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¡Viva Las Americas! 35 Albums w/ indians, inuit, fiddle, afro-cuban, samba, tango, salsa, plena, musica de Los Andes...

 
Uma das percepções mais confirmadas entre críticos e pesquisadores é a de que o Brasil é um tanto desconexo -- ainda mais nos últimos tempos, com as políticas de um desgoverno claramente enviesado ao fascismo -- das suas relações e afetividades culturais com os outros países da América Latina, como se não tivéssemos os genes da latinidade correndo em nossas veias. Quer dizer: algumas conexões de músicos brasileiros com outros músicos sul-americanos até acontecem, mas num número relativamente insignificante ante à multidão de grandes instrumentistas e a imensurável riqueza musical que essa região do globo terrestre detém. A riqueza cultural da American Latina é gigante, e o Brasil -- com sua música de riqueza imensuravelmente diversa -- só teria a ganhar com a ampliação dos intercâmbios com seus países-irmãos. Neste post, lhes trago uma lista de álbuns de alguns dos principais músicos, bandas e grupos da América Latina, do Caribe e da América do Norte em suas mais variadas sonoridades e manifestações rítmicas. A ideia aqui é trazer uma lista da "world music contemporânea" -- se é que possamos rotular assim -- produzida nos últimos tempos nas Américas. Dois dos guias musicais mais relevantes para os pesquisadores de world music é o The Rough Guide to Music e a Smithsonian Folkways World Music Collection, guias nos quais, inclusive, busquei algumas inspirações. Mas a lista que vos trago abaixo sai um pouco fora da curva do conceito convencional de world music ancestral porque desconsidera as manifestações arcaicas e tribais das tradições musicais das Américas, e considera principalmente as produções musicais que prezam por roupagens e conexões mais modernas e contemporâneas quanto ao uso dos elementos dessas tradições. Uma vez que aqui no blog prezamos pela música moderna e contemporânea, não faria sentido mostrar, por exemplo, gravações da música tradicional andina produzida pelos índios peruanos e bolivianos em suas mais primais, ancestrais e tribais sonoridades -- essas gravações etnomusicológicas já existem aos montes em canais do YouTube e em blogs e sites que abordam a world music. Mas faz total sentido para o Instrumental Verves investigar, por exemplo, como que os elementos dessas tradições indígenas dos Andes são, nos últimos tempos e hoje, inflexionados pelos músicos contemporâneos -- esse é o nosso campo de pesquisa aqui: investigar como que os elementos dessas tradições tribais e folclóricas são enxertados e inflexionados dentro da música contemporânea. Ademais, ao estudarmos como que os elementos dessas tradições são explorados na música contemporânea, inevitavelmente acabamos por incitar nossa curiosidade em conhecer e imergir nas próprias formas primais e tribais dessas tradições -- assim, nossa pesquisa acaba abordando os dois lados, inevitavelmente. Portanto, quase todos os álbuns abaixo tratam de linguagens instrumentais que inflexionam e modernizam os elementos advindos dessas tradições musicais das Américas: da música andina, do tango, do samba, do choro, dos ritmos do nordeste brasileiro, dos ritmos garífuna e caribenhos da América Central, dos ritmos afro-cubanos e até da música nativa americana, da country music e da música inuit dos esquimós da América do Norte, entre outros... Clique nos álbuns para ouvi-los. Ouça a playlist no final do post. 

Retribuition (Six Shooter Records, 2016) - Tanya Tagaq (Canadá): katajjaq, inuitAtualmente, a canadense Tanya Tagaq é uma das mais reconhecidas artistas a usar as possibilidades das chamadas técnicas do canto de garganta inuit (também chamado katajjaq), gênero dos povos inuit popularmente chamados de esquimós. As abordagens de Tanya Tagaq transpassaram, pois, os limites da música tradicional praticada pelos esquimós dos extremos mais gélidos do Canadá e conquistou diversos artistas e músicos contemporâneos pelo mundo afora, incluindo suas participações, por exemplo, em álbuns da cantora islandesa Björk. Tradicionalmente, o canto de garganta inuit (ou katajjaq ) é um jogo dificílimo de técnica e respiração onde duas mulheres ficam a centímetros de distância uma perto da outra em um duelo de canto, ou mesmo forçando o riso uma da outra através de diversos efeitos vocais guturais -- uma prática muito comum na cultura dos esquimós. Essas técnicas de garganta, porém, oferecem efeitos guturais tão únicos que desafiam nossa compreensão de canto e instrumentalização da voz: as cantoras dos povos inuit são capazes de produzir até efeitos multifônicos com suas cordas vocais. Este álbum acima, Retribution (Six Shooter Records, 2016), é o quarto álbum de estúdio de Tanya Tagaq e traz participações do rapper Shad, do artista inuit Laakuluk Williamson Bathory, do flautista Radik Tyulyush da República de Tuva, do coral The Element Choir de Toronto, do gaitista Orville Zubot, do violinista Jesse Zubot, do trombonista William Carn, do baterista e do manipulador de eletrônicos Jean Martin, entre outros instrumentistas. Tanya Tagaq procura trazer, enfim, as possibilidades do canto inuit para o plano experimental do avant-pop, mostrando arranjos instrumentais que têm como papel criar vários contrastes com essas vocalizações surreais. A faixa "Rape Me" é um cover da banda grunge Nirvana, sendo esse mais um sinal do interesse da cantora inuit em se conectar com outros repertórios. Em termos de temáticas e de conteúdo, Tanya Tagaq costuma usar sua música para protestar contra assassinatos e desaparecimentos ainda não resolvidos de mulheres indígenas, e contra as apropriações de terra e a dizimação da cultura inuíte. "If my singing is a platform to help these issues being raised...then I will do it with love, with laughter and with fists", diz a cantora.
The New Nashville Cats (Warner, 1991) - Mark O'Connor (EUA): fiddle, country, bluegrass.  O violinista Mark O'Connor é um dos símbolos maiores das matizes estilísticas relacionados ao bluegrass, fiddle e música country americana. O que Mark O'Connor faz é reunir os elementos dessas tradições e efetuar fusões com elementos do repertório do rock, do jazz e da música clássica. Com uma técnica violinística absurda -- sem dever nada aos mais técnicos violinistas eruditos, diga-se de passagem --, Mark O'Connor já lançou álbuns em diversos estilos e já tocou com os mais variados músicos, tendo uma notável parceria, por exemplo, com o trompetista Wynton Marsalis. Neste álbum acima, um dos grandes álbuns da história da música country, Mark O'Connor mostra a real intenção de explorar o lado instrumental mais visceral do country de Nashville, um dos berços dessa tradição. Para tanto, O'Connor selecionou um grupo de dezenas de músicos de Nashville e convidou outros tantos para participações. Este álbum foi premiado com dois Grammys: Melhor Performance Instrumental Country creditado a O'Connor, e Melhor Colaboração Country com Vocais creditado aos vocalistas Vince Gill, Ricky Skaggs e Steve Wariner.

