e abusa como nunca do rigor e da ousadia típica da escrita erudita através de um projeto eminentemente jazzístico: ou seja, estamos diante de um oratório misturado com uma espécie de ópera com encorpadas e rebuscadas orquestrações jazzísticas e efeitos conformes e disformes que são elaborados com a real intenção de enfatizar as caricaturas e figuras em torno da história dos EUA. Acima de tudo, Blood on the Fields é uma ópera que evidencia um ousado trabalho de pesquisa e de arranjo musical baseado na escravidão e na origem da cultura americana. A riqueza de elementos e ingredientes ligados à tradição do jazz e à cultura americana é absurda: a obra aborda desde elementos arcaicos e históricos como as work songs (canções indeterminadas, entoadas pelos negros enquanto trabalhavam nas fazendas de algodão), o negro spirituals (canções negras espirituais), o blues, o gospel (a canção protestante americana, oriunda do sul dos EUA), o fieddle (estilo pré country music), o ragtime, os ritmos afro-latinos, o second line (ritmo característico das bandas tradicionais de New Orleans) e o swing, até elementos modernos como o bebop, o post-bop e até algumas cacofonias freejazzísticas aqui e ali. O exotismo, a riqueza de efeitos e detalhes, é impressionante: sincopações saltitantes, cantos e contracantos sobrepostos, efeitos de surdinas inusitados, dissonâncias contrastantes, scatting vocals criativos (improvisação com a voz), gritos, vozes em coro, melodias espirituais entoadas, palmas, cacofonias, além dos solos inflamados de saxofones, trombones e trompetes em sobreposições inexplicáveis e dos recursos tradicionais de percussão (como, por exemplo, o uso do pandeiro fazendo a vez da bateria em algumas partes). Ademais, por detrás de toda a riqueza do arranjo musical está o uso estratégico da voz para ditar uma temática baseada na escravidão norte-americana. Na verdade, a Blood on the Fields está registrada na Boosey & Hawkes (publicadora especializada em partituras de obras de cunho erudito), como uma peça escrita para big band de jazz e três vocalistas, mas em alguns momentos Wynton usa as vozes dos próprios músicos para ditar, em coro falado, a estória temática da obra. O libreto traz a estória de um casal de negros, Jessé e Leona, que são tirados da África para trabalhar como escravos nos EUA, e explora toda a gama de sentimentos e consequências em torno desse drama tipicamente afro-americano. Os destaques ficam por conta da cantora Cassandra Wilson e John Hendricks nos vocais, de James Carter em alguns solos de sax barítono e clarone, de Herlin Riley na bateria e percussão, de Wyclife Gordon na tuba e Michael Ward no violino. Sendo lançada em um box de três CD's, Blood on the Fields é uma das composições estendidas mais extensas que se tem notícia e foi a primeira obra de jazz a ganhar um Pulitzer Prize for Music (vide, também, a peça Ten Freedom Summers, lançada por Wadada Leo Smith em um box de cinco CD's, que também chegou a ser indicada para concorrer ao Prêmio Pulitzer).
