★★★★ - Geoffrey Keezer & Friends - Playdate (MarKezz Records, 2022).
Geoffrey Keezer, um dos mais refinados pianistas do post-bop jazz -- revelado por Art Blakey, pioneiro da geração "young lions" nos anos 90, parceiro regular de instrumentistas do mais alto panteão do jazz como o contrabaixista Christian McBride, o saxofonista Joshua Redman e o trompetista Terence Blanchard, e três vezes indicado ao prêmio Grammy... -- retorna ao estúdio depois de alguns anos sem lançar um tento em nome próprio e grava um ótimo exemplo de hibridismo jazzístico contemporâneo. Trata-se deste álbum acima, Playdate, creditado em nome de Keezer e seus Friends, com participações de um quinteto fixo com órgão Hammond B3, mais participações pontuais de guitarra, percussão e uma orquestra de cordas. A agradável ambiência da banda -- condimentada pelas ressonâncias do órgão, da guitarra elétrica e das cordas -- evoca um certo tom de retomada, após esses últimos anos sombrios de pandemia e anormalidades sociais, e nos dá aquela sensação de acordar num belo dia de sol e dizer "vamos continuar, temos uma missão a cumprir, a vida continua"(!). O quinteto é formado com Geoffrey Keezer (piano), Shedrick Mitchell (Hammond B3 organ), Ron Blake (saxes), Richie Goods (contrabaixos) e Kendrick Scott (bateria). Em algumas faixas entram as guitarras de Aayushi Karnik e Nir Felder a temperar a contemporaneidade dos temas com algumas doses leves daquela psicodelia que tem marcado o post-bop dos últimos tempos, e também entra a percussão de Munyungo Jackson. Em duas outras faixas, "Refuge" e "Bebah", Goeffrey Keezer convida uma orquestra composta de cordas (violinos, violas e cellos) mais uma trompa e dá forma a uma composição híbrida ao estilo de "jazz with strings". Com todos esses ingredientes, a impressão que Geoffrey Keezer nos deixa é a de conseguir dar forma a um hibridismo dotado de pleno equilíbrio, maturidade e contemplação. Passando por atualizações contemporâneas de organ jazz, "jazz with strings", post-bop, straight-ahead, o álbum termina com um blues alegre numa clara demonstração de ampla consciência em relação a importância de manter as raízes do jazz conectado à sua contemporaneidade.
★★★★ - Oded Tzur - Isabela (ECM Records, 2022).
Não foi à toa que o saxofonista israelense Oded Tzur, radicado em Nova Iorque, chamou a atenção do produtor Manfred Eicher, proprietário da "grife" ECM Records, após receber aclamação da crítica pelos álbuns Like A Great River (Enja Records, 2015) e Translator's Note (Enja Records, 2017). Com uma musicalidade condimentada por suas raízes judaicas, médio-orientais e sua predileção pelas tradições musicais da Índia, Oded Tzur exprime do seu saxofone tenor um som límpido no registro médio e levemente rasante no registro agudo -- que lembra, aliás, as linhagens sonoras promovidas por saxofonistas históricos como Lee Konitz, Stan Getz, Paul Desmond e Charles Lloyd --, e evoca uma ambiência e uma poética melódica muito concernente com a estética com a qual a ECM Records se tornou uma espécie de "grife" da música contemporânea. Isabela é o quarto álbum do saxofonista, que promete continuar a nos impressionar com seu lirismo de coloridos melódicos judaicos, hindus e médio-orientais combinado com uma improvisação característica do post-bop, tudo muito bem sedimentado pelo supracitado "conceito ECM". O álbum traz, na verdade, uma suíte de cinco partes composta em forma de raga hindustani, mas com os elementos dessa influência soando sempre em formas implícitas e intimistas, sem deixar evidente as latências tradicionais da raga. A faixa-título, "Isabela", é uma composição alusiva ao poema de mesmo nome que o saxofonista fornece no encarte do CD. O saxofonista vem acompanhado de Nitai Hershkovits ao piano, Petros Klampanis no contrabaixo e Jonathan Blake na bateria, mesma banda que o acompanhou em gravações anteriores.
★★★★¹/2 - Art.eria - Acoustic Electronic Ensemble (2022).