The River (Innova Recordings, 2016) - Robert Mirabal & Ethel (EUA): musica nativa americana. O flautista Robert Mirabal é um dos mais destacados músicos nativos dos EUA. Filho da tribo Taos dos "Pueblos", povo indígena do sudoeste dos EUA, mais especificamente do Estado do Novo México, Mirabal também é um exímio fabricante de flautas, autor de contos e contador de estórias -- é, enfim, um artista multifacetado. Suas flautas são mundialmente valorizadas e já foram exibidas em diversas mostras, sendo que algumas estão expostas no Smithsonian Institution's Museum of the American Indian. Robert Mirabal também é um músico muito disputado pelos festivais de world music, sendo diversas vezes premiado como um dos mais notáveis nomes da world music mundial. Em 2007 ele ganhou um Grammy Award através do álbum Sacred Ground: A Tribute to Mother Earth (2006) na categoria Best Native American Music Album, e depois repetiria o feito mais duas vezes com outros lançamentos. Neste álbum acima, The River (2016), Roberto Mirabal se une ao eclético quarteto de cordas Ethel -- quarteto baseado em compositores contemporâneos e experimentais tais como John Luther Adams, John Zorn, Muhal Richard Abrams, Don Byron e Julia Wolfe, entre outros -- e lança um misto de sonoridades nativas e experimentais, onde as cordas usam muitas técnicas estendidas criativas para contrastar com as sonoridades das flautas, as entonações vocais indígenas e os efeitos electro-acusmáticos que acrescentam muito às atmosferas desse "faroeste indígena" musical. A temática em torno do álbum é a magia espiritual que as águas dos dos rios representam na história dos pueblos.

Chegada (Azul Music, 2005) - Naná Vasconcelos (Brasil): samba, frevo, baião, afoxé, música indígena e etc. Em um dos seus retornos ao Brasil após suas longas estadias no exterior, o percussionista brasileiro Naná Vasconcelos lança neste álbum um verdadeiro documentário musical de alguns dos brasis que existe dentro deste vasto Brasil. Abordando a música nordestina, ritmos das matrizes afro-brasileiras e sonoridades várias, o álbum Chegada é um dos melhores registros da discografia do percussionista. Dessa forma, ritmos como o samba, afoxé, baião, maracatu, elementos indígenas e outras manifestações da música tradicional brasileira aqui coexistem numa simbiose como em poucos momentos podemos atestar no espectro fonográfico da música instrumental brasileira. Naná Vasconcelos ainda tem uma faceta idiossincrática de explorar os sotaques e as sonoridades fonéticas e linguísticas do Brasil através de inflexões onomatopeicas e entonações vocais que agregam um interessante diferencial às suas criações e improvisos. Com arranjos inteligentes e instrumentações instigantes, Naná Vasconcelos tem as colaborações de Lui Coimbra no cello, Lucas Dos Prazeres em várias percussões, César Michiles nas flautas e saxes, e Chiquinho Chagas no acordeom e noutras teclas. Álbum essencial da música instrumental brasileira!



Dois Tempos (ACIT, 2001) - Yamandu Costa & Lucio Yanel/ Borghetti Yamandu (Estação Filmes, 2017) 
(Brasil): música gaúcha, milonga, chamamé, vanerão, ranchera, choro e etc. Lucio Yanel é um violonista argentino radicado na cidade de Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, que exerceu enorme influência sobre a música gaúcha. Um dos seus pupilos, inclusive, é o jovem virtuose Yamandu Costa, que neste álbum, Dois Tempos (2001), encontra o mestre para uma entusiasmante mostra da música instrumental violonística do sul do Brasil. A música do sul do Brasil, muito marcada pelas tradições da música missioneira gaúcha, traz ritmos e estilos musicais que são muito presentes nas regiões fronteiriças com a Argentina, o Uruguai e Paraguai: ritmos e estilos como a chacarera, a guarânia, o vanerão, o xote gaúcho, o chamamé, a vaneira, a milonga, a valsa gaúcha e a rancheira são verdadeiros emblemas dessa região. No começo da carreira, Yamandu, contudo, ganhou as atenções em todo o Brasil ao incorporar, também, o choro, o samba, o baião e outros estilos do sudeste, nordeste e de outras regiões brasileiras. Porém, Yamandu nunca deixaria de reafirmar seu compromisso com a latinidade que sempre lhe influenciou em suas incursões e estudos dos estilos musicais presentes nas fronteiras do Brasil com a Argentina, Paraguai, Uruguai, Bolívia e outros países da América do Sul. Ademais, outro parceiro frequente de Yamandu nesses registros sulistas é o bandoneonista Renato Borghetti, com o qual gravou um excelente álbum em duo marcado por muitos desses estilos musicais gaúchos.

Kuntur (Cabina Libre, 2011) - Lucho Quequezana (Peru): musica andina, zampoña, charango. Quem é brasileiro sabe que não é raro ver grupos de músicos indígenas peruanos e bolivianos tocando suas flautas andinas e vendendo suas músicas nos trens, metrôs e centros das grandes cidades brasileiras -- em São Paulo, essas demonstrações chegam ser até comum. O multi-instrumentista peruano Lucho Quequezana, pois, é um dos representantes mais requintados da música folclórica dos Andes e da cultura quéchua, tendo se tornado um músico não apenas famoso em seu país, mas multipremiado em todo o mundo. Proficiente em dezenas de instrumentos, Lucho Quequezana costuma empunhar flautas peruanas (quenas, zampoña e etc), quenacho, charango, violão, wankara, baixo, cajon, sintetizadores, eletrônicos, e diversos outros instrumentos para criar uma proposta onde a música folclórica dos Andes se funde com elementos contemporâneos da música erudita, da eletrônica, do jazz e da world music. Este seu álbum acima, Kuntur, foi o registro mais vendido do Peru em 2011 -- um feito considerável para um álbum instrumental, afinal -- e permanece como um dos registros instrumentais peruanos mais interessantes.

Centro (Mundovivo, 2001) - Entrama (Chile): musica andina, zampoña, charango. O grupo chileno Entrama é outro que faz uso dos elementos tradicionais dos entornos da Cordilheira dos Andes para produzir uma música de riquíssima contemporaneidade, geralmente com suas influências tradicionais diluídas numa miríade de fusões americanas e latino-americanas, incluindo o jazz e a música brasileira. As influências dos músicos do grupo remontam às explorações instrumentais que a cantora e violonista Violeta Parra e o cantor popular Víctor Jara empreenderam em suas bandas nos anos 60, e traz resquícios das guitarradas em estilo folk-rock empreendidas nos anos 70 por grupos chilenos como o Los Jaivas e o Congreso. Outras influências citadas incluem grupos como Huara e La Hebra, proveniente dos anos 80, e músicos brasileiros como Caetano Veloso, Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Jaques Morelenbaum e muitos outros. Formados em meados dos anos 90, o grupo Entrama decide criar, então, uma nova música em torno de todas essas influências. Um bom exemplo da paleta sonora do grupo é este álbum acima, Centro (Mundovivo, 2001), onde presenciamos temas com elaborados arranjos e harmonizações. Além das flautas andinas (quenas, zampoña e etc), os membros do Entrama também usam o guitarron chileno, o charango e outros instrumentos característicos em fusões com teclados, contrabaixo, cello e guitarras elétricas.

