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Álbuns 2022 - À quantas anda o Instrumental Brasileiro? Segue alguns bons projetos gestados durante a pandemia...

NATÁLIA MITRE & PC GUIMARÃES - DUO FOZ
Certa feita, Beethoven teria dito: "Os músicos se utilizam de todas as liberdades que podem". A pandemia da COVID-19 tirou, é verdade, a liberdade de todos os músicos de apresentar suas canções, peças e obras ao vivo para seus públicos. Contudo, em compensação, nos últimos dois anos tivemos um período altamente fértil de criação na música instrumental brasileira, período onde muitos músicos, isolados, não tiveram outra opção a não ser se reinventar e até se arriscar mais para além dos limites daquela brasilidade padronizada. Antes de vos apresentar os registros lançados neste período, dou início a este post, aliás, com uma necessária reflexão em torno do conceito musical de brasilidade. Ainda que muitos músicos brasileiros -- nem todos, mas muitos -- estejam presos a um conceito estático de brasilidade desconectado das influências globais do música contemporânea, e ainda que haja um conservadorismo institucional nos meandros dos programas, teatros, secretarias e "casas" de cultura que influencie para que as composições dos músicos brasileiros estejam quase sempre centradas no campo da mera reprodução do folclore e da "renovação" do antigo, não podemos reclamar da música instrumental brasileira quando o assunto é qualidade e criatividade. Sim, falta-nos -- e friso que não em todos os músicos, mas em muitos -- mais o risco das misturas iconoclastas, falta-nos mais o rico da inventividade do novo que se projete ao futuro, falta-nos mais o risco do trabalho de tino experimental, da busca por novas inflexões melódico-rítmico-harmônicas em conexão com a música contemporânea dos últimos tempos e de hoje... Mas, no geral, a música brasileira é extremamente rica de elementos culturais embrionários, e extremamente criativa na forma como se conecta passado e presente. A pergunta, aliás, que todo músico deveria fazer ao olhar-se no espelho da sua alma criativa é: "Eu vejo minha música apenas como um extrato estético da cultura regional, do folclore e da ancestralidade, ou vejo a música como uma linguagem universal sem limites, uma estética e/ou linguagem artística em constante mutação que é capaz de dar sua contribuição para abrir novos horizontes para mim e para meu público, contribuindo socialmente para que haja uma evolução da mentalidade por meio da arte? Caso a segunda opção seja a resposta mais espontânea, é natural que em suas criações os ritmos se misturem, que as timbrísticas acústicas se misturem com as eletrônicas, e que novas influências -- até influências díspares, estrangeiras e extracurriculares como os elementos do pop, rock, hip hop e eletrônica do nosso tempo e etc -- façam parte do seu processo inventivo. Até porque, cada músico já é, por essência, um indivíduo moldado pelas circunstâncias e possibilidades do tempo de sua existência. 

MARIANA ZWARG SEXTETO UNIVERSAL



Aliás, se deixar influenciar pelo novo, pelo contemporâneo e pelas temáticas do hoje, não significa abrir mão da nossa brasilidade; assim como ser naturalmente afetivo quanto ao nosso pertencimento cultural de Brasil não significa que a exigência seja apenas se apegar à reprodução dos nossos adereços culturais e folclóricos sem considerar a infinita gama de possibilidades contemporâneas. O histórico e o contemporâneo podem se entrelaçar, o novo e o antigo podem coexistir em inflexões idiossincráticas, assim como o folclore e a tecnologia podem coexistir em estruturas composicionais inovadoras. A brasilidade pode sim -- e até deve! -- ser o núcleo celular dos tecidos estéticos que compõe as obras dos músicos brasileiros: é onde forma-se o DNA, o mapeamento genético de preferências históricas e influências familiares e regionais, além do aprendizado acadêmico e conservatorial. Mas quando o músico sai dessa sua bolha interior e se joga ao mundo urbano, globalizado e contemporâneo, o mundo dos últimos tempos e do nosso tempo, existem tantas outras novas influências, possibilidades e conexões, que uma vez inflexionadas com essas influências culturais genéticas, naturalmente já se formará o hibridismo do qual é feito o músico contemporâneo. E isso é tão biológico quanto cultural: é a evolução da espécie -- na histórica e no presente -- que mostra o quão natural é que o indivíduo não seja formado apenas por sua genética de herança ancestral, mas principalmente por novas químicas, novos desafios e influências externas que vão alterando essa sua genética em sua busca por resistência, versatilidade e inovação. E nestes dois últimos anos de fase pandêmica -- que ainda persiste, mas com muito menos mortes e restrições --, e nestes anos de degradação política e desmonte cultural, foram as virtudes da resistência, versatilidade e inovação que levaram os músicos brasileiros a sobreviver -- inovação, aliás, nem todos buscaram, mas muitos exprimiram e mostraram, como poderemos atestar nos álbuns elencados abaixo! Assim como aconteceu com quase todos os indivíduos do planeta, a COVID-19 obrigou a nos isolar e, com isso, nos obrigou a buscar novas formas de interação com o público, nos obrigou a buscar novas formas de reprodução, nos obrigou a sermos ainda mais criativos na manutenção da nossa sanidade, na luta pela sobrevivência e na luta contra o tédio, o que fez com que muitos artistas saíssem das suas zonas de conforto e bolhas de conformismo e tirassem do fundo da gaveta aquele projeto inacabado, aquela ideia mais experimental, aquela busca mais profunda, aquela releitura mais pessoal e idiossincrática, aquela crítica mais aguda..., aqueles projetos de inspirações e aspirações estéticas mais ousadas que, enfim, as circunstâncias e a falta de tempo de uma vida agitada pré-pandemia não permitiram que fossem concretizados. Abaixo, reúno 20 e poucos bons álbuns de músicos brasileiros que usaram o lockdown para tirar seus projetos do papel ou para lançar aquele projeto que estava sendo maturado, ou mesmo que estava no fundo da gaveta. Clique nos álbuns para ouví-los e ouça a playlist no final do post. No demais, agora com o retorno dos shows e concertos, só nos resta acompanhar mais de perto esses grandes músicos, grupos e bandas!