Coming About (Enja Records, 1996). Os anos 90 assistiu ao surgimento de uma das grandes inovadoras do arranjo orquestral dos últimos tempos e, consequentemente, da história do jazz: Maria Schneider (foto no início do post), a mais premiada bandleader da atualidade. Suas peças sempre trazem uma interação entre o pop e o jazz, o canto e o arranjo instrumental, o som e a imagem, e refletem uma orquestração contemporânea com arranjos melodiosos, sinestesias sonoras poéticas e imagéticas, harmonizações requintadas e atmosferas um tanto leves que mostram um lirismo de inventividade ímpar -- algo que muitos críticos americanos chamam de "o mais contemporâneo cool jazz". A concepção de arranjo de Maria Schneider consiste em basicamente reformular o conceito de big band para uma nova estética de orquestra contemporânea que tem ecos nas inovadoras concepções dos mestres arranjadores Gil Evans e Bob Broockmeyer: com temas de grande extensão melódica, inovadoras e suaves texturas tonais no registro médio (frequentemente usado tons suaves de saxofones com clarinetes e flautas), com um uso menos abrasivo dos metais (sem aqueles rompantes agudíssimos) e com um uso mais elaborado em torno da bateria, que agora soa mais solta, "melódica" e cumpre a função de acrescentar mais efeitos do que beats explosivos. E um dos grandes álbuns onde Schneider começa a mostrar seu estilo é este Coming About (Enja Records, 1996). Quando nos deparamos com a discografia de Maria Schneider fica difícil escolher apenas "um álbum essencial", uma vez que seu estilo vai tomando forma e surpreendendo disco após disco com uma imaginação criativa que parece não ter fim: o último álbum da arranjadora, o fantástico Data Lords (2020), por exemplo, é de um requinte impressionante e chegou até ser finalista do Pulitzer Prize for Music. Mas este Coming About me soa uma referência ideal para esta lista justamente por já evidenciar em meados dos anos 90 -- numa fase em que o jazz estava no auge do resgate dos seus antigos valores e de uma releitura contemporânea das suas tradições -- essas paletas sonoras inovadoras que já apontavam para o futuro do conceito de "jazz orchestra". Peças como o tema "El Viento" e a suíte "Scenes from Childhood", bem como a incomum releitura de "Giant Steps" de John Coltrane, evidenciam texturas e dinâmicas inéditas que flutuam entre calmaria e tensão, e nos submete à uma sinestesia incomparável entre sons e imagens.
Like Life (Storyville Records, 1998). O compositor e arranjador inglês Django Bates também é outro dos grandes inovadores do arranjo orquestral emergir nos anos 90. Dotado de uma ironia cômica e um humor satírico, Bates adota a linha da paródia e da deformidade para desconstruir, reinventar e remodelar standards do jazz e canções do rock e da pop music em versões orquestrais incomparáveis, e para dar vazão em suas próprias composições. Para tanto, Django Bates faz o uso frequente de "big bands" com instrumentações adaptadas para dar vazão em seus arranjos cheios de citações e misturas de estilos como o jazz, o pop, o rock, a soul music, o funk, a livre improvisação, entre outros. É assustador como que Bates consegue alcançar todo esse hibridismo e, ao mesmo tempo, deixar latente sua assinatura idiossincrática e incomparável, com arranjos sempre sinuosos e angulares. Django Bates é um pós modernista que sedimentou seu espírito criativo de uma forma muito eclética e bem articulada, transitando por vários cenários: criou um musical de circo chamado Circus Umbilicus, foi sideman de bandas como Zila do saxofonista africano Dudu Pukwana, Borderline do flautista inglês Tim Whitehead, First House do saxofonista inglês Ken Stubbs, entre outras, e teve algumas estadias americanas em bandas de músicos tais como o violoncelista Hank Roberts, o sax-altoísta Tim Berne e bandleader George Russell, onde pôde sedimentar os elementos da vanguarda do jazz e lapidar ainda mais as complexidades harmônicas do jazz contemporâneo. De certa forma, Django Bates representa a evolução de uma linha de trabalho que começa com Carla Bley e incorpora elementos do jazz-rock orquestral presenciado em bandas de Joe Zawinul e Gil Evans na passagem da segunda metade dos anos 70 para a primeira metade dos anos 80: só que em formas e estilos totalmente próprios, sempre com coloridos harmônicos angulares, com a idéia de espetáculo cômico e de deformidade em seus arranjos, estruturas e improvisações, o que também lhe faz alcançar uma sonoridade inconfundível. Este álbum acima é interessante porque Bates tem a chance de registrar, com a Orquestra de Jazz da Rádio da Dinamarca, os 19 temas que compõe sua cômica e inovadora peça Delightful Precipice, que é constituída tanto com releituras satíricas de standards e pastiches como por composições próprias humorísticas. Sendo o ganhador da edição de 1997 do Jazzpar Prize na Dinamarca, Django Bates conseguiu uma considerável repercussão européia com essa peça.