Camino (2012) - Gustavo Santaolalla (Argentina): musica andina, charango. Gustavo Santaolalla é um dos mais destacados músicos e compositores argentinos, sendo um premiado compositor de trilhas sonoras, altamente reconhecido como um regular colaborador do aclamado diretor mexicano Alejandro González Iñárritu -- aliás, desse diretor indico, a quem se interessar, os ótimos filmes 21 Grams (2003), Babel (2006) e Birdman (2014), esse último com trilha sonora original composta pelo baterista e compositor de jazz Antonio Sanchez. Santaolalla também foi integrante de algumas bandas do rock nacional argentino e empreendeu carreira até em bandas americanas após se estabelecer em Los Angeles nos anos 80, mas seu talento para a composição acabou lhe puxando mais para o cinema. Contudo, Santaolalla também empreenderia alguns curiosos álbuns instrumentais autorais com seu instrumento de cordas preferido, o ronroco -- instrumento de cordas do folclore andino, muito tradicional na Bolívia e nas regiões andinas da Argentina --, em torno do qual criaria toda uma sonoridade particular que seria bem característica em suas trilhas sonoras. Este álbum acima, Camino (2012) -- uma extensão do álbum Ronroco, de 1998 -- é uma amostra perfeita de como Santaolalla inflexiona suas influências argentinas e andinas de forma mais implícita através de amostragens em torno do ronroco solo e acompanhado de singelos arranjos cinematográficos, imagéticos, intimistas e minimalistas, muitas vezes usando singelas ambiências com violino, teclados, sintetizadores, flautas, harmônica baixo, além de mínimas pitadas de efeitos percussivos.
 
Las Cuatros Estaciones Porteñas (Proyecto Eletrico) - Escalandrum (Argentina): tango. Escalandrum é um sexteto de jazz contemporâneo da Argentina liderado por Daniel “Pipi” Piazzolla, neto do legendário compositor Astor Piazzola, que foi um dos grandes nomes do século 20 a colocar o tango no mapa mundi da música erudita moderna. Astor Piazzola fez do tango muito mais do que apenas um ritmo tradicional de dança, criando composições com arranjos eruditos e com elaborados desenvolvimentos e aberturas para a improvisação. É o caso de As Cuatro Estaciones Porteñas -- composta entre 1965 e 1970 em alusão às As Quatros Estações, de Vivaldi --, peça que já recebeu inúmeros arranjos eruditos tanto no âmbito camerístico como no âmbito orquestral. Neste CD acima temos, então, Daniel “Pipi” Piazzolla e o sexteto Escalandrum dando uma versão jazzística para esta obra seminal, além de abordar mais dois temas sortidos: "Milonga for Three and Finale" e "Camorra 1". Aqui neste álbum o sexteto vem numa formação estendida com Daniel "Pipi" Piazzolla (bateria, percussão), Nicholas Guerschberg (piano, arranjos), Mariano Sivori (contrabaixo), Damian Fogiel (saxofone tenor), Martin Pantyrer (clarinete, clarone), Gustavo Musso (saxofones alto e soprano), Stephen Sehinkman (sintetizadores) e Lúcio Balduini (guitarra, alaúde grego, bandoneon). O uso de mais um integrante empunhando sintetizadores é mais um adendo timbrístico para dar alguns tons de contemporaneidade à releitura da peça.
 
Skratyology (Strotbrock, 2009) - De Nazaten & James Carter (Suriname): kaseko, calypso, ritmos crioulos.  O De Nazaten é um octeto do Suriname composto por um baterista, um percussionista, um trompetista, dois saxofonistas (que se revezam no alto, tenor e flauta), um guitarrista, um trombonista e um tubista -- e dependendo da quantidade de músicos convidados, o octeto passa a soar até como uma "brass band" mais estendida, ou uma exótica "big band" caribenha. A banda traz resquícios das tradições estabelecidas pelas bandas militares das tropas holandesas do período colonial (as chamadas TRIS - Troepen In Suriname) e das bandas tradicionais de Paramaribo, capital do Suriname, e faz uma conexão com o jazz enxertando dentro dessa configuração instrumental muito dos elementos de ritmos tradicionais locais, tais como o kaseko, o calypso, o reggae e outros ritmos de identidade crioula e caribenha. Entre 2008 e 2009, o De Nazaten convida ninguém menos que o saxofonista virtuose americano James Carter -- e seu arsenal de saxes (que vai do sopranino ao barítono) -- para visitar o país, e grava com ele este álbum acima, Skratyology. O resultado é um inflamado exemplar de sopros embalados por esses ritmos crioulos suingantes.

Jacob 10ZZ (Deck, 2018) - Hamilton de Holanda Trio (Brasil): samba, choro. Hamilton de Holanda não é apenas um dos renovadores da estética do choro, estilo tradicional que é um dos pilares da música instrumental brasileira. Hamilton também é um dos inovadores do bandolim, tendo reinventado esse instrumento ao lhe adicionar um par de cordas graves  afinadas em dó para aumentar sua extensão de 8 para 10 cordas. Hamilton também pode ser considerado um inovador da música instrumental brasilera à medida em que ele parte da tradição das rodas de choro e expande seus horizontes incorporando muito da MPB, da world music e do improviso jazzístico -- hoje, aliás, o bandolinista é um dos músicos mais rodados no mundo, com parcerias com vários dos grandes instrumentistas internacionais de nível mundial. Para este álbum acima, lançado em 2018 pela Deck -- em homenagem ao centenário de Jacob do Bandolim --, Hamilton vem em trio com Guto Wirtti (contrabaixo acústico) e Thiago da Serrinha (percussão) fazendo uma conexão dos choros compostos por Jacob com a improvisação do jazz. Jacob do Bandolim que foi um dos mais emblemáticos compositores e modernizadores do choro e um dos principais propagadores do bandolim nas décadas de 50 e 60. Interessante notar, aliás, que Hamilton usou nesta gravação o raro bandolim que pertenceu ao próprio Jacob, um detalhe que acrescenta ainda mais autenticidade à sonoridade e ao propósito do álbum. A grande sacada, contudo, está nos preenchimentos e nas formas com os quais Hamilton de Holanda e seu trio acrescentam o improviso jazzístico por entre os ornamentos do choro elaborado por esse grande mestre dos anos 50 e 60.
 
O Marco do Meio Dia (Tratore, 2001) - Antonio Nobrega (Brasil): movimento armorial (maracatu, frevo, coco, baião).
O violinista e rabequeiro Antonio Nóbrega é considerado um dos nomes mais importantes nomes da cultura nordestina, e um dos maiores propagadores e pesquisadores da música e das artes e espetáculos dessa região do Brasil. Além de tocar violino desde a infância -- chegando a tocar com grandes orquestras sinfônicas --, Antonio Nóbrega é um mestre do espetáculo, fundindo música com teatro e dança numa concepção totalmente própria, muito baseada pela literatura de cordel e pelos conceitos do circo nordestino. Um dos seus primeiros grandes projetos foi o Quinteto Armorial no final dos anos 60: convidado pelo mestre, fomentador cultural e escritor Ariano Suassuna -- o grande idealizador do Movimento Armorial --, Antonio Nóbrega ajudou esse grande quinteto a propagar a música nordestina numa inovadora fusão de música de câmera erudita com as sonoridades e ritmos nordestinos tais como o coco, a embolada, o frevo e o maracatu, incluindo nessas fusões a valorização da literatura de cordel, dos conjuntos de pifes e das artes e espetáculos nordestinos. Este disco de Antonio Nobrega é um projeto misto de canções, poesias e instrumental -- um registro de um espetáculo original que já vinha rodando os palcos e teatros do Brasil -- onde o violinista e rabequista tem a colaboração dos poetas Wilson Freire e Bráulio Tavares, do multi-instrumentista Zezinho Pitoco, do compositor Antônio José Madureira e do próprio mestre Ariano Suassuna, que colabora com a poesia da faixa Martelo do Marco do Meio-dia.

Palhaço do Circo sem Futuro (2003) - Cordel do Fogo Encantado (Brasil): manguebeat (maracatu, frevo, coco, funk). Se Antonio Nobrega representa o movimento armorial (movimento de resgate e valorização das artes populares nordestinas em suas formas mais autênticas e primais), o grupo Cordel do Fogo Encantado é um dos representantes do movimento manguebeat (movimento de valorização dos ritmos nordestinos pelas vias da inovação e experimentação). O grupo Cordel do Fogo Encantado nasceu nas cidade de Arcoverde, Pernambuco, entre fins da década de 90 e início da década de 2000, primeiramente como um espetáculo de teatro baseado na poesia do agreste nordestino e na literatura de cordel. Inicialmente as estórias e declamações de poesia eram feitas por José Paes de Lira (conhecido como Lirinha) e a peça era contracenada por seus colegas atores Clayton Barros e Emerson Calado. Era um momento em que o movimento do manguebeat estava em alta e a sina dos produtores de cultura nordestinos era valorizar a literatura de cordel, os ritmos afro-indígenas do Nordestes e todos os adereços culturais do agreste: uma sina que já vinha embalada pelo movimento armorial a partir das décadas de 70 e 80, mas que agora ganhava contornos de rock, psicodelia punk, batidas de funk e hip hop, eletrificações áridas e efeitos eletrônicos vários. O grupo de teatro tem a ideia, então, de acrescentar música aos espetáculos e alcança grande sucesso de público e crítica. Uma curiosidade, porém, é que o grupo manteria uma instrumentação essencialmente acústica -- com quase nada de recursos eletrônicos, a não ser os recursos de mixagem em estúdio --, usando apenas violões e uma percussão densa e chamativa. Contudo, as performances enérgicas do grupo evidenciam uma clara influência do manguebeat liderado pelo músico e agitador cultural Chico Science. Em 2001, com produção do mestre Naná Vasconcelos, o Cordel do Fogo Encantado grava seu primeiro álbum homônimo. Este álbum acima, produzido de forma totalmente independente, é seu segundo tento: é onde as percussões ganham maior energia e densidade, e onde o grupo usa alguns samplers implícitos pra temperar o salseiro de poesia falada, canto, pandeiros e tambores.

Cuarto de Colores (2005) - Edmar Castañeda (Colombia): llanera, joropo, bambuco, cumbia, samba, landó, flamenco
Esse é o primeiro álbum do harpista colombiano Edmar Castañeda, que é um dos principais músicos de latin jazz de renome mundial. Edmar Castañeda, virtuose de técnica assustadora, desenvolveu sua própria harpa e seu próprio estilo de tocá-la na intenção de melhor representar a fusão do jazz com ritmos e estilos crioulos colombianos, venezuelanos e peruanos tais como o bambuco, a cumbia, o joropo, a llanera e o landó, além de ritmos hispânicos e afro-cubanos como a salsa, o flamenco e o mambo. O samba, ritmo predominante no Brasil, também lhe é uma influência bem presente. A música do harpista colombiano é uma mistura, então, desses ritmos todos, tendo o joropo e llanera como sua base colombiana primal. O primeiro álbum de Edmar, Cuarto de Colores (2005), foi inspirado nas cores do quarto da sua namorada Andrea Tierra, com quem o harpista acabara de casar-se, e combina sons e levadas típicas do joropo e da llanera, muitas vezes misturando-as com rítmicas dançantes e levadas de flamenco, samba e mambo. Toda essa mistura temperada pelas harmonias do jazz é o que faz com que a música de Edmar Castañeda seja única, inigualável.
 
Ad Libitum (2015) - Eduardo Betancourt (Venezuela): llanera, joropo, valsa venezuelana, merengue. Eduardo Betancourt é um harpista venezuelano radicado em Caracas, e um dos principais representantes da harpa venezuelana calcada no estilo llanera. Sendo um educador muito ligado ao El Sistema, programa venezuelano de educação musical mundialmente reconhecido, Betancourt é autor de métodos para harpa e é um atuante colaborador em bandas de artistas como Huáscar Barradas, Simón Díaz, Ilan Chester, Rafael "Pollo" Brito e Gilberto Santa Rosa. Em 2010 ele ganhou o Grammy Latino através do Álbum " Tesoros de la Música Venezolana" e novamente foi indicado ao prêmio em 2016 com o álbum "Pa' Tío Simón" com Rafael "Pollo" Brito. Assim como Edmar Castañeda, Eduardo Betancourt é ligado aos estilos joropo e llanera, porém com suas abordagens mais enraizadas nas variantes populares da Venezuela de uma forma mais clara e delineável, sem estar tão ligado ao jazz americano como seu colega colombiano. Outros ritmos como o merengue, a salsa e a valsa venezuelana também são abordados pelo harpista -- e sempre com um sotaque venezuelano bem particular.
 
Marimba Magia (Oriente Musik, 2003) - Papá Roncón & Katanga (Equador): bambuco, marimba esmeraldeña (mar lá fora, caderona, andarele, caramba, torbellino, água curta, e etc). A marimba é considerado o principal instrumento popular da Guatemala e é muito popular em diversos países e cidades da América Central, tendo sua popularidade estendida até países mais próximos do Brasil, tais como Colombia e Equador -- principalmente entre os grupos étnicos chamados de crioulos e mestiços (provenientes da miscigenação de negros e índios que descendem dos antigos maias, astecas e incas). No Equador são os povos étnicos afroameríndios e descendentes dos quilombolas da cidade de Esmeraldas que foram os precursores, pioneiros e propagadores da cultura da marimba. Atualmente, o mais respeitado patriarca dessa tradição é o nonagenário Papá Róncon. Papá Roncón nasceu em 10 de novembro de 1930 em Borbón, Esmeraldas, e ainda criança aprendeu a tocar marimba com os índios do povo chachi. Posteriormente, o mestre Róncon fundou uma escola chamada La Katanga, através da qual ensinou dezenas de crianças e jovens, passando a cultura das marimbas de Esmeraldas para as próximas gerações. Apesar do bambuco ser a cadência rítmica mais popular entre os marimbeiros de Esmeraldas, há diversas outras cadências distintas que também podem ser empregadas: patacoré, pangorita, mar lá fora, fabriciano, caderona, andarele, caramba, torbellino, água longa, água curta e etc. Esta compilação acima nos traz Papá Roncón mostrando algumas dessas cadências.
 
Los Ecuatorianos (Gallito Verde, 2002) - Pablo Valarezo (Equador): musica popular ecuatoriana, bambuco, marimba.
O marimbista Pablo Valarezo apresenta aqui um projeto de dois álbuns que resgatam várias canções tradicionais e populares e temas de compositores equatorianos em versões instrumentais para marimba acompanhada de uma instrumentação enxuta, mas com ricas sonoridades. O primeiro álbum é Los Ecuatorianos e foi gravado em 2002, enquanto o segundo álbum é Ven te Abrazo: Los Ecuatorianos II e foi gravado em 2005. Marimbista da Orquestra Sinfônica Nacional do Equador por mais de duas décadas, Pablo Valarezo é solista convidado de várias orquestras da América Latina e se dedica a pesquisar as explorações da marimba na música popular do Equador -- principalmente dos marimbistas tradicionais de Esmeraldas, cidade onde esse instrumento é amplamente difundido nos festejos e ajuntamentos locais --, além de ser um membro regular do grupo Pueblo Nuevo. Neste projeto acima de 2002, que se desenrola no citado segundo registro de 2005, Valarezo resgata canções populares, temas tradicionais compostos pelos marimbistas de Esmeraldas e temas clássicos compostos por compositores eruditos nacionalistas como, por exemplo, Carlos Amable Ortïz, um virtuoso violinista e compositor residente em Quito no final do século XIX.
 
"Batuco" (Aya Records, 2020) - Son Rompe Pera (Mexico): cumbia, danzón, ska, marimba tradición. A banda Son Rompe Pera é formada pelos Irmãos Gama, filhos de uma família tradicional da periferia da Cidade do México que tem sua história atrelada ao uso das marimbas em levadas rítmicas de cumbia -- lembrando que as marimbas é um dos mais tradicionais e populares instrumentos da Guatemala, e muitas regiões do Equador, Nicarágua, México...muito usado em ajuntamentos e festejos em inúmeras cidades da América Central. Formada em 2017, com a dupla de marimbistas dos irmãos Jesús Ángel e Allan Gama (Kacho e Mongo), aos poucos outros músicos foram chegando para compor a banda, que hoje faz uma mistura de cumbia, danzón e ska com punk rock, tendo as rítmicas da cumbia e a sonoridade das marimbas mexicanas como o ponto de partida da banda. Este álbum acima foi gravado em homenagem à José Dolores "Batuco" Gama Melchor, falecido patriarca da Família Gama, e foi lançado no início de 2020 antes da pandemia da Covid-19 eclodir. A set list traz um misto de temas vocais com áridos temas instrumentais.
 
Esta Plena (Marsalis Music, 2009) - Miguel Zenon (Porto Rico): plena, danzón, salsa. Em meados dos anos 2000 o sax-altoísta porto-riquenho Miguel Zenon despontava no cenário nova-iorquino como um virtuose assustador do seu instrumento -- tendo sido chamado, inclusive, para ser membro-fundador do emblemático octeto San Franciso Jazz Collective (combo já abordado aqui). Seus primeiros álbuns solo vinham trazendo uma mistura entusiasmante de neo-bop e post-bop com os ritmos de Porto Rico: sendo a danza, a salsa porto-riquenha e, principalmente, a plena os rítmos principais abordados. Este álbum acima é um exemplo perfeito de como Miguel Zenon faz uma fusão contemporânea das rítmicas complexas da plena com os intrincados fraseados do neo-bop. Um ano anterior, Miguel Zenon já havia recebido incentivos e bolsas como MacArthur Fellows e Guggenheim Fellowship na categoria "genius grant", algo que o ajudou a financiar este grande álbum -- um registro que levou sua música ainda mais para além das fronteiras que ele já vinha explorando. Em Esta Plena, Miguel Zenon lidera um excelente quarteto composto com o pianista Luis Perdomo, o contrabaixista Hans Glawischnig e o baterista Henry Cole, os quais são acompanhados pelos porto-riquenhos "Tito" Matos, Obanilu Allende e Juan Gutierrez nos vocais e nos panderos característicos da plena.
 
Suite Caminos (5Passion, 2015) - Gonzalo Rubalcaba (Cuba): santeria, youruba, ritmos afro-cubanos. Gonzalo Rubalcaba foi indicado ao Grammy Latino por esse disco super interessante. Aqui o pianista cubano traz um mix de canções da santeria com rítmos afro-cubanos de origem youruba imergidos em uma instrumentação jazzística com uma bem dosada sonoridade electro-fusion. Os efeitos dos sintetizadores atuam aqui como um sedimento timbrístico que dá certos tons de contemporaneidade à suíte, mas sem ofuscar os timbres dos instrumentos orgânicos e dos característicos efeitos percussivos afro-cubanos, os quais aqui soam mais econômicos pelas mãos do percussionista Pedrito Martinez -- ou seja, o arranjo aqui ganha a importante função de elaborar um certo design sonoro onde a ancestralidade dos timbres orgânicos atuem em perfeito equilíbrio com a contemporaneidade dos timbres eletrônicos. A suíte foi composta em oito partes e a instrumentação inclui saxofone alto (Will Vinson), saxofone tenor (Seamus Blake), trompete (Alex Sipiagin), guitarra (Adam Rogers), contrabaixo (Matt Brewer), bateria (Ernesto Simpson), percussão (Pedrito Martinez) coral yoruba e as teclas com piano, synths e órgão (Rubalcaba).
 
Panama 500 (Mack Avenue, 2014) - Danilo Perez (Panamá): bailes panameños, la denesa, punto, tamborito. Fazendo uma dedicatória aos 500 anos do descobrimento do Panamá -- ocorrido em 1513, quando o explorador espanhol Vasco Núñez de Balboa atravessou o istmo entre o Mar das Caraíbas e o Oceano Pacífico --, o pianista panamenho Danilo Perez usa aqui uma instrumentação variada com um jazz trio (de piano, contrabaixo e bateria), com um quarteto de cordas e mais três percussionistas. Danilo Perez se inspira aqui em rítmos como o punto, o tamborito e nos tradicionais bailes da La Denesa, mas o faz em formas um tanto implícitas e inflexionadas em meio aos arranjos, que soam mais próximos de um post-bop contemporâneo com pitadas camerísticas de cordas. Aliás, os improvisos pianísticos de Danilo Perez e os arranjos eruditos de cordas por vezes dá um tratamento um tanto impressionista ao mix, fazendo desse projeto mais um álbum para se apreciar com os ouvidos atentos do que apenas uma amostra gratuita e saliente de rítmos e latinidade.
 
Remisotopos - Yda e Vuelta (2021- Remi Alvaréz (Mexico). O saxofonista Remi Alvaréz é um dos mais interessantes músicos de jazz do México. Autodidata que iniciou sua carreira no Cuarteto Mexicano de Jazz em 1984, logo ele se mudaria para Nova York para continuar seus estudos de composição e improvisação no Creative Music Studio com Anthony Braxton, George Lewis, Roscoe Mitchell e Don Cherry e, em 1988, ele viaja para Paris onde avança ainda mais em seus estudos através de aulas com o saxofonista Steve Lacy. Mas, mesmo tendo uma reputada carreira internacional, Remi Alvaréz não deixou de manter suas conexões mexicanas. Este álbum é um exemplo. Ele se junta ao igualmente instigante violonista e guitarrista Pere Soto -- que é catalão, mas reside no México -- e grava um distinto álbum de improvisação livre em duo, tendo apenas saxofones (soprano e tenor) e as cordas dedilhadas do catalão em justaposições, com algumas pitadas de eletrônica em uma faixa e outra. Embora o duo não faça alusões explícitas de rítmos e estilos mexicanos, dá para sentir certa aspereza mariachi nas cordas de Pere Soto e certas atmosferas áridas características das sonoridades mexicanas. Ademais, vale frisar que este álbum foi gravado à distância em plena fase pandêmica, com Remi Alvaréz enviando o material para Pere Soto, que lhe devolvia com os improvisos, harmonias e desenvolvimentos vilonísticos, com ambos continuando com essa troca até que as composições estivessem finalizadas.
 
Exilio (2021) - Alex Mercado (México). O mexicano Alex Mercado é um proficiente pianista adepto aos formatos de piano solo e piano-trio -- vide, por exemplo, seu trio com os aclamados Scott Colley (contrabaixo) e Antonio Sanchez (bateria) registrado no álbum Symbiosis (2014) --, e tem renomada carreira internacional com esses formatos, além de outras parcerias e colaborações. Neste álbum acima, gravado com um trio com Gabriel Puentes (bateria) e Israel Cupich (contrabaixo), o pianista expressa sua latinidade de forma sempre implícita em meio aos improvisos fluídos em estilo rubato. Contudo, embora as rítmicas latinas soem completamente diluídas num certo post-bop contemporâneo que lembra muito as abordagens adotadas pelos pianistas de jazz dos últimos tempos, dá para sentir certas cadências melódico-rítmico-harmônicas latinas: vide, por exemplo, as faixas "Aguedita" e "Río de Oro". Gravado em pleno lockdown, a temática do álbum centra-se nas poéticas do exílio e do deserto, onde o compositor trabalha suas sensações em torno do isolamento social, da metáfora da areia que se esvai entre os dedos, do sol radiando entre as dunas como um brilho de esperança, entre outras introspecções.

Mestres do Rasqueado (Kuarup, 2010) - Orquestra do Estado do Mato Grosso (Brasil): rasqueado, catira, moda de viola, siriri, musica pantaneira. Se o Sul do Brasil é representado pelos violonistas e acordeonistas gaúchos, a região do centro-oeste é representada pelos violeiros. A viola caipira e a viola de cocho são dois dos instrumentos tradicionais mais predominantes do Estado de Goiás, Brasília e da região do Pantanal -- leia-se Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. A cultura musical popular predominante é o rasqueado e os rítmos e estilos que embalam os festejos nessa região são o siriri, a catira, as modas de viola e o sertanejo (que se tornou popular em todo o Brasil ao associar o pop e o country americano como base para suas inovações). O rasqueado é, então, o gênero popular que sintetiza toda uma mistura de sub-estilos do centro-oeste, incluindo até influências de rítmos fronteiriços como a guarânia, a polca paraguaia e o chamamé, os quais cobrem toda a região das fronteiras com Uruguai, Paraguai e Argentina e influenciam até a música dos estados do Sul do Brasil. Contudo, é totalmente perceptível as diferenças entre as variantes do rasqueado do Pantanal e as variantes gaúchas do Sul: a música pantaneira tem elementos melódicos bem característicos das modas de viola e canções sertanejas de boiadeiro e, em suas versões mais dançantes, são embaladas por rítmos como o siriri e a catira no Mato Grosso, enquanto o chamamé e a guarânia são rítmos mais presentes no Mato Grosso do Sul e nas regiões fronteiriças dos chamados povos ribeirinhos. Neste álbum acima temos, então, a Orquestra do Mato Grosso, formadas por um imponente conjunto de cordas, dando sua versão instrumental para canções populares e composições originais nas quais esses elementos do rasqueado são explorados. O maestro Leandro Carvalho convida alguns dos principais mestres do rasqueado para contracenar com sua orquestra: os violeiros e cancionistas Roberto Corrêa, Ítalo Perón, Tote Garcia, Mestre Albetino e José Agnello Ribeiro. Ademais, o álbum também engloba uma curiosa peça de concerto composta pelo compositor Ernst Mahle: o Concertino Para Viola de Cocho e Orquestra. A Orquestra do Estado do Mato Grosso, já abordada aqui no blog algumas vezes, é dona de uma sonoridade muito original que procura trazer a música popular dessa região do Brasil para o plano erudito-sinfônico, mas sempre mantendo em seus arranjos uma certa identidade popular com todos os adereços da música folclórica do Centro-Oeste.

Paraguay Contemporáneo (Vy'a Guazu) 2011 - Palito Miranda (Paraguai): polca paraguaia, guarânia, galopeira e etc. Palito Miranda é um saxofonista e flautista veterano que pode ser considerado um dos grandes responsáveis pela popularização do jazz nos circuitos boêmios do Paraguai a partir das suas incursões entre os anos 50 e 60. E este álbum acima foi gravado com incentivo Secretaria Nacional de Cultura (SNC) para comemorar o bicentenário da Independência do Paraguai, com apoio do Fundo Nacional da Cultura e das Artes (Fondec) e do Conselho do Patrimônio Nacional, além de ter tido um caloroso lançamento no Museu Nacional de Bellas Artes, em Assunção. Evocando as canções e danças tradicionais em modernos arranjos de big band com algumas cordas aqui e ali, a ideia de Palito Miranda foi de mostrar que a música paraguaia também pode soar moderna e universal. Nas mãos de Palito Miranda, esses temas e canções -- ambientados nas danças dos bailes paraguaios, na galopeira, na polca, na guarânia e outros rítmos -- ganham sofisticados arranjos orquestrais. Além das faixas instrumentais, temos a presença da talentosa cantora Andrea Valobra. Instrumentos característicos como a harpa paraguaia e a viola caipira (muito presente na fronteira entre Paraguai e Brasil) também estão presentes em meio aos arranjos orquestrais.
 