****¹/2 - Mariana Sexteto Universal - Nascentes (Scubidu Music, 2020).
Em 2021 elencamos aqui alguns álbuns de músicos brasileiros e este de Mariana Zwarg nos passou batido. Um grande álbum! Mariana, além de toda a musicalidade adquirida com o pai Itiberê e com padrinho musical Hermeto Pascoal -- é brincadeira? --, parece exprimir todo um jeito próprio e ainda mais contemporâneo na forma como explora o conceito de "música universal", e na forma como fundou o seu sexteto formado com músicos de 5 países diferentes -- músicos esses que, lógico, acabam trazendo suas experiências internacionais para o grupo da flautista brasileira. Gravado em Berlim e no Rio de Janeiro, Nascentes é o primeiro projeto solo da flautista. O projeto começou em 2016, quando Mariana Zwarg foi convidada pela produção de um festival espanhol para dirigir um concerto dedicado ao mestre Hermeto Pascoal. Para tanto, Mariana teve de recrutar músicos europeus -- tendo à sua disposição, inclusive, músicos de diferentes países --, e teve de elaborar os arranjos e liderar esses músicos na busca de uma perfeita sinergia em torno do conceito brasilianista de "música universal" fundado pelo mago Hermeto. O projeto, enfim, não apenas gestou boas apresentações naquela edição do festival, como nutriu uma boa afinidade entre os músicos, deixando as portas abertas para a continuidade da banda e uma segunda ideia de projeto, o que gestou este álbum acima lançado em fins de 2020. A banda é composta por 2 brasileiros (a flautista, vocalista e líder Mariana e seu compatriota contrabaixista Sá Reston), 1 finlandês (o percussionista Sami Kontola), 1 dinamarquês (a vocalista Mette Nadja), 1 alemão (o pianista Johannes Ballestrem) e 1 francês (o baterista Pierre Chastel). Há um bom equilíbrio entre o uso instrumental da voz -- lembrando as trilhas deixadas por Flora Purim --, os arranjos previamente elaborados por Mariana e os improvisos espontâneos com elementos do jazz contemporâneo. Itiberê e Hermeto também colaboram com suas participações especiais!

*****- Improvisions 1: Sand Castles (Pés de Vento, 2022).
Rodrigo Bragança e Tarita de Souza formam um duo super inventivo de improvisação livre com guitarra, efeitos eletrônicos inúmeros, e vocais que podem ser oralizados por meio de poemas, palavras soltas, efeitos onomatopeicos e/ou sons abstratos. Tarita de Souza lembra um pouco -- e expande!, conceitualmente -- a abordagem da instrumentalização da voz iniciada nos anos 70 com legendária vocalista Flora Purim, trazendo esse vértice da voz para o campo da improvisação livre interseccionado com efeitos elétricos e eletrônicos. O título "Improvisions 1: Sand Castles" se remete à junção dos conceitos de "improvisação" e "visão" ou "imagens", que é uma sinestesia que o duo busca em suas construções sonoras em tempo real: criar imagens sonoras através desses sons livremente improvisados com voz, efeitos de guitarra elétrica e eletrônica. A improvisação livre contemporânea que é uma conceito de arte abstrata expressionista iniciado nos anos 60 com os intercâmbios entre o jazz de vanguarda americano e o expressionismo atonal europeu, ganha aqui uma inovadora versão brasilianista -- não tão cru e expressionista, aliás, como os improvisos dadaístas dos alemães, ingleses e holandeses, mas uma arte sonora espontânea que flutua singelamente entre expressões abstratas e impressões sinestésicas. Aqui, sim, estamos diante de um exemplo contumaz de arte e design sonoro, com uma combinação inovadora de vocalizações e efeitos improvisados no âmbito mais brasilianista. Gravado durante a pandemia e influenciado pelos momentos de isolamento, este é o primeiro álbum do duo. E que venham outros!

****- Trio Corrente - Sincronia (Tratore, 2021).
O Trio Corrente -- formado em 2001 pelo baterista Edu Ribeiro, pelo pianista Fabio Torres e pelo contrabaixista Paulo Paulelli -- é um dos grupos legendários do "brazilian jazz". Em 2014, através do álbum Song For Maura, uma parceria com Paquito D’Rivera, o Trio Corrente conquistou um Grammy Award na categoria de Melhor Álbum de Jazz Latino e um Latin Grammy, dividindo esse segundo prêmio com o lendário pianista americano Chick Corea. Para este álbum, seu sétimo registro, o Trio Corrente aplica algumas distintas harmonizações e rítmicas soltas e angulares sobre levadas de samba jazz, sobre um tema do repertório do choro, Flor amorosa (de Joaquim Calado), e, com essa mesma premissa de aplicar rubatos jazzísticos mais contemporâneos, lança algumas composições próprias como "Venezuelana nº 3" e "Sambassi", além de aplicar uma distinta releitura ao tema Caminho Verde (composto pelo falecido saxofonista Vinícius Dorin). O resultado é mais um agradável álbum do Trio no melhor estilo do brazilian jazz, mostrando uma sincronia fora de série mesmo quando há rubatos, compassos ímpares e quebras rítmicas em meio às exposições dos temas e aos improvisos. O pianista Fabio Torres usa aqui a sonoridade do piano elétrico (Rhodes) em duas faixas, incluindo na releitura do choro Flor amorosa (de Joaquim Calado). Interessante esse viés de um trio calcado preponderantemente no samba-jazz buscar sincronia em meio a angularidades rítmicas.