All Rise (Sony Classical, 2002). Em 1993, a orquestra do New York City Ballet apresentou pela primeira vez a peça "Jazz - Six Syncopated Movements" (registrada no álbum Jump Start and Jazz - Two Ballets), uma estruturada peça jazzística escrita por Wynton para o coreógrafo Peter Martins. E na plateia estava um ilustre telespectador: o célebre maestro alemão Kurt Masur, então diretor artístico da Filarmônica de Nova Iorque. Ao assistir o balé, Kurt Masur ficou tão impressionado com Wynton que começou a cogitá-lo para que ele compusesse uma peça de "jazz sinfônico" para a Filarmônica de Nova Iorque. Kurt Masur conta exatamente como foi o processo de aproximação entre ambos: "I was so impressed. I thought: 'This guy is so talented as a composer, and he can do even more than he already has. Nobody has continued in the way of Ellington and Kenton, writing symphonic jazz'. I called him and he came to my office, and he told me: 'No, because I never learned to compose and orchestrate for the symphony orchestra'. Three years later he called me again and said: 'Mr. Masur, I would like to talk to you. I think I could do a piece for the New York Philharmonic and my band". O resultado deste encontro foi o nascimento da magnífica peça All Rise, a primeira sinfonia de Wynton, escrita para orquestra sinfônica, big band e coral. A obra foi estreada em 29 e 30 de Dezembro de 1999 com a Filarmônica de Nova Iorque (regida por Kurt Masur), a Lincoln Center Jazz Orchestra e o coral Morgan State University Choir, tendo um imediato sucesso de público e crítica. Unindo música sinfônica com jazz, a peça All Rise é uma extensa sinfonia no melhor estilo "third stream" e neoclássico contemporâneo. A peça abrange vários momentos e várias tradições e, portanto, vários estilos e sonoridades musicais amalgamados: as orquestrações, arranjos e ritmos intercalam ragtime, marching band, coral gospel, swing, bebop, os próprios elementos sinfônicos e etc; e os estilos tradicionais evocados abrangem negro spirituals, gospel, dixieland, blues, swing inspirado em Duke Ellington, o bebop de Charlie Parker e Dizzy, o espiritualismo e o jazz modal de John Coltrane, ópera-jazz, e, claro, música erudita com inspirações diversas que vão desde Bethoven até Aaron Copland e Igor Stravinsky. O álbum que registra All Rise (Sony Classic, 2001), foi gravado em 2001 com o próprio Wynton Marsalis liderando a Lincoln Center Jazz Orchestra e com o maestro Esa-Pekka Salonen à frente da Orquestra Filarmônica de Los Angeles. Um exemplo seminal, estendido e contemporâneo do conceito third stream.
Eternal Interlude (Sunnyside, 2009). Também conhecido por liderar o ótimo The Claudia Quintet, John Hollenbeck é um dos expoentes maiores de uma geração de vanguardistas que prezam por um estilo de composição estruturada repleto de fragmentos, colagens e insights diversos, usando recortes (explícitos ou implícitos) de vários outros gêneros e subgêneros musicais. Em sua música, Hollenbeck preza pela composição de uma escrita altamente elaborada, condicionando o improviso como apenas um dos vários recursos a serem explorados dentro dos arranjos repletos de ingredientes. Dentre suas inspirações estão compositores de gênero musicais diversos tais como Meredith Monk (pioneira da música vocal experimental), Bob Broockmeyer (inovador da orquestração do jazz, mencionado acima), Brian Eno (ambient music, art rock e no wave), Ligeti (vanguarda erudita, a partir dos anos 60) e John Adams (compositor de música erudita contemporânea atrelado ao minimalismo). Os efeitos minimalistas e pós-minimalistas são um componente muito importante dentro do seu amálgama musical. John Hollenbeck possui, enfim, uma refinada inteligência para trabalhar vários efeitos e combinações de ritmos, estilos, timbres, além de uma original e mui elaborada escrita composicional. E um dos seus principais laboratórios de criação é seu conjunto orquestral -- ou melhor: seu "ensemble" -- chamado de Large Ensemble. Com este grupo, Hollenbeck já lançou três destacados álbuns: A Blessing (2005), Eternal Interlude (2009) e All Can Work (2018), registros com os quais passou a figurar no topo das indicações ao Grammy e dos rankings de melhores da revista Downbeat. Vale lembrar ainda que, em face à sua elabora e erudita forma de compor, Hollenbeck passou a receber diversas comissões e encomendas para compor para outros grupos, incluindo encomendas para formações eruditas. No álbum Eternal Interlude, por exemplo, a composição Foreign One (baseada na Four In One, de Thelonious Monk) é fruto de uma composição comissionada pela Scottish National Jazz Orchestra; a composição Eternal Interlude foi comissionada por Gotham Wind Symphony (com Sigi Feigl); a peça Guarana foi comissionada pela University of Northern Colorado Jazz Ensemble; a faixa seguinte The Cloud foi comissionada pela Bamberg Symphony Choir and Big Band; e, por fim, a última faixa Perseverance foi comissionada pela Orquestra Jazz de Matosinhos. Em termos estéticos, temos aqui a mais contemporânea amostragem de orquestração jazzística. E não é à toa que Hollenbeck intitule esse seu conjunto com o vago título de "Large Ensemble": ele parece fugir do conceito já manjado de "big band" e seu estilo de composição e arranjo se remete à criatividade e às estruturações dos ensembles de música erudita contemporânea, o que também enriquece suas abordagens jazzísticas -- e numa amálgama das mais surpreendentes.
Infernal Machines (New Amsterdam Records, 2009). Darcy James Argue, um dos artistas da inventiva etiqueta New Amsterdam Records, é outro dos arranjadores que transitam pela mesma linhagem de Maria Schneider, mas com um enviesamento ainda mais outsider que se remete ao pós-minimalimo indie e à música erudita mais "underground". Quem já ouviu este Infernal Machines (2009) logo vai sentir que o conceito de "jazz orchestra" de fato caminha para uma evolução onde o formato "big band" dá lugar para uma espécie de "ensemble" mais contemporaneamente híbrido, onde os arranjos inspirados pelas melodias do pop e do rock contemporâneos condensam toda a dança proposta pelo swing e todos os fraseados estabelecidos pelo bebop em linhas improvisativas mais fluidas, com os naipes se sobrepondo em arranjos mais flutuantes e ricos de dinâmicas e efeitos: ou seja, os arranjos são cheios de elementos rítmicos-melódicos-harmônicos implicitamente advindos de outros gêneros musicais; os arranjos flutuam o tempo todo entre texturas cristalinas e tensões mais densas; as sobreposições se utilizam de improvisos jazzísticos, mas com reais inspirações da música erudita contemporânea, com um recorrente uso de efeitos da música minimalista; os pulsos são mais implícitos, com menos sincopação, e com mais beats advindos do post-rock, pop, folk, eletrônica e seus arredores contemporâneos; além de uma clara inspiração nas ambiências eletrônicas mesmo quando as texturas são essencialmente acústicas. Tomando como inspiração uma menção do célebre John Philip Sousa (1854 - 1932), compositor pré-jazz de marchas militares que se tornaram célebres standards americanos -- que, com sua visão antiquada, dizia que os gramofones e aparelhos de gravação eram máquinas infernais inventadas para a produção de "música enlatada", e que isso acabaria com a criatividade na música --, Darcy James Argues intitula este álbum de Infernal Machines e nos apresenta pela primeira vez essa sua estruturada visão de orquestração. Darcy e seu ensemble Secret Society nos apresenta reais intenções de transcender tudo o que já soava convencional em termos de arranjo orquestral no jazz contemporâneo. Assim como Maria Schneider, Darcy James Argue foi um dos alunos de Bob Brookmeyer e pode ter trazido daí várias das influências primordiais para sua própria concepção de orquestra. Contudo, a forma como ele mistura as influências do post-rock, o uso de efeitos minimalistas, as tratativas com guitarras elétricas e elementos de eletrônica, todos esses elementos são amalgamados de forma a colocar a música de Darcy James Argues no âmbito inclassificável e futurista de arranjo orquestral. Alguns críticos chegaram a dizer que Darcy James Argue -- junto à John Hollenbeck -- representa "o futuro da orquestra de jazz".
Portrait in Seven Shades (Jazz At Lincoln Center, Inc., 2010). Aqui estamos diante de um dos melhores e mais criativos registros de big band das últimas décadas -- e, consequentemente, da história do jazz. Portrait in Seven Shades é uma peça em sete movimentos escrita e arranjada para big band pelo saxofonista Ted Nash e comissionada pela Lincoln Center Jazz Orchestra, liderada por Wynton Marsalis. Cada movimento é dedicado a um grande mestre da pintura. São eles: Picasso, Van Gogh, Monet, Matisse, Chagall, Dalí e Pollock. Ted Nash, membro estelar da Jazz at Lincoln Center Orchestra, é um amante inveterado da pintura moderna e um profundo conhecedor das obras de vários pintores, concretizando aqui um projeto tão original quanto ousado. Nash conta que para desenvolver os temas e arranjos, teve que pedir para que Wynton Marsalis, junto à presidência do Jazz at Lincoln Center, contatasse o Museu de Arte Moderna de NY, o MoMA, para que ele tivesse acesso total ao acervo e aos registros dos quatros, onde poderia estudar mais a fundo as características de cada pintor. Envolto na extrema dificuldade de escolher alguns poucos pintores, Ted Nash limitou sua escolha em sete artistas principais que viveram num período de cem anos, fazendo uma alusão aos cem anos de idade do jazz: ou seja, do fim do período impressionista com Monet, passando pelo surrealismo de Dalí até o expressionismo abstrato dos anos 50 e 60 com Jackson Pollock – Nash acredita, enfim, que é possível fazer uma alusão desse período com o período entre o nascimento e desenvolvimento do jazz, no qual esse gênero musical sofreu transformações idiomáticas e estéticas similares às das artes plásticas. Este álbum foi abordado na nossa série Jazz and Art aqui no blog . Acesse >>>> o link para ler a resenha completa.
Ten Freedom Summers (Cuneiform, 2012). Wadada Leo Smith gestou aqui uma das masterpieces do nosso tempo. E ainda que a obra não tenha sido elaborada com a intenção de ser reproduzida em concertos por grandes ensembles eruditos -- como as grandes peças clássicas dos compositores barrocos, clássicos, românticos e modernos --, a gravação, o registro em si, tende a se perpetuar como um documento seminal da intersecção do jazz, livre improvisação e a escrita erudita contemporânea. Este álbum é um avanço nesse sentido: ele traz uma programática, baseada nas observâncias do compositor quanto à história da luta pelos direitos civis, que é desenvolvida no mais alto nível de expressão abstrata, tornando-se um registro híbrido de escrita e improvisação, de conteúdo programático e abstração. Ten Freedom Summers é, na verdade, uma ousada peça de 19 partes que já vinha sendo sedimentada e elaborada desde os anos 70: Wadada Leo Smith já tinha escrito algumas das partes e, de tempos em tempos, veio adicionando material até concluir a idéia em torno desse formato estendido de 19 partes. Atuando com seu quarteto de jazz -- com os bateristas Pheeroan akLaff e Susie Ibarra, o pianista Anthony Davis e o contrabaixista John Lindberg -- mais a colaboração do Southwest Chamber Music, um grupo de câmera de 9 músicos -- incluindo cordas, clarinete, harpa, flauta e percussão sinfônica --, Wadada Leo Smith explora, por meio de contemplativos e introspectivos sketches, várias temáticas em torno de figuras afro-americanas e em torno de fatos-chaves da luta contra a segregação racial e da história da democracia dos EUA: o caso do escravo Dred Scott (1799-1858); o processo que ficou conhecido como "Thurgood Marshall and Brown vs. Board of Education" (1954), onde conclui-se que era inconstitucional separar as crianças negras das crianças brancas nas escolas; o boicote de Rosa Parks que se recusou a levantar para dar lugar para uma pessoa branca em um ônibus de Montgomery; o evento que ficou conhecido como The March on Washington for Jobs and Freedom (1963), no qual Martin Luther King proferiu seu inesquecível discurso "I Have A Dream"; entre muitos outros acontecimentos que se tornaram peças-chaves no quebra-cabeça da luta contra a segregação racial e à favor da formação da democracia americana. Muito embora a peça soe predominantemente erudita, há entusiasmantes passagens freejazzísticas, ecos advindos de Anthony Braxton e uma miríade de elementos criativos que Wadada Leo Smith condensou das suas experiências no avant-garde até conseguir exprimir a completude expressiva dessas 19 partes distribuídas em 4 horas de música introspectiva. A escuta, inclusive, pode ser exaustiva, mas também pode ser compensatória para os ouvidos mais experimentados. Essa peça chegou a ser finalista do Pulitzer Prize em 2013 e alcançou uma imediata aclamação da crítica especializada.
Arrival (Rune Grammofon, 2019). Este álbum acima é um exemplo contemporâneo de como a Escandinávia é um dos cenários mais pulsantes dos últimos tempos. Quem acompanha o universo da free music sabe o quão incansável é o saxofonista sueco Mats Gustafsson. Surgindo no cenário escandinavo nos anos 90 com um toque vulcânico e logo criando uma conexão com o cenário de Chicago de Ken Vandermark -- além de manter reverência aos mestres Joe McPhee e Peter Brötzmann --, aos poucos, Gustafsson foi enriquecendo suas abordagens com uma visão diferenciada que passou a congregar outras variabilidades da música: efeitos de noisecore, garage rock, coletivos orquestrais e até canções pop e soul music -- vide, por exemplo, o álbum The Cherry Thing (2012), com o trio The Thing e a cantora Neneh Cherry, enteada do legendário trompetista americano Don Cherry. E este álbum acima é mais um dos registros a documentar uma das extensões da sua música diversificada. A Fire Orchestra é, na verdade, uma extensão do power trio Fire! que ele forma com Johan Berthling (contrabaixo) e Andreas Werlin (bateria), um dos combos de mais longa duração do saxofonista, um combo que lhe deu a chance de prosseguir criando música com um leque amplo de possibilidades. Junto ao trio, músicos criativos da Suécia, Noruega, Dinamarca e França se juntaram para formar um projeto em torno de um coletivo de 28 músicos, fixos e rotativos. Com a adição eclética de guitarra, piano, teclados e vocais, em 2011 o coletivo iniciou seus ensaios, pesquisas e composições em torno de estruturas abertas para a inclusão -- ou misturas das mais exóticas -- de elementos das mais variadas estéticas musicais tais como noise, free jazz, industrial music, psych rock, música improvisada e etc, incluindo covers diferentões de canções pop e as sempre excitantes intervenções freejazzísticas para desconstruir temas com estruturas pré concebidas. Deu certo: o coletivo nórdico já conta com cinco álbuns lançados. Passando por diversas formações e mudanças ao longo dos anos, o número de músicos participantes chega neste álbum duplo acima num total de 14 membros, dentre o quais participam as cantoras Mariam Wallentin e Sofia Jernberg, além da bela inclusão de clarinetes, obóe e um quarteto de cordas. Ao todo, são cinco temas originais mais os covers de "Blue Crystal Fire" do cantor folk americano Robbie Basho, e de "At Last I Am Free" de Bernard Edwards e Nile Rogers, fundadores da banca Chic, que fez sucesso nos gêneros funk e disco music a partir dos anos 70. Portanto, aqui temos uma curiosa intersecção orquestral de free improv, canções vocais, arranjos de cordas, noisecore, eletrônica e ruídos vários. O canto em duas vozes de Mariam Wallentin e Sofia Jernberg evidencia as sempre curiosas entonações vocais nórdicas em meio à instrumentação. Registro editado pela Rune Grammofon.
Imaginary Cities (ECM, 2015). O saxtenorista Chris Potter, nome maior do post-bop contemporâneo, gestou aqui uma forma interessante de viabilizar seu "jazz with strings" sem recriar um pastiche açucarado. Imerso pelo conceito de ambiência e atmosfera da ECM, Chris Potter escala aqui seu renomado Underground Quartet -- com o qual já vinha anteriormente empreendendo um post-bop de sonoridades um tanto imagéticas e urbanas -- para atuar junto de um quarteto de cordas e músicos convidados tais como o vibrafonista e marimbista Steve Nelson e os guitarristas Fima Ephron (guitarra-baixo) e Adam Rogers (guitarra elétrica), formando com esse conjunto músicos sua Undergound Orchestra. Na verdade, temos aqui uma banda que varia em passagens e configurações de oito a onze músicos -- uma orquestra compacta, portanto. É muito interessante a forma singela, e ao mesmo tempo moderna e agravável, com a qual Chris Potter insere as cordas dentro dos arranjos dos temas: com arranjos e ponteios eruditos, harmonizações que se rementem aos acordes modais do jazz contemporâneo, com acompanhamentos que se contrapõem com os improvisos do jazz quartet e com as cordas frequentemente expondo os motivos principais dos temas ao invés de só figurar no acompanhamento, além de criativos arranjos com pizzicato (forma de tanger as cordas dos violinos, viola e cello). Com sua suite "Imaginary Cities" em quatro partes e outros quatro temas variando entre influências do funk, rock e pop, Chris Potter gesta aqui um dos seus melhores álbuns da carreira, remetendo-se à abordagem "jazz with strings", iniciada com Charlie Parker, mas fazendo-o de forma pessoal e diferente -- sem aderir aos pastiches que são constantemente reproduzidos nessa abordagem por aí afora. Sendo o solista principal da sua "orquestra", Chris Potter soa ora melódico, ora visceral, e outrora consegue equilibrar melodiosidade com visceralidade mesmo diante do "conceito ECM" de ambiências -- ou seja, sem comprometer a ambiência e as nuances atmosféricas e meditativas condicionadas pelas harmonias contemporâneas.
Booth Are True (Greenleaf Music, 2020). Apresentando nove composições originais das musicistas Anna Webber e Angela Morris, incluindo uma peça que integra um texto da poetisa e escritora Maya Angelou, este álbum praticamente condensa todos os elementos que elencamos acima em outras big bands e orquestras contemporâneas. Ou seja, aqui ouvimos muitos ecos do que há de moderno e contemporâneo em termos de big band e pratica coletiva: dos elementos ellingtonianos, do "cool jazz contemporâneo" de Maria Schneider, dos contrapontos minimalistas do Large Ensemble de John Hollenbeck, das estruturas inteligentes de Darcy James Argues e sua Secrety Society, do efeitos ruidosos do noisecore, dos característicos improvisos e sombreamentos de Anthony Braxton e suas "creative orchestras", do chamber jazz de Henry Threadgill, entre outros. Mas mais interessante e ainda mais importante é a integridade e consciência social que norteia a formação dessa big band. Mobilizadas pela luta contra o preconceito racial impulsionada pelo movimento Black Lives Matter, Anna Webber e Angela Morris sentiram que em certos ambientes ainda há um ônus no reconhecimento de que as big bands e o jazz estão enraizados na cultura negra. Então, ao formar essa big band, as duas musicistas fazem uma inteligente intersecção dos elementos orquestrais advindos do erudito, cool jazz, pop, rock e do minimalismo evidenciados por bandas de músicos e compositores brancos com os elementos criativos evidenciados por compositores negros que escreveram para big band, tais como Mary Lou Williams, Duke Ellington, Billy Strayhorn, Sun Ra, Roscoe Mitchell, Henry Threadgill e Anthony Braxton. E ainda que se trate de um projeto em seu início de desenvolvimento, o resultado surtiu efeito em um registro cheio de criatividade e arranjos inesperados. Lançado pelo selo Greeleaf Music, com produção do trompetista Dave Douglas, este álbum acima, pois, traz abrangenes abordagens quanto às modernidades e contemporaneidades relacionadas às big bands e orquestras de jazz. A Webber/ Morris Big Band é, enfim, uma formação nova e este álbum acima é apenas seu primeiro registro... Portanto, pedimos e esperamos que Anna Webber e Angela Morris continue a nos impressionar em seus projetos orquestrais com essa big band.
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