Los Coroles de La Musica (2016) - Gustavo Viera (Uruguai): milonga, chamamé, rumba, tango. O guitarrista paraguaio, radicado no Uruguai, Gustavo Viera é um destacado representante do jazz contemporâneo a fazer uma mistura de jazz-rock e jazz fusion com rítmos sul-americanos. Autor de métodos de guitarra e dotado de uma admirável fluência improvisativa, o guitarrista se baseia em rítmos como a milonga, o chamamé, a rumba e o tango para criar seus temas inflexionados com as misturas das cores jazzísticas com as cores da latinidade sul-americana. Este álbum acima, Los Coroles de La Musica (2016), repleto de temas com belas harmonizações é um exemplo perfeito de como o guitarrista faz essa fusão de cores e estilos.
 
Cuarteto Montevideano (2021) (Uruguai): milonga, murga, candombe, tango, samba. O Cuarteto Montevideano é formado pelos uruguaios Hugo Fattoruso (piano, teclados, acordeom, voz), Edú Lombardo Edú Lombardo (percussão, guitarra, violão e voz), Leo Carbajal (contrabaixo), Albana Barrocas (bateria). O guitarrista e percussionista Edú Lombardo é um dos mais destacados instrumentistas ligados ao estilo musical uruguaio conhecido como murga. Já Hugo Fattoruso é um dos instrumentistas mais famosos do Uruguai por ser um veterano com rodagem que inclui desde grandes bandas de rock uruguaio até um certo pioneirismo no desenvolvimento da música popular e do instrumental contemporâneo desse país pelas vias das misturas de rock, jazz e rítmos regionais como o tango, a murga, o candombe e outros rítmos característicos da música popular rio-platense. Fattoruso também é um dos instrumentistas mais benquistos em solo brasileiro por causa das suas inúmeras participações em discos de Milton Nascimento, Hermeto Pascoal, Chico Buarque, Djavan e outros cantores e instrumentistas brasileiros. Este álbum acima, pois, é um misto de canções e temas instrumentais com rebuscados desenvolvimentos improvisativos calcados nessa profusão de ritmos uruguaios.
 
Prietos (Otá, 2000) - Omar Sosa (Cuba): youruba, gnawa, ritmos afro-cubanos, marimba tradición. Omar Sosa é um dos mais impressionantes pianistas cubanos. Adepto das misturas de jazz contemporâneo, música afro-cubana e rítmos da diáspora africana, Omar Sosa lança aqui um dos seus mais fantásticos registros. Aqui neste disco o pianista se inspira na história do cubop -- fusão de rítmos afro-cubanos com o bebop desenvolvido no final dos anos 40 e início dos anos 50 -- e lança uma mistura desconcertante de rítmicas do youruba cubano com rítmicas do gnawa (ritmo marroquino) e justapõe canções afro-latinas e palavras faladas inspiradas no hip hop. Influências das músicas crioulas guatemaltecas, equatorianas e brasileiras também são inclusas nessa amálgama indescritível -- lembrando que Omar Sosa chegou a morar por vários anos no Equador, sendo um confesso entusiasta da música afro-equatoriana e suas marimbas esmeraldeñas. Em seu site, Omar Sosa diz que a intenção deste disco é colocar vários rítmos afros -- tradicionais e urbanos -- dentro de um mesmo prato, mostrando que, na verdade, todas essas variedades rítmicas tem origem na matriz diaspórica da Mãe Africa e, portanto, são sempre compatíveis.
 
Live In Cuba (Blue Engine, 2015) - Jazz at Lincoln Center Orchestra with Wynton Marsalis (Cuba/ EUA): salsa, mambo, danzón, traditional jazz. Nos anos 40 e 50, o bandleader cubano Machito -- um dos fundadores da salsa -- empreendeu uma entusiasmante fusão de rítmos afro-cubanos com o bebop de Dizzy Gillespie e Charlie Parker, criando uma variante chamada cu-bop. Dizzy Gillespie manteria a evolução dessa variante por muitos anos depois, mas a partir de fins dos anos 50 os EUA interrompem as relações com Cuba por causa dos desdobramentos da Revolução Cubana e da Guerra Fria, um acontecimento que também refletiu nesse rico intercâmbio cultural entre músicos e artistas dos dois países. A situação só mudaria na passagem entre as décadas de 2000 e 2010, quando Fidel Castro passa gradualmente o poder para seu irmão, Raul Castro, que anuncia uma maior abertura econômica e reinicia os diálogos entre Cuba e os EUA. Entusiasta da música afro-latina -- tanto quanto ele advoga em favor das tradições americanas --, o sempre atento trompetista Wynton Marsalis aproveita esse bom momento político, então, para empreender uma turnê à ilha de Fidel Castro. Na época, poderia até se esperar que Wynton comporia uma longa suíte em homenagem à Cuba, visto que ele já fizera isso em homenagem às suas estadias em Marciac (França) e em Vitória (Espanha). No entanto, o que Wynton fez foi reunir um conjunto de temas e peças da sua já extensa discografia e da discografia da sua big band para aplicar algumas inflexões afro-cubanas em torno dessas composições. O resultado é esse agradável registro acima gravado ao vivo no Teatro Mella de Havana em outubro de 2010. Lançada em dois CD's, a gravação captura uma interessante conexão entre o jazz americano e a música afro-cubana e acaba sendo o lançamento inaugural da Blue Engine Records, etiqueta fundada por Wynton para dar vazão aos registros da sua big band Jazz at Lincoln Center Orchestra. O CD duplo, contudo, só foi lançado em 2015, ano em que o então presidente americano Barack Obama anuncia a volta das relações diplomáticas com Cuba depois de décadas de sanções, desavenças e até conspirações bélicas das mais assustadoras -- vide o fato de nos anos 60 a Cuba ser uma base militar russa com uma eminente ameaça nuclear.
 
A Saga da Travessia (Selo Sesc, 2016) - Letieres Leite e Orkestra Rumpilezz (Brasil): ritmos da capoeira, ritmos do candomblé, afoxé. O maestro e compositor Letieres Leite, residente no Estado da Bahia -- um preterido maestro e arranjador de cantoras e bandas como Ivete Sangalo, Daniela Mercury e Timbalada --, deixou uma marca indelével na música popular e instrumental brasileira através dos mais de 15 anos à frente da sua Orkestra Rumpilezz. A orquestra é uma inusual formação com quatro percussionistas -- que se revezam nos atabaques, surdo, timbau, caixa, agogô, pandeiro e caxixi, formando a "bateria" da "big band" -- e mais quinze instrumentistas dos naipes de trompete, trombone, saxes (alto, soprano e tenor), flautas e baixaria (tuba, sax barítono e trombone baixo). O nome da orquestra vem dos tambores do candomblé -- rum, rumpi e o lé -- e acrescenta, ao final, os dois "zês" da palavra jazz. Este álbum acima, A Saga da Travessia, é inspirado pela temática da longa jornada dos negros que foram trazidos da África para serem escravos no Brasil, e foca em rítmos do candomblé e em rítmos da capoeira, estilo de arte marcial brasileira de origem angolana. A última faixa, inclusive, é uma real homenagem ao Mestre Bimba, impulsionador da capoeira no Brasil. Mostrando um vasto conhecimento de composição e arranjo, Letieres deixa nesse registro o estudo de uma fusão inovadora das matrizes afro-brasileiras com os arranjos do jazz contemporâneo.
 
IHU Todos os Sons (Pau Brasil, 1995) - Marlui Miranda (Brasil): música indígena brasileira. A cantora, instrumentista e pesquisadora indigenista Marlui Miranda teve ao menos duas décadas de pesquisas profundas para ter a propriedade de criar um projeto dessa magnitude: reunir um amplo caleidoscópio com cânticos provenientes de inúmeros povos indígenas de inúmeras tribos e trabalhá-las com elaborados e variados arranjos. Começando suas pesquisas ainda nos anos 70, Marlui Miranda reúne aqui materiais e elementos de várias tribos indígenas dos Estados do Amazonas, Pará, Rondônia e Mato Grosso, revelando ao mundo toda uma riqueza desconhecida de uma ampla região do Brasil marcada por esses vários povos-guardiões da Floresta Amazônica e do Pantanal. Os vários tipos linguísticos e as entonações vocais e fonéticas de cada tribo abordada fornecem uma ampla gama de possibilidades, de forma que aqui o ouvinte deve se afastar totalmente do seu entendimento do que é música vocal pelas vias padronizadas dos formatos dos corais e da canção, e deve encarar a voz mais como um instrumento de sons vocais étnico-exploratórios. Convidados especiais incluem o cantor Gilberto Gil, o grupo de percussão e luthieria experimental Uakti e o Grupo Beijo, um interessante "ensemble" de vozes.
 
Misturado (GRV, 2014) - Carlos Pial (Brasil): tambor de crioula, samba, música indígena brasileira, sonoridades latinas. A rica música deste fantástico percussionista brasileiro, nascido no Estado do Maranhão e radicado em Brasília, é um retrato sonoro da flora e fauna brasileiras, das paisagens do cerrado, das sonoridades indígenas, das atmosferas sonoras das cidadezinhas que marcaram sua vida, da poética amazônica, da cultura da pesca maranhense que ele presenciou quando criança, e engloba várias outras poéticas, temáticas, inspirações e adereços do Brasil. Neste álbum acima, o título já diz tudo: Carlos Pial mistura todos esses ritmos e adereços sonoros do Brasil com as harmonias do jazz contemporâneo e com as rítmicas afro-latinas. Muito das suas distintas sonoridades vem dos festejos e manifestações musicais do Maranhão, tais como o boi-bumbá, os pregoeiros, as folias do divino e o tambor de crioula. Aos poucos, porém, o percussionista foi adotando as sonoridades do Amazonas, do Pantanal e alguns adereços afro-latinos como o cajón peruano e os tambores afro-cubanos. Dentro dessa sua concepção de hibridismo, sonoridades eletrônicas pontuais também se mostram um rico recurso textural.
 
Imbizo Moyenne (2013) - Chantal Esdelle & Moyenne (Trinidad e Tobago): steelpans tradición, soca, kaiso. Com graduação musical pela University of California - Berkeley, a pianista e vocalista Chantal Esdelle é uma das mais célebres instrumentistas de Trinidad e Tobago, sendo considerada uma das principais propagadoras do jazz em seu país. Aqui neste álbum ela vem acompanhada do seu grupo Moyenne formado com Glenford Sobers (panelas de aço ou "steelpans"), Donald Noel (percussão), Douglas Redon (contrabaixo) e Darren Sheppard (bateria). O adereço que diferencia essa banda de todas as bandas de jazz dos outros países da América Central é o uso das tais panelas de aço, também chamadas de steelpans, que é um instrumento formado por vários tambores de aço de diferentes tamanhos, cada um afinado como seus respectivos tons da escala cromática. O Steelpan é originário de Trinidad e Tobago e é muito usado em bandas de ska, calypso, soca, reggae e outros rítmos afro-caribenhos. Em Trinidad e Tobago os rítmos mais populares são o soca, o calypso e o kaiso, sendo este último o rítmo preferido de Chantal Esdelle, que, além do reconhecimento nacional, também é reconhecida nos países dos arredores da América Central como uma das principais continuadoras do chamado "kaiso jazz".
 
Coco Bar (Stonetree Records, 2017) - Guayo Cedeño (Honduras): garifuna (punto, paranda), ska. O guitarrista Guayo Cedeño, falecido recentemente (em 11 de Março de 2022), foi um dos principais representantes das misturas de rock, funk, jazz, merengue, ska e rítmos ligados à cultura dos povos mestizos afro-ameríndios de Belize e Honduras, cultura conhecida como garífuna. Inicialmente, sua popularidade em Honduras se deu pela presença do seu característico som de guitarra elétrica em shows e gravações com bandas e músicos tais como Guillermo Anderson, Aurelio Martínez, Andy Palacio e Orquestra Papaya -- popularidade que se estendeu até os países vizinhos, Belize, Nicarágua, Guatemala e El Salvador. Gravando este álbum acima em 2017 e sendo este seu primeiro projeto solo, Guayo vinha tendo uma carreira em franca ascensão antes de falecer. Neste álbum, Cedeño nos mostra uma concepção de guitarra que mistura as características reverberantes do surf-rock com ska e rítmos garífuna tais como o punto e a paranda. Esse som reverberante com uma psicodelia afro-caribenha e riffs em levadas rítmicas marcantes fazem deste álbum um registro mentalmente pegajoso.
 
Tribal (Cernícalo, 1998) - Manongo Mujica (Peru): ritmos y sonoridades latinas, tribal music, musica andina. Sendo um dos grandes percussionistas da América Latina e um dos pioneiros do jazz avant-garde no Peru, Manongo Mujica é um patrimônio musical a ser estudado. Através de procedimentos experimentais, suas fusões de melodias, sonoridades, atmosferas, nuances e rítmos vai do mais tribal ao mais contemporâneo -- e sempre com resultados que desafiam categorizações. Este álbum acima é um exemplo de como Mujica trabalha as sonoridades, inflexionando, transvertendo e misturando sonoridades da música dos arredores da Cordilheira dos Andes com melodias tribais aimará, usando uma profusão de objetos, instrumentos e kits de percussão latina de uma forma sempre livremente improvisada, algumas vezes misturando com instrumentos africanos e orientais como a kalimba, gongos e outros... Manongo Mujica também sempre usa sintetizadores de forma pontual para temperar esse molho indescritível de sonoridades.