****- Gian Corrêa & Os Chorões Alterados - Abismo da Prata (Anzic, 2022).
Atenção para este nome: Gian Corrêa. Violonista de primeira grandeza, ele chega agora em 2022 em seu quinto disco da carreira, O Abismo da Prata. O grupo que o acompanha é o seu Os Chorões Alterados, com Cainã Cavalcante no violão, Enrique Menezes nas flautas, Henrique Araújo ao cavaquinho, bandolim e violão tenor, e Rafael Toledo na percussão. Embora o repertório autoral do disco traga uma certa nostalgia saudosista -- no sentido mais puro, belo e positivo de brasilidade --, Gian evidencia uma concepção sonora um tanto pessoal-impressionista em torno da estética do choro, bem como dá uma conotação urbana mais atualizada para o conceito do álbum como um todo. Neste álbum acima, pois, Gian apresenta algumas idiossincrasias interessantes: o álbum começa com a toada Nua e Crua de frescor impressionista-contemporâneo e vai se delineando entre faixas com rebuscadas sobreposições de violões nas formas improvisativas do choro e do jazz, andamentos ímpares, temas com exposições mais angulares e quebradiças, desenvolvimentos mais dinâmicos -- que não ficam só naquela coisa estática de marcha quaternária e samba em 2/4 --, o uso da sonoridade do Fender Rhodes, e linhas melódicas e harmônicas que denunciam um apreço pelas concepções harmônico-melódicas do jazz contemporâneo, entre outras observâncias. As contemporaneidades do jazz, aliás, parecem ser uma influência, mas aqui esses elementos jazzísticos soam mínimos nesta amálgama de cordas brasileiras, flauta e percussão. Em termos do conceito artístico e das temáticas em torno do álbum, Gian Corrêa fez uma curiosa parceria com o artista plástico e grafiteiro Apolo Torres: cada faixa é inspirada em um grafite que Apolo pintou nos pontos da cidade de São Paulo onde a cultura de bares e points do choro é presente, e é também uma reflexão sonora que Gian exprime contra as mazelas sociais. Na última faixa temos uma bela junção de poesia, instrumental e canção. Gravado em São Paulo, este álbum foi lançado pelo selo norte-americano Anzic Records.

****- Fabio Gouvea - Zeit (Torto Discos/ Tudo Muda Music, 2021).
Morando em Basel, na Suíça, o violonista Fabio Gouveia, membro do emblemático Trio Curupira, intitula seu álbum de violão solo de "Zeit" ("Tempo" em português), que foi uma das primeiras palavras que o músico aprendeu no idioma do alemão. Em sua página do Bandcamp, o violonista externa que essa palavra descreve muito bem um sentimento que permeia as composições deste álbum, que parece ser um repositório de ideias harmônicas e melódicas e composições já bem sedimentadas -- de agora e doutras épocas -- que o músico resolveu externalizar em um momento de solidão, em um momento da história da humanidade onde o isolamento social lhe instigou a fazer esse "inventário" de peças, composições, canções e ideias. Trazendo uma concepção minimalista e algumas ideias harmônico-melódicas contemporâneas provenientes dos hermetismos pascoais que Gouveia teve acesso junto ao Trio Curupira, o álbum traz alguns dos temas e canções que vieram de outros discos com outras formações instrumentais e foram aqui adaptados para violão, e também temas e canções que foram ineditamente compostos para soar estritamente nesse formato de violão solo. Em algumas faixas, Fabio Gouveia também se arrisca a exprimir vocalises junto ao violão -- e soa bem!

*****- Rodolfo Stroeter & Lelo Nazario - Afro-Atlântico (Pau Brasil/ Tratore, 2021).
Aqui temos um exemplo do quanto a música instrumental brasileira pode ser inventiva casando ancestralidade com inovação. Este disco acima é o documento sonoro que registra a trilha sonora que o contrabaixista, compositor e produtor Rodolfo Stroeter e o tecladista e compositor Lelo Nazario -- ambos fundadores do histórico Grupo Um -- criaram para o espetáculo IllumiNations, do Balé da Cidade de São Paulo. O espetáculo foi inspirado na grande exposição Histórias Afro-Atlânticas realizada pelo Instituto Tomie Ohtake em parceria com o MASP: uma mostra ampla das intersecções sociais e conexões multiculturais entre África, Brasil e Américas. O projeto reuniu ideias e colaborações de Marlui Miranda, Teco Cardoso, Ari Colares, Sapopemba, Marcelo Pretto e Pedro Bandera e músicos da nova geração como Vitor Cabral, Noa Stroeter, Webster Santos, Lenna Bahule e Pedro Iaco. A viagem sonora aqui reúne um amplo leque de ritmos e sonoridades brasileiras, africanas, indígenas, latinas, caribenhas e americanas em torno dessa cultura afro-atlântica, incluindo recortes e colagens com fitas pré gravadas e com efeitos abstratos de eletrônica -- partes pré gravadas de sons da violência urbana, discursos de Martin Luther King, efeitos silábicos e onomatopeicos, e etc --, conferindo ao conjunto da obra uma sonoridade assustadoramente contemporânea, criativa e orgânica. A obra é superlativa tanto na sonoridade conceitual quanto em sua abrangência semiológica e diaspórica: vai do folclore à eletrônica, do realismo ao abstrato, do instrumental à colagem, da África à Amazônia, do tribal ao urbano.

****¹/2 - Duo Foz - Intersecção de Mundos (Tratore, 2021).
Recentes ganhadores do Prêmio BDMG Instrumental, mostra musical mineira de grande importância, um dos grandes palcos de revelação de novos talentos no âmbito da música instrumental brasileira, Natália Mitre (vibrafone e percussão) e PC Guimarães (guitarra) formam o Duo Foz, um dueto de assustadora sensibilidade contemporânea. É um duo, poderiam soar entediantes ou "vazios", mas não: suas ambiências se preenchem e suas ideias são ricas o bastante para proporcionar ao ouvinte uma viagem abundante e prazerosa. Nas composições -- algumas singelas, outras mais complexas -- entram em cena as concepções harmônico-melódicas mineiras a La Clube da Esquina, ambiências e efeitos minimalistas, efeitos pontuais de eletrônica e sobreposições inteligentes entre guitarra e vibrafone, entre outras ideias. No repertório estão as canções Amálgama (Natália Mitre e PC Guimarães), Deságua (Natália Mitre), Interseção dos Mundos (PC Guimarães), Iandé (Alexandre Andrés), Sopro de Luz (PC Guimarães), Esotérico (Gilberto Gil), Montanha (PC Guimarães), Lançar da Âncora (PC Guimarães), Brincando com Theo (Léa Freire) e Drão (Gilberto Gil). Lançado pelo selo Grão Discos, "Interseção dos Mundos" é o primeiro álbum do Duo Foz. Se soa assim -- tão bom, fresco e rico -- em seu primeiro tento, imagine o quão frutífero e criativo pode ser o continuum do duo. Acompanhemos!

*****- Itiberê Zwarg - Orquestra Família do Japão (Torto Disco/ Scubidu, 2021). 
Este disco acima é um projeto da Orquestra Família inspirado no Japão e gravado por lá. Um grande disco! "Desde 2016, eu e Hermeto Pascoal & Grupo, fazemos turnês regulares no Japão, e essa foi a chave que abriu as portas japonesas para este projeto e oficina de música. Junto com Ajurinã Zwarg, baterista do "Hermeto Pascoal & Grupo" que também fazia workshops lá, fomos ganhando o carinho dos japoneses. Eles são um povo muito musical! Na última turnê, o produtor me ofereceu a possibilidade de fazer um show em um grande festival em Shizuoka e vi a possibilidade de fazer o IOFJ, Itiberê Orquestra Família do Japão, com a ressalva de que eu deveria estar em Tóquio para um mês antes do concerto aos ensaios. Assim que o produtor me deu sinal verde, comecei a trabalhar nos arranjos e o resultado está aí neste álbum". Este é um depoimento de Itiberê Zwarg, contrabaixista do Hermeto Pascoal & Grupo e líder da Orquestra Família, que é praticamente um coletivo que continua a expandir o conceito brasileiro de "música universal" idealizado por Hermeto nas décadas de 70 e 80. Hiper criativo, Itiberê, aliás, não apenas representa um continuum da concepção composicional hermetiana, como também acrescenta muitas novas ideias de arranjos e hibridismos nesse molho de "música universal": arranjos de cordas, sintetizadores, vocalises idiossincráticos, arranjos orquestrais que se rementem tanto ao conceito de orquestra popular quanto de orquestra erudita, elementos do jazz contemporâneo... Itiberê, enfim, tem um jeito muito particular de enxertar, esculpir e polir tudo isso. Itiberê e seus jovens colaboradores da Orquestra Família representam, enfim, o que há de mais esteticamente contemporâneo na música instrumental brasileira.

****- Toninho Ferragutti & Quinteto de Cordas - De Sol à Sol (Selo Sesc, 2021)
Esse disco do acordeonista Toninho Ferragutti me remete à uma viagem de trem onde o viajante aprecia diversas paisagens em seu assento de janela -- vilas, paisagens campestres, o sol irradiando por entre as montanhas e coisas do tipo... Também é um disco que nos lembra os arranjos mais modernos que alguns músicos argentinos -- o bandoneonista Dino Saluzzi em seus álbuns pela ECM, os membros da banda argentina Escalandrum, e etc -- evidenciaram nas últimas décadas em suas versões renovadas da estética do tango. Mas, claro, a brasilidade aqui -- advinda de baiões, xotes, valsas, choros e etc -- também está presente, ainda que o disco não soe ritmicamente sugestivo e seja mais um híbrido na linha do erudito-popular como um todo. Compondo para acordeão e quinteto de cordas -- um quarteto de cordas erudito mais a adição do contrabaixo jazzístico --, Ferragutti vem acompanhado de Luiz Amato e Liliana Chiriac (violinos), Adriana Schincariol (viola), Adriana Holtz (violoncelo) e Zé Alexandre Carvalho (contrabaixo). Salvo em uma ou outra faixa mais sugestiva -- como na faixa "Forró Campeão --, o interessante destes arranjos de acordeão com cordas é que Toninho Ferragutti adota um viés mais impressionista e menos sugestivo, com as influencias brasilianistas e com as influências do tango e do jazz soando implícitas e inflexionadas em meio aos tantos entrelaces inteligentes de cordas e solos melódicos, além dos delineamentos virtuosos e improvisativos do seu acordeão. E encontrar esse ponto criativo entre a latência da mera reprodução do folclore e as inflexões do arranjo e da escrita composicional que é a grande complicação, e o grande objetivo do músico contemporâneo. O disco foi idealizado no final de 2019, antes da pandemia, e lançado em 2021.

****- André Marques/ Marcel Bottaro/ Rodrigo Digão Braz - Choro Universal (2021).
Quem acompanha música instrumental brasileira e o jazz contemporâneo não pode deixar de seguir os projetos de André Marques. Figura das mais destacadas da música instrumental  brasileira, o pianista é membro do Trio Curupira, do Hermeto Pascoal & Grupo, e também é líder da Orquestra Vintena Brasileira (com berço no Conservatório de Tatuí, São Paulo). Em seus projetos solos -- em piano-trio, piano, solo, sexteto e outras formações --, André tem claramente buscado se inspirar na contemporaneidade do jazz dos últimos tempos, além de toda sua experiência com o conceito de "música universal" -- e essa junção do jazz contemporâneo com a "música universal" hermetiana surte efeitos dos mais instigantes! É nesse conceito -- absorvido de Hermeto Pascoal, que se prediz em misturar vários elementos rítmicos-harmônicos melódicos em um só gênero musical, sem preconceitos -- que André Marques e seus colegas desse trio se inspiram neste disco. A ideia é trazer o choro, que é um gênero tradicional da música brasileira, para o plano da contemporaneidade através de arranjos inusuais e não convencionais. No repertório estão temas clássicos do choro tais como "Brasileirinho", "Carinhoso", "Desvairada", "Flor Amorosa", "Chorinho pra Ele", entre outros, tocados em rítmicas inflexionadas advindas do maracatu, chacarera, baião, post-bop jazz e por aí vai... Ou seja, André Marques e seu piano-trio dão a esses temas exposições, acordes, arranjos e desenvolvimentos um tanto diferentes das suas formas originais, deixando as inflexões e espontaneidades improvisativas do jazz contemporâneo ditarem as dinâmicas entre introspectividade e tensão.

****¹/2 - Rodrigo Digão Braz - Isolamento Musicado (Blaxtream, 2021). 
Registro fantástico de um grande baterista brasileiro. Isolamento Musicado é o mais recente trabalho do baterista Rodrigo Digão Braz, que aqui compõe temas que dão espaço para elaborados desenvolvimentos e intrincadas improvisações, sempre se baseando num range que varia entre a brasilidade e o jazz contemporâneo de verve post-bop. A banda é fantástica: trata-se de um sexteto com Rodrigo Digão Braz (bateria e composições), Salomão Soares (piano), Fi Maróstica (baixo), Jota P. (saxofones), Diego Garbin (trompete), com participação especial de Fábio Leal (guitarra). Difícil, aliás, destacar um ou outro músico dentro da banda, quando todos dispõe de fluência fora de série -- tanto a natural fluência brasileira e quanto a fluência jazzística adquirida. Rodrigo Digão Braz idealizou o álbum num período de lockdown e isolamento social, onde, naturalmente, teve de se recolher para seu interior e perceber que era o momento de externalizar seus sentimentos e suas afinidades, compondo os temas e os intitulando com nome de pessoas, lugares, ritmos e outras coisas e manifestações que lhe inspiram. E essas inspirações, sedimentadas por sua musicalidade, gestaram temas e desenvolvimentos muito empolgantes! A musicalidade do baterista, aliás, não é atestada apenas pela fluência polirrítmica das suas baquetas, mas também pela sua expertise composicional e harmônica.

***¹/2 - Enrique Menezes - A Gente de São Paulo (2022). 
O flautista Enrique Menezes (já citado acima no álbum Abismo de Prata, de Gian Corrêa) lançou neste início de ano de 2022 este seu segundo tento da carreira: "A Gente de São Paulo". Antes, em 2019, Enrique Menezes já havia lançado o álbum Jazz Rural, inspirado pelas pesquisas de Mario Andrade, que nas décadas de 20 e 30 viajou para várias cidades de São Paulo -- Grande São Paulo e Interior -- para registrar os festejos e as manifestações musicais regionais e folclóricas, compondo nossos primeiros mapeamentos etnomusicológicos. Nessa fase da vida, Mario de Andrade era diretor no Departamento de Cultura de São Paulo e foi o responsável, portanto, por criar esse importante acervo de pesquisas musicais sobre os elementos folclóricos e regionais que perfaziam a identidade musical paulista -- muitos desses elementos embrionários, aliás, advindos já dos séculos 18 e 19, de quando as intersecções afro-indígenas-portuguesas já estavam sedimentadas e já produziam suas variabilidades à medida que as cidades se povoavam. Em 2021, Enrique Menezes teve o capricho de até criar um podcast de 4 episódios para explanar aos interessados esse percurso de Mario de Andrade por algumas cidades paulistas, episódios que o leitor pode conferir aqui 👉 neste link. Para este álbum, Eenrique Menezes, pois, continua com essas inspirações acrescidas de outras adjacências modernistas advindas tanto do erudito quanto do instrumental popular, incluindo ruidosidades e improvisos livres no molho. Interessante como que Menezes e seus colegas utilizam os motivos melódicos dessas canções registradas de festejos regionais -- toadas, folias de reis, cantigas, entre outros motivos -- para aplicar, por cima delas, inflexões e ruidosidades instrumentais: gravações essas tiradas diretamente do arquivo de Mario de Andrade, com a baixa qualidade de uma gravação de campo da década de 30. Temos até o privilégio de ouvir um áudio com o próprio Mario De Andrade cantando: vide a faixa "Toca zumba". Para este projeto, Enrique Menezes tem a colaboração de Ricardo Zoyo (baixo e composição), Daniel Grajew (piano e composição), Joao Fideles (bateria), Diogo Maia (clarinete e clarone), Rafael Ramalhoso (violoncelo) e Gian Correa (mix/masterização).

***¹/2 - Enrique Menezes & Gustavo Sarzi - Coro de Grilo (Tratore, 2022). 
Interessante duo com flautista Enrique Menezes e o pianista Gustavo Sarzi, ao qual os dois instrumentistas dão o título de Coro de Grilo. Permeando uma amálgama moderna entre o popular e o erudito, os dois instrumentistas misturam, de forma impressionista, alguns motivos melódico-rítmicos-harmônicos brasilianistas e sulamericanos com a arte do livre improviso, incluindo uma clara abertura para as chamadas técnicas estendidas. A parceria surge desde os momentos de universidade, sendo ambos formados pela Escola de Música da ECA/ USP, onde começaram a partilhar interesses nessas conexões brasileiras e sulamericanas entre as culturas negras, brancas e indígenas. Henrique Menezes, como mencionado no álbum acima, até levaria adiante uma faceta de criar música nova a partir da musicologia precursora de Mario de Andrade. Para este álbum, primeiro registro do duo, flautista e pianista se delineiam entre composições autorais e improvisos introspectivos, com a flauta soando de formas várias, algumas vezes até de forma estendida. O duo soa, aliás, muito dinâmico e telepático, como que fundindo os tons e ponteios pianísticos com os sopros estendidos da flauta, sabendo o momento certo de soar pianíssimo, de elevar a intensidade, de adentrar ao território da introspectividade, de evocar alguns motivos ritmico-melódicos mais claros e por ai vai...

****¹/2 - Benjamim Taubkin - Trilhas (Núcleo Contemporâneo, 2021).
O pianista Benjamim Taubkin é um dos mestres da música instrumenta brasileira mais multifacetados que se tem notícia: um brasilianista, um compositor com predileção pelo contemporâneo, um estudioso das músicas do mundo, um compositor de trilhas sonoras, um agitador cultural...dentre tantas outras facetas. Este projeto acima funciona como um repositório: na pandemia, o compositor reuniu 12 composições elaboradas para filmes, projetos audiovisuais, documentários e outros projetos para os quais foi encomendado, e decidiu lançar um álbum com essa seleção. Mas Taubkin fez da seguinte forma: lançou as faixas uma em cada mês, lançando uma a uma nas plataformas digitais como singles. Essas composições são interessantes porque evidenciam sinestesias com outras formas e linguagens de arte como o cinema, o audiovisual, o teatro, a fotografia, entre outras linguagens, onde a música naturalmente tende a ter um papel mais subjetivo no campo da sonoplastia, na intenção de dar vida às cenas, exprimir emoções, sensações, abstrações e tentar delinear essas linguagens por meio de sons. Entre os trabalhos para os quais Benjamim Taubkin compôs trilhas, estão o documentário Reneé Gumiel – A vida na pele (2005) de Sergio Roizenblit e Inês Bogéa, o filme Constantino de Otavio Cury, o projeto Gênesis que trouxe em exposições (e depois em livro) as imagens de campo que o fotógrafo Sebastião Salgado registrou pelo mundo, e o documentário Cravos que narra a trajetória dos artistas baianos Mário Cravo Júnior, Mário Cravo Neto e Christian Cravo. Seleção fantástica de peças que trazem uma riqueza híbrida de imaginação composicional, sons singelos de percussão e diversos instrumentos étnicos, piano acústico, alguns mínimos efeitos de synths e ambiências várias.

****¹/2 - Thiago França - Bodiado (YB Music, 2021).
A julgar pelo anterior KD VCS (YB Music, 2020) (que resenhamos aqui ano passado) e, agora, por este álbum acima, podemos dizer que Thiago França encontrou no formato do sax-solo uma das suas vias de maior expressão -- os dois registros são altamente indicados. França, sabendo que o formato solo pode gerar uma certa sensação de vazio no ouvinte, trata logo de variabilizar muito bem as abordagens em torno do formato, dessa vez soando menos rústico e menos free improv que em KD VCS, e se deixando levar mais pelo ludismo, pelos melodismos e repetições de motivos e refrões divertidos, além de alguns efeitos de reverberâncias e ambiências aqui e ali. Aliás, até o uso das técnicas estendidas de sopro e embocadura tem um propósito mais direcionado ao divertimento. França também usa o recurso da edição de overdubs sobrepostos para variabilizar, colorir e desenvolver as "brincadeiras" -- evidenciando ecos de divertimentos que vêm da sua predileção pelo choro e das charangas carnavalesca, ainda que esses elementos tradicionais não fiquem totalmente explícitos nos temas.

***¹/2 - Alfredo Dias Gomes - Metrópole (Independente, 2021). 
Em 2020, o baterista Alfredo Dias Gomes já havia lançado o bem talhado álbum Jazz Standards, um projeto de releituras produzido de forma independente e gravado em seu próprio estúdio, no Rio de Janeiro. Agora em Metrópole, Alfredo Dias Gomes, explora sua veia composicional em sete temas autorais que passeiam pelas variabilidades do jazz. Trabalho de qualidade inquestionável, o álbum foi gravado em seu estúdio e foi masterizado no icônico estúdio Abbey Road, em Londres, contando com a participação dos músicos Jessé Sadoc (trompete e flugelhorn), Widor Santiago (saxofone) e Jefferson Lescowich (baixo). Alfredo Dias Gomes, multifacetado, primeiro gravou as bases de bateria e teclados para depois sobrepor as linhas dos outros músicos em seus arranjos já pré-definidos. O teclado soa com uma ambiência agradável, e junto com a bateria e o contrabaixo elétrico, conferem uma sonoridade lounge, noir e urbana -- fazendo-nos lembrar, diga-se de passagem, do clássico álbum de César Camargo Mariano, São Paulo - Brasil (BMG, 1977), só que mais acústico e mais "lounge" que esse clássico dos anos de 1970, que soa mais "groovy", fusion e psicodélico. Os solos de trompete de Jessé Sadoc é um dos diferenciais do álbum. Fiquemos atento aos próximos trabalhos desse grande baterista.

****- Alexandre Guerra/ Daniel Murray/ Chrystian Dozza - Lugar ao Vento (2021)
Já há um tempo que este blog passou a acompanhar a carreira deste grande violonista chamado Daniel Murray, que consegue equilibrar brasilidade com apreço pela música contemporânea com muita propriedade. Neste álbum, Lugar ao Vento, Daniel Murray e Chrystian Dozza são os dois violonistas convidados para dar vida às composições de Alexandre Guerra, atualmente um dos compositores contemporâneos brasileiros mais ativos e bem executados no Brasil e no cenário internacional. Alexandre Guerra, que também consegue equilibrar brasilidade e contemporaneidade na linha do erudito-popular, já havia composto a peça "Fantasia para Violão e Orquestra", que teve sua première com a Orquestra do Theatro Municipal de São Paulo, sendo interpretada por Chystian Dozza, violonista também reconhecido internacionalmente. Para este projeto registrado no álbum acima, então, Alexandre Guerra conta com estes dois grandes violonistas, Murray e Dozza, na interpretação das suas belas peças escritas nessa linha da amálgama do erudito-popular. Exprimindo a identidade imagética, sinestésica e nostálgica do compositor, o álbum aborda temas como solidão, amor, saudade e natureza em onze faixas, onde os dois violões ora atuam cada um em interpretações solo, ora se sobrepõe, se contracenam e se dialogam em atmosferas e ambiências de contemporaneidade ímpar. Alexandre Guerra evidencia um claro imagetismo cinematográfico em suas peças.

****- Rogério Caetano - Solo (Biscoito Fino, 2021).
Usando o violão de sete cordas com acordeamento de aço, o violonista goiano Rogério Caetano também aproveitou seu retiro pandêmico para organizar um projeto solo em torno da sua forma pessoal de abordar e enxergar todo o espectro do violão popularizado por Dino 7 Cordas, Raphael Rabello e, mais recentemente, Yamandu Costa. Aqui também temos um projeto onde claramente a intenção é fazer o violão soar livre, solto e cru, sem que as amarras folclóricas que caracterizam o violonismo brasileiro soem explícitas, ainda que a brasilidade soe indissociável. Alguns temas, aliás, nos parecem soarem curtos, mas Caetano, de uma forma um tanto singular, aplica a eles intrincados desenvolvimentos e improvisos que se remetem às estéticas do choro e do jazz. Outros temas nos parecem soar apenas improvisados, com algum motivo melódico permeando aqui e ali. Em recentes depoimentos para o jornal O Estado de Minas, o violinista e compositor explanou suas ideias para este projeto: "Na história fonográfica brasileira, pela primeira vez é gravado um álbum tendo o violão de sete cordas de aço como instrumento solista. Desenvolvido por Dino 7 Cordas, ele sempre teve a verve de instrumento acompanhador. Já as sete cordas de náilon foram estabelecidas por Raphael Rabello na década de 1980. Resumindo: o violão de sete cordas de aço veio com o Dino, o pai de todo mundo. O de náilon, com o Raphael Rabello. Mas solista 'sete cordas de aço' é a primeira vez, pois ninguém havia gravado com esse instrumento tocando sozinho, vamos assim dizer. Nesse disco, só eu toco". E pelas abordagens presentes em sua discografia, não é de hoje que Rogério Caetano mostra ser um violonista que, além do virtuosismo, mostra um olhar diferenciado para seu instrumento.

***¹/2 - Thiago Espirito Santos's Musical Universe (Tratore, 2021).
Contrabaixista renomado nacional e internacionalmente, Thiago Espirito Santo é um daqueles músicos que quando se ouve, em qualquer disco de qualquer artista, já se sabe quem é: seus solos virtuosos, seus trejeitos improvisativos na baixaria, seus grooves variados em torno das estéticas do fusion e samba-jazz e seu timbre grave e rouco de contrabaixo elétrico são características individuais incomparáveis. Neste álbum, o contrabaixista, pois, faz um balanço da sua carreira, que ultrapassa mais de duas décadas, e expõe algumas das suas principais composições e ideias de arranjos e improvisos, com temas que vêm desde o seu primeiro disco, lançado em 2005 até seus mais recentes tentos. Passeando por estéticas variadas, Thiago Espirito Santo começa com uma exposição de um tema do Cravo Bem Temperado de Bach, passa por faixas mais ambientadas no samba-jazz, passa por faixas mais apegadas ao jazz fusion abrasileirado e vai percorrendo um trajeto que dá ao ouvinte o privilégio de apreciar uma viagem divertida e agradável, cheia de bons solos e boas harmonizações. Fazem parte do cast Thiago Espirito Santo (baixo), Cuca Teixeira (bateria), Bruno Cardozo (teclas), Jota P. (saxofone/ flauta), Daniel D'Alcântara e Bia Goes (voz).

*****- Julio Araújo & Pedro Gomes - "U" (Tratore, 2021).
O pandeirista Tulio Araujo é um músico brasileiro formado em percussão e engenharia de som. Estudou com alguns dos mais renomados mestres como o arranjador húngaro Ian Guest, o engenheiro brasileiro Cesar Santos e o percussionista cubano Santiago Reyther. Com uma sólida carreira internacional e vários discos lançados, o músico toma para si a missão de colocar o pandeiro no ambiente do jazz contemporâneo. Em sua página no Bandcamp, o músico deixa explícito sua premissa: “O elementar, o núcleo, o simples. Daquilo de onde tudo se forma, cresce, se torna complexo para entender que o retorno ao cerne é, nada mais que, necessário e, portanto, inevitável. Uma ode a menor parte de toda a vida, com suas infinitas camadas e níveis". Ao ouvir o álbum "U", percebemos que essa premissa é atestada logo pelo fato do panderista partir da unidade celular do ritmo para ampliá-las em desenvolvimentos compassados em métricas ímpares e inusuais, mostrando brasilidade, sim, mas uma brasilidade um tanto amalgamada com as sonoridades e as rítmicas ímpares do jazz contemporâneo. O álbum já começa com Tulio Araujo usando articulações -- com pandeiro e voz -- nas rítmicas e métricas intrincadas da música hindustani (Índia) como uma introdução que desemboca no tema de uma forma não menos que inusual. Daí em diante, variando-se em temas modais mais meditativos e outros mais evocativos, o ouvinte embarca para uma série de paisagens e aventuras. Cada faixa do disco é intitulada com uma das cinco vogais do alfabeto. A instrumentação do álbum é rica em ambiências que trazem ecos do jazz fusion, mas de uma forma própria: improvisos vocais, reverberantes sonoridades guitarrísticas, synths e alguns efeitos pontuais de eletrônica, violão, flauta, contrabaixo elétrico e etc. Ademais, Tulio Araújo sempre se coloca como um panderista e um especialista em percussões várias, mas na verdade sua musicalidade se mostra muito ampla, englobando uma clara expertise em timbres, arranjos e composição. Este álbum foi lançado em parceria com o contrabaixista mineiro Pedro Gomes, que foi um dos vencedores do Prêmio BDMG Instrumental de 2021. Fiquemos atentos à estes nomes: o fato deles explorarem essas métricas ímpares já deixa claro sua visão contemporânea de música.

***¹/2 - Orquestra do Estado de Mato Grosso - Pantanal Sinfônico (Kuarup, 2021).
 A Orquestra do Estado de Mato Grosso traz em sua distinta sonoridade uma proposta um tanto interessante: trazer toda a gama de elementos da cultura popular do centro-oeste brasileiro para o território do arranjo sinfônico. Dessa forma, canções e peças de estilos populares como a música sertaneja, o rasqueado, a catira (modas de viola), a guarânia (que é natural do Paraguai, mas exerce forte influência regional no centro-oeste brasileiro), a ranchera e a música missioneira do Pantanal (no Sul também chamada de música gaúcha), dentre canções de outros estilos, recebem requintadas versões sinfônicas nas mãos do maestro Leandro Carvalho. Expandindo esse projeto, nos últimos anos o maestro produziu um espetáculo chamado "Pantanal Sinfônico" junto com o pesquisador de cultura popular, cantor e compositor Milton Guapo. A pandemia da COVID-19 trouxe alguns impecílios, certamente, mas o projeto não parou e manteve forte repercussão nos meios culturais de Mato Grosso. Em fins de 2021, quando começou a se flexibilizar as restrições do lockdown, o maestro Fabrício Carvalho, familiar de Leando Carvalho, também retomou as apresentações do espetáculo "Pantanal Sinfônico" e teve importantes colaboradores nessa sua empreitada: dentre eles, a Orquestra Sinfônica e o Coral da Universidade Federal do Mato Grosso e os violeiros Paulo Simões, João Ormond e Habel Dy Anjos. Enquanto isso, este álbum já estava sendo lançado nas principais plataformas de streaming como um registro seminal desse projeto de pesquisa e difusão. Esteticamente falando, estamos aqui diante de um projeto, na linha do popular-erudito, que é estritamente elaborado para fazer uma releitura do folclore do centro-oeste do Brasil -- sem se compromissar com as inflexões e as estéticas (expressionistas, impressionistas, minimalistas e etc) da arte mais conceitual presentes na música contemporânea, por exemplo. Um projeto regional de evidente qualidade.

****¹/2 - Carlos Malta & Fernando Moura - Besouros - The Beatles Songs 2 (2021).
Os Beatles, banda mais popular da história da música, sempre tiveram suas canções reproduzidas em arranjos instrumentais diversos por inúmeros músicos de vários gêneros. Contudo, nem sempre essas reproduções superam o espectro da mera versão instrumental de uma canção pop, muitas das vezes sem esmero e criatividade em termos de sonoridades, arranjos e harmonias. Mas o Projeto Besouros, chegando agora em seu segundo volume, supera em muito esse estigma. A inventividade e a criatividade de Carlos Malta e Fernando Moura supera as expectativas em todos os níveis: harmônicos, ritmos, melódicos, timbrísticos e etc. Individualmente, os músicos Carlos Malta (saxes, flautas, clarone, pífanos e etc) e Fernando Moura (piano, teclados, synths e eletrônicos) já ostentam uma carreira onde a inventividade sempre esteve na ordem do dia. Aqui juntos, então, essas individualidades se fundem em uma só simbiose de arranjos eletro-acústicos híbridos, cheio de timbragens orgânicas de várias flautas, saxes e clarone que se misturam com os timbres e efeitos eletrônicos para formar uma amálgama não menos que inovadora em torno das melodias e harmonias características dessas canções pop -- e tudo isso com pitadas de brasilidade aqui e ali. Fernando Moura, que tem uma carreira internacional consagrada e até chegou a colaborar com o produtor George Martin (considerado o "quinto Beatle), mostra uma concepção avançada de timbrística eletro-acústica e arranjo, sendo o autor dos arranjos das doze faixas do disco. Enquanto o multi-instrumentista Carlos Malta -- um dos grandes exploradores sonoros do nosso tempo, renomado internacionalmente e colaborador de Hermeto Pascoal nos anos 90 -- acrescenta toda aquela sua gama de sopros e sons acústicos que o fez ser chamado de "escultor do vento". Vale à pena também procurar pelo primeiro volume de Besouros - The Beatle Songs, lançado em 2017 pelo selo Deck.

****¹/2 - Fernando Moura - Sozinho no Paraíso (Deck, 2022).
Registro de música eletrônica muito interessante! Nos últimos tempos, vários dos músicos mais criativos do jazz e da música erudita contemporânea tem visto na eletrônica -- analógica e digital -- uma saída inovadora para explorar novas combinações sonoras que os conecte com o tempo presente. Mas, atenção: estamos falando, mesmo, de novas combinações e texturas, não daqueles arranjos e combinações eletrônicas que já foram muito bem explorados nos meandros do jazz fusion das décadas de 70 e 80 nos meandros do rock e pop dance. A música sempre avança, e a eletrônica é uma das vias por onde mais se permite avançar em termos de criatividade e inventividade. E é isso que o tecladista e arranjador Fernando Moura explora neste álbum acima. Em 40 anos de carreira, com muitos desses anos dedicados à carreira internacional, Fernando Moura adquiriu enorme sensibilidade e síntese do que é moderno e contemporâneo ao produzir seus projetos solos e colaborar com artistas e músicos como Steve Hackett (ex-guitarrista da banda Gênesis), Chuck Berry, George Martin (ex-Beatles), Marisa Monte, Lenine, Miyazawa Kazufumi, dentre outros. Em sua página no Bandcamp, Fernando Moura nos conta como e porque resolveu exprimir um pouco dessa síntese através das explorações eletrônicas registradas nestes álbuns acima. Fernando Moura conta que a saída compulsória das apresentações ao vivo, somada com o tédio do isolamento social, lhe fez mergulhar em um mundo próprio de sons que estavam ali no seu âmago aguardando uma oportunidade de serem exprimidos para fora da alma e do corpo. E como um tecladista que viveu aquele apogeu inicial dos teclados e sintetizadores dos anos 70, ocupar seu tempo ocioso em um estúdio para explorar novas ideias, performances, sketches, grooves, texturas e improvisações em torno dos sintetizadores e teclados lhe pareceu a coisa mais primordial, natural e interessante a se fazer naquele momento de total isolamento. Fernando Moura soa, mesmo, muito criativo e inventivo nesta gravação, explorando matizes e combinações que só é possível exprimir através de uma imaginação muito criativa.