Esse excelente registro foi uma das recentes surpresas que eu tive ao perambular pelos becos do Bandcamp. Art.eria é um ensemble híbrido de composição erudita, música minimalista, jazz acústico, música experimental e música eletroacústica, formado em Barcelona, Espanha. A premissa do Art.eria é fazer esse conceito híbrido soar com um design sonoro ultra contemporâneo e futurista, fazendo uma ponte entre música e a arte audiovisual em 3D -- um conceito tridimensional interessante. O conjunto foi resultado de um encontro casual entre o produtor e pianista italiano Leonardo Cincinelli e o pianista e compositor argentino Mariano Camarasa pelos corredores e calçadas da cena catalã, onde há uma bem fermentada e borbulhante multiculturalidade. Só para se ter uma ideia, Leonardo Cincinelli e Mariano Camarasa citam, entre suas influências, os pianismos de Keith Jarrett, o jazz-fusion transcendente de Miles Davis e a eletrônica afro-futurista de Flying Lotus, ainda que essas influências soem implícitas em meio ao híbrido design futurista do Art.eria que evoca, por vezes, um imagetismo cinematográfico. O "ensemble" ainda traz em seus arranjos sonoros e gráficos os talentos do flautista Fernando Brox, do contrabaixista uruguaio Antonino Restuccia Moreno, de um quarteto de cordas e do design do artista audiovisual russo Max Rogov (também conhecido como N0vatik).
Nesse excitante espécime sonoro com duas peças longas sem título, a improvisadora sul-coreana Okkyung Lee mostra o quão expansivo seu cello pode soar ao se contracenar com aparelhos eletrônicos. Two Duos é o registro de duas performances captadas no emblemático Cafe OTO, em Londres: a primeira performance é um duo com o manipulador de eletrônicos Jérôme Noetinger, que aqui atua com as fitas magnéticas de um Revox B77; e a segunda performance é um duo com a manipuladora Nadia Ratsimandresy atuando com um rudimentar Ondas Martenot, um dos primeiros instrumentos eletrônicos popularizados, por exemplo, pelo compositor erudito Olivier Messiaen a partir dos anos de 1930. Okkyung Lee, fazendo um extensivo uso de técnicas estendidas, explora toda a gama de ruídos densos, harmônicos agudíssimos, sons ríspidos da crina friccionada e percutida nas cordas do cello, efeitos cintilantes de ponticellos e outros barulhos convulsivos que se entrelaçam ou se colidem com as modulações, os chiados, as distorções e rusticidade dos efeitos eletroacústicos rudimentares das fitas magnéticas e com os agudos uivos eletrônicos do Ondas Martenot. Há momentos de ápice onde os efeitos acústicos do cello se misturam de forma surpreendentemente amalgamada aos efeitos desses instrumentos da eletroacústica rudimentar.
★★★★★ - Russell Gunn & The Royal Krunk Jazz Orkestra - The Sirius Mystery, Opus 4 no.1 (Ropeadope Records, 2021).
Projeto fantástico do trompetista Russell Gunn. Nascido em Chicago, tendo crescido em East St Louis, Illinois, Russell Gunn é um compositor, produtor e trompetista fascinado pelas diásporas e sonoridades pan-africanas presentes dentro e fora dos EUA. Sendo um dos primeiros membros do naipe de trompetes da Lincoln Center Jazz Orchestra, big band de Wynton Marsalis, nos anos 90 Russell Gunn chegou, inclusive, a participar da icônica gravação da obra épica Blood on the Fields, sob a batuta de Wynton. Russell Gunn também participou, nessa época inicial da sua carreira, da gravação do álbum Dedicated to Dolphy (Black Saint, 1996) liderada pelo veterano saxofonista Oliver Lake, outra figura legendária de St. Louis, local onde surgiu, no anos 60, um dos pilares do movimento da "creative black music" com o coletivo BAG (Black Artists Group). Essas incursões primeiras já atestam que suas influências reúnem elementos tanto da tradição quanto do avant-garde. Desde então, seu trompete e arranjos foram requisitados por uma legião de músicos, bandas e cantores criativos do jazz, do hip hop e de outros gêneros tais como Branford Marsalis, Jazz at Lincoln Center, Maxwell, D'Angelo, Angie Stone, Jimmy Heath, Roy Hargrove, Lou Reed, Cee Lo Green, Ne-Yo, Marcus Miller, dentre muitos outros. Nos últimos tempos, Russell Gunn formou sua própria big band, a The Royal Krunk Jazz Orkestra, centrando suas composições e arranjos num conceito pessoal mais eclético, mais centrado em temáticas diaspóricas e arranjos contemporâneos. Essa sua orquestra já foi registrada em dois lançamentos anteriores: Get It How You Live (Ropeadope, 2018) e Pyramids (Ropeadope, 2019). Em Pyramids, um álbum alusivo aos mistérios das pirâmides africanas, Russell Gunn tematiza sua música em torno de uma natural reinvindicação dos mistérios tecnológicos e das sabedorias que os povos nubianos e egípcios mostraram a vários milhares de anos atrás, e ainda hoje são obscurecidos: muitos dos primeiros conceitos da engenharia, da medicina, da ciência, da astrologia, e muitas outras áreas científicas, foram iniciados por esses povos africanos, uma constatação que precisa ser sempre reafirmada diante dos preconceitos raciais ainda vigentes. Neste EP acima, The Sirius Mystery, Russell Gunn vai ainda mais longe em sua sina de mapear o conceito de tradição oral deixado por seus ancestrais: o trompetista e bandleader efetuou uma imersiva pesquisa de rastreamento em sua ascendência ancestral e encontrou suas raízes no Mali, o que despertou seu interesse pelas sonoridades e tradições desse país, especificamente pela cultura dos povos Dogon. A ideia-temática é, enfim, de se conectar com essa ancestralidade que veio se perdendo ao longo do tempo por causa dos paradigmas impostos pelos colonizadores europeus e por causa dos reflexos supremacistas evidenciados pelo racismo e preconceito institucionalizados. Em termos de sonoridade, temos aqui um rico caleidoscópio de cores e elementos diaspóricos que vão de vocais cantados e falados a sofisticados arranjos orquestrais, da visceralidade orquestral de Wynton Marsalis -- que participa como improvisador convidado na segunda faixa -- às sonoridades transcendentes de Sun Ra, do hip hop ao jazz e suas raízes no blues, das tradições afro-americanas ao avant-garde, da eletrônica mais contemporânea à primordial percussão das tribos africanas. Fantástico!
★★★★¹/2 - Nana Rizinni - Maracujá Azedo (Umbilical, 2022).
Este álbum me soou muito criativo e descontraído pela sua rica confluência de hibridismos cancionistas e instrumentais. Projeto da baterista, compositora e produtora Nana Rizinni -- que trafega desenvolta entre os cenários de São Paulo e Londres, onde é radicada --, trata-se de uma incursão inusitada pelo território da canção proporcionada pela chegada dos obrigatórios lockdowns pandêmicos que praticamente paralisaram todas as atividades culturais em todo o mundo. Nana Rizinni conta, em sua página no Bandcamp, que precisava se manter ocupada, e empreender-se em um novo projeto remoto gestado através das ideias, influências e inflexões enfornadas em seu espírito criativo lhe pareceu a melhor coisa a se fazer naqueles momentos sombrios. Nana Rizinni evidencia, então, uma ampla compreensão dos vários espectros-vultos estilísticos que cercam sua rica experiência como produtora de vários artistas, e começa a coletar ingredientes advindos dos núcleos e arredores da MPB tropicalista, da eletrônica, do experimental, da música instrumental brasileira e do jazz contemporâneo, criando uma curiosa confluência com pitadas e elementos de todas essas estéticas musicais sem, contudo, soar sugestiva ou saliente em relação a nenhuma delas. Ao contrário, as canções soam tão amalgamadas e tão envoltas de detalhes hibridificados, que chega a ser impossível taxar uma categorização em torno do projeto como um todo. O projeto reúne, então, uma coleção de canções autorais -- com letras inteligentes dotadas de um certo existencialismo descontraído, diga-se de passagem -- que trazem tapeçarias sonoras, arranjos e efeitos não menos que criativos através das técnicas de edição remota, com arranjos executados por diferentes instrumentistas de várias partes do mundo tais como o tecladista americano Jason Lindner, a contrabaixista Ana Karina Sebastião, o saxofonista Filipe Nader, os pianistas Vitor Arantes, Rafael Montorfano e Bruno Venturim, os trompetistas Amílcar Rodrigues e Fernando Goldenberg, dentre outros. Lançado pela gravadora brasileira Umbilical, Maracujá Azedo começou a ser elaborado em São Paulo, de onde Rizinni é natural, e foi finalizado em Londres, onde vive atualmente. A baterista, além de ampliar o contexto das suas baquetas e do seu drum set, também aventurou-se com êxito em vocais cantados e em manipulações de vários eletrônicos usados no projeto.
Este álbum marca o retorno do projeto musical idealizado pela dupla de irmãos Shuya e Yoshihiro Okino, influentes DJs, multi-instrumentistas e remixadores de Kyoto, Japão. Embora este álbum acima seja apenas o segundo álbum de estúdio da dupla -- descontando os inúmeros singles sortidos, os EP's e as aparições das suas amostragens em compilações --, o Kyoto Jazz Massive ostenta uma carreira de mais de 30 anos e é amplamente conhecido entre os fãs de acid jazz, tendo sido amplamente elogiado e difundido, por exemplo, pelo DJ e radialista Gilles Petterson, um dos pais e difusores do acid jazz e cercanias eletrônicas. Tendo sido dj's apegados aos primeiros rompantes do hip hop e da eletrônica entre finais dos anos 80 e início dos anos 90, Shuya e Yoshihiro logo passaram a considerar o jazz como um elemento basilar indissociável das suas amostragens. Eles se variabilizam com uma gama de estilos que vão da techno e house music ao acid jazz, do broken beat ao jazz fusion, da soul music ao afro-beat, mas sempre mantendo uma liga onde o jazz é o principal sedimento. Este álbum acima, Message From A New Dawn, praticamente marca o renascimento das misturas marcantes do Kyoto Jazz Massive vinte anos após seu último single, "Eclipse", e 19 anos desde seu primeiro álbum "Spirit Of The Sun". Para celebrar esse retorno, a dupla convida para uma participação, na faixa "Get Up", uma das suas principais influências de sempre: a lenda viva, o vibrafonista, cantor, arranjador e bandleader Roy Ayers, um dos nomes centrais do jazz-funk setentista.
★★★★ - Alex Sipiagin - Acent to the Blues (Posi-Tone Records, 2022).
Para quem acompanha jazz contemporâneo já há algum tempo sabe o quanto Alex Sipiagin é benquisto no olimpo dos grandes trompetistas e compositores das últimas décadas -- um dos meus trompetistas favoritos, de todos os tempos. Tendo lançado discos há quase duas décadas pela excelente gravadora Criss Cross -- um dos núcleos incontestes do post-bop contemporâneo --, agora Alex Sipiagin lança seu segundo álbum pela igualmente importante Posi-Tone Records, alcançando um resultado que, se não é surpreendente, é no mínimo bom... Muitos dos seus álbuns pela Criss Cross eram dispostos de surpreendentes composições modais repletas de imagetismos, "moods" atmosféricos, improvisos e acompanhamentos fluídos e brilhantes, ambiências e solos de piano Rhodes, pitadas de efeitos eletrônicos e etc. Sipiagin mantém a fórmula e continua apresentando uma das químicas sonoras mais esteticamente contemporâneas dos últimos tempos, mas aqui ele se volta mais fundamentalmente para o blues e para o straigt-ahead, com rítmicas que variam do walking bass em 4/4 característico do neo-bop até aquele funky mais solto e polirítmico bem característico do post-bop contemporâneo, passando por baladas, temas mais lentos em atmosferas bluesy e tons jazzísticos mais elementares -- evocando, por vezes, tons do hard bop e post-bop dos anos 60. A banda é de peso: Alex Sipiagin (trompete, flugelhorn), Diego Rivera (saxofone tenor), Art Hirahara (piano, Rhodes), Boris Kozlov (contrabaixos acústico e elétrico) e Rudy Royston (bateria, percussão).
★★★★ - BadBadNotGood - Talk Memory (XL/ Innovative Leisure, 2021).
O quarteto canadense BadBadNotGood -- que agora é um trio -- foi um daqueles jovens grupos a viralizar no Bandcamp e nas redes sociais nos anos de 2010 com uma abordagem instrumental eclética que lhe permitiu trafegar por vários gêneros e circuitos, conquistando jovens e veteranos. Com predileções iniciais pelo pop e hip hop, mas fluentes em jazz e com expertises em inteligentes efeitos eletrônicos, o instrumental da banda é amplamente difundido por milhões de "views" e "plays" nas redes sociais e nas plataformas de streaming, e sua presença é altamente requisitada em diversos shows e gravações com inúmeros artistas e cantores, além de convites para festivais de jazz, eletrônica, indie rock e cercanias. Seus primeiros álbuns soam mais sintéticos, mais pop e com elementos abundantes de hip hop, enquanto este álbum acima soa mais improvisativo e jazzístico -- ainda que os elementos jazzísticos sempre estejam minimamente presentes na amálgama do grupo, desde seus primórdios. Lançado após um hiato de cinco anos -- acentuado pela saída do tecladista Matthew Tavares do grupo --, o álbum acima é um projeto autoral primoroso: soando mais orgânicos, os temas autorais da banda -- que já é normalmente rica de influências e fluências por si só -- são ainda mais enriquecidos com as presenças de instrumentistas e produtores seminais tais como o citarista Laraaji, o baterista Karriem Riggins, o produtor Terrace Martin, a harpista Brandee Younger e o DJ Floating Points. Algumas faixas ainda contam com arranjos de cordas elaborados pelo influente cantor, arranjador e compositor brasileiro Arthur Verocai. Dessa forma, arranjos de cordas, improvisos instrumentais vários, rock instrumental, jazz-fusion, pitadas de eletrônica e elementos do hip hop confluem numa amálgama não menos que primorosa e envolvente.
★★★ - Sam Gendel - AE-30 (Leaving Records, 2021).
Em agosto de 2021, o saxofonista, produtor e multi-instrumentista Sam Gendel -- um dos nomes seminais da cena underground de Los Angeles -- viajou para a Islândia com sua companheira, a cineasta Marcella Cytrynowicz, e registrou um trabalho de campo tocando um sintetizador de sopro Aerophone Pro Digital AE-30 da Roland em locais remotos ao ar livre, repetindo essa empreitada por todo o país através de um potente veículo Toyota Land Cruiser que lhe permitiu acessar trilhas desafiadoras e presenciar as mais belas paisagens nas encostas das montanhas islandesas. Esse projeto lhe permitiu comungar ao mesmo tempo os benefícios de um retiro espiritual, isolamento pandêmico e trabalho de campo com música nova e vídeo, tendo sido gravado e filmado em formato de documentário. O documentário completo e o álbum complementar com os áudios foram editados e foram lançados em dezembro de 2021 pela Leaving Records, e agora as faixas estão totalmente liberadas no Bandcamp. Em termos de conceito, não trata-se de "temas" ou "peças" com estruturas escritas a mão ou previamente elaboradas -- não é um trabalho composicional. Trata-se apenas de pequenas amostras de abstrações sonoras emitidas ao ar livre por um Aerophone Pro Digital AE-30 através das inspirações provocadas pelas paisagens islandesas, sendo posteriormente misturadas com outros sons por meio da edição de overdubs. Interessante.
★★★¹/2 - Payton McDonald/ Billy Martin/ Elliott Sharp/ Colin Stetson - Void Patrol (Infrequent Seams, 2022).
O saxofonista Colin Stetson é um célebre estudioso das técnicas estendidas aplicadas aos saxes e um aficionado por essas técnicas aplicadas em outros naipes de sopros, além de uma notável proficiência para compor trilhas sonoras e para levar esse seu lado mais exploratório -- dos sopros estendidos em palhetas -- para um campo de criações mais estilizadas, contemplativas, assimiláveis. Neste álbum acima, ele se junta a uma inédita formação com Elliott Sharp (guitarra e outras cordas dedilhadas, além de eletrônicos), Billy Martin (bateria e percussão) e Payton MacDonald (marimba e outras teclas percussivas), dando o start em um projeto para o qual eles dão o nome de Void Patrol. A ideia de reunir os quatro músicos foi do percussionista e marimbista Payton MacDonald (membro-fundador do aclamado ensemble erudito Allarm Will Sound), e, como eles bem citam no Bandcamp, o conceito musical em torno do projeto é juntar quatros grandes exploradores musicais de origens estéticas diferentes para trabalhar numa linha de misturas um tanto "jazz-dronecore-funk-metal". Nessa linha de explorações sonoras, as faixas se configuram com longos drones improvisados sob bases harmônicas estáticas: enquanto a bateria e percussões sustentam grooves e proliferações rítmