Em 2001, a gravadora Ropeadope Records -- selo da Filadélfia ambientado em mixes de gêneros como funk, gospel, soul, hip-hop, jazz, latin music e eletrônica --, iniciou uma série de lançamentos que tiveram como inspiração três das mais ricas cenas urbanas da música estadunidense: Filadélfia, Detroit e Harlem. A ideia central consistiu em reunir grandes músicos, DJ's e produtores de diferentes estilos -- obviamente todos nativos ou residentes em Filadélfia, Detroit e Harlem, mas sem, necessariamente, serem conectados entre si -- para se realizar uma experiência musical em torno da diversidade cultural desses três grandes redutos. Agora, passados 15 anos desde o último lançamento, o álbum The Harlem Experiment, a Ropeadope atende as aspirações dos músicos de Chicago para que a série tenha um continuum. Isso porque esses álbuns da Ropeadope acabaram por evidenciar, ainda mais, como que todos os gêneros e subgêneros contemporâneos que perfazem as características multiculturais das cenas dessas cidades estão conectados pelas gêneses do blues e do jazz: ou seja, todos os sons urbanos que envolvem rock, funk, fusion, hip hop, neo-soul, gospel, latin music, música eletrônica...todos estão, de certa forma, conectados -- e o jazz, principalmente, está presente em tudo! Essa série Experiment da Ropeadope acabou, portanto, se tornando uma cult referência. A exemplo dos registros precursores de jazz-funk e acid jazz que o trompetista Donald Byrd lançou nos anos de 1970 -- um dos músicos de jazz que mais influenciaram essa nova geração de jazzistas, produtores de eletrônica, hip hop e neo-soul, diga-se de passagem --, estes registros tornaram-se uma referência imprescindível para as novas gerações, e já foram remixados por alguns dos principais DJ's que carregam consigo essa gênese jazzística em suas veias. Segue abaixo informações. Ouça a playlist no final do post.
No projeto chamado The Philadelphia Experiment, lançado em 2001, a gravadora Ropeadope reuniu um inusitado trio da Filadélfia composto por Uri Caine (pianista e tecladista mais caracterizado por suas colagens musicais em releituras experimentais de temas da música clássica, e por trabalhos ao estilo modern creative, uma verve mais híbrida do jazz), Ahmir "Questlove" Thompson (baterista e DJ ambientado no funk, neo-soul e hip hop), Cristian McBride (contrabaixista advindo dos estilos neo-bop e post-bop contemporâneo) e mais músicos convidados: o trompetista John Swana (ambientado em hard bop e post bop bem ao estilo dos álbuns lançados pelo selo Criss Cross) e o veterano guitarrista Pat Martino (mestre em tocar vários estilos, do post-bop dos anos 60, passando pelo fusion ao post-bop contemporâneo). Interessante como o grupo -- o trio com Caine, McBride, Questlove e mais músicos convidados -- varia do funk ao post-bop, do straight-ahead ao fusion, mesclando faixas com instrumentos acústicos e faixas com instrumentos elétricos e pedais de efeitos (wah-wah), criando uma consistente mistura em torno da atmosfera urbana da Filadélfia. Ou seja, em The Philadelphia Experiment, as teclas experimentais do piano, teclados, orgão e Fender Rhodes de Uri Caine fazem um mix perfeito com os contrabaixos acústico e elétrico de Christian McBride, mais os beats funkeados de Questlove, resultando em grooves e vibes interessantíssimas. Em 2002, o DJ King Britt lançou sua versão remixada desta gravação em seu álbum King Britt Presents The Philadelphia Experiment – Remixed, só que num estilo mais trip hop e techno-house.
Já em The Detroit Experiment, lançado em 2002, quem idealiza e lidera o projeto é o produtor Carl Craig (usuário do pseudônimo Innerzone Orchestra e um dos mais renomados nomes da techno music de Detroit), o baterista e DJ Karriem Riggins (do venerável coletivo de hip-hop The Ummah), e o produtor Aaron Levinson (ganhador de quatro prêmios Grammy por suas produções na seara da música latina). O projeto conta com participações especiais de diversos músicos da Motor City como a violinista Regina Carter, o saxofonista Bennie Maupin, a pianista Geri Allen, o trompetista Marcus Belgrave, o baterista Francisco Mora, o saxofonista Allan Barnes, o cantor e tecladista Amp Fiddler, entre outros. Conhecida mundialmente por abrigar o maior polo da indústria automobilística dos EUA (e por isto ela é apelidada de Motor City) e por ser historicamente um reduto da Motown (gravadora pioneira do funk, soul e disco music nos anos 60 e 70), a cidade de Detroit se transformou, também, num grande reduto de músicos, DJ's e produtores ligados ao jazz, hip hop e música eletrônica -- a cena techno dance de Detroit é, aliás, especialmente referenciada entre os aficionados em eletrônica. Este álbum, portanto, traz uma vibe mais eletrônica bem aos estilos lounge, techno, deep house e trip hop com a adição de solos jazzísticos. Dentro desta vibe, é preciso notar que há temas musicais clássicos de figuras legendárias de Detroit tais como "Space Odyssey" do trompetista Marcus Belgrave, "Think Twice" do trompetista Donald Byrd (foto acima) e "Too High" do cantor Stevie Wonder, um dos grandes nomes da Motown Records. Em 2009 a gravadora Juno Records lançou o álbum The Detroit Experiment – Think Twice com remixes dos produtores e DJs Henrik Schwarz, Mark E, e Confetti Bomb.
Já o The Harlem Experiment, lançado em 2007, é mais enraizado nas formas urbanas e cruas do blues, jazz, funk, hip-hop, latin music e traz até uma pitada de música judaica (klezmer music) para apimentar o mix -- lembrando que os judeus, historicamente, já compuseram o maior grupo étnico do bairro do Harlem. Os músicos que formam o núcleo do The Harlem Experiment são, assim como nos outros álbuns da série, um grupo variado de artistas, alguns sem nenhuma conexão anterior entre si: o guitarrista Carlos Alomar é mais conhecido por seu trabalho com David Bowie; Steve Bernstein é um conhecido trompetista de jazz baseado em N.Y.C.; e Don Byron é um clarinetista de jazz multifacetado cuja aventura o levou a explorar elementos da música clássica, do hip hop, da klezmer e sonoridades da Motown (vide o ótimo álbum que ele gravou em tributo ao saxofonista Junior Walker), entre outros resquícios. Além desses, o plantel de participantes inclui o tecladista Eddie Martinez, o baixista Ruben Rodriguez, o baterista Steve Berrios, a multifacetada vocalista Queen Esther, o grande bluesman Taj Mahal, o guitarrista James Hunter, o trompetista Olu Dara, o DJ Larry Legend e o poeta Mums (mais conhecido por seu papel de longa data na série Oz, onde a HBO retrata, em forma de ficção, os dramas da Oswald State Penitentiary). Mums também atua aqui como um DJ, usando vocais simulados para fazer referência aos famosos e históricos programas de rádio do Harlem, que são considerados uma das primeiras fontes de propagação do hip hop no final dos anos 70 e início dos anos 80. Além disso, há referências sobre nomes emblemáticos do jazz e da cultura negra como Duke Ellington, Cab Caloway, John Coltrane e Malcom X -- na faixa "Reefer Man", por exemplo, Taj Mahal aplica um scratch vocal em uma fala de Cab Calloway, grande bandleader e entertainer da Swing Era. Em relação aos dois registros anteriores, The Harlem Experiment traz uma sonoridade mais crua e acústica, ou seja, menos carregada de efeitos eletrônicos e com um retrato mais "puro" e tradicional da riqueza musical do Harlem. Este registro mostra, aliás, como o Harlem, apesar de ser um bairro de Manhattan, tem tanta grandeza cultural e riqueza musical quanto as grandes cidades americanas. Lembrando que o Harlem foi e é palco de grandes e históricos clubes e teatros tais como Cotton Club, Apollo Theatre, Minton's Playhouse, Birdland, entre tantos outros.
Agora em 2022, a Ropeadope retoma a série Experiment e lança este álbum acima, um sensível tributo sonoro à cidade de Chicago, Illinois. Considerada um reduto da música de vanguarda, Chicago pode ser entendida como a cidade onde boa parte dos gêneros musicais americanos atingiram estágios progressivos: foi onde o blues se eletrificou; foi onde o jazz expandiu-se para as abordagens criativas de artistas e músicos ligados à AACM (Association for the Advancement of Creative Musicians); foi onde a disco e o tecnopop evoluíram para a house; e foi onde o hip hop alcançou uma miríade de inéditas abordagens; sem contar que é um dos redutos mais ecléticos da Costa Leste, com gêneros que vão do gospel ao post-rock. Contudo, a nova geração de músicos de jazz de Chicago tende a condensar toda essa miríade de influências em temas e sons mais simples, compensando essa palatividade com roupagens mais joviais e atmosferas mais orgânicas, frescas, sofisticadas e renovadas. Neste álbum, por exemplo, temos uma banda acústica com tênues sonoridades de vibrafone, contrabaixo elétrico, guitarra elétrica, Rhodes, synths e beats eletrônicos pontuais para conferir uma ambiência mais urbana, e com grooves e beats em velocidade slow e medium: os temas de jazz são mais orientados em variadas atmosferas, ambiências, beats e formas contemporâneas de modal jazz, blues, funky, R'n'B neo-soul, e hip hop, mas são faixas para se fechar os olhos e sentir a música envolver seus ouvidos -- sem fraseados intrincados ou as "complicações conceituais" do criativo free jazz a La AACM, por exemplo. Idealizado inicialmente pelo pianista Greg Spero e pelo baterista Makaya McCraven (foto acima, no início do post), o projeto também conta com o trompetista Marquis Hill, o vibrafonista Joel Ross, o guitarrista Jeff Parker, o baixista Darryl Jones e o saxofonista tenor Irvin Pierce. Sem contar o veterano guitarrista Jeff Parker (Tortoise, Isotope 217) e o veterano contrabaixista Darryl Jones -- que já foi sideman de Miles Davis, Sting, Eric Clapton, B.B King e é regular colaborador dos The Rolling Stones --, todos esses músicos estão na casa dos 20 e 30 anos e representam a nova safra de músicos de jazz oriundos de Chicago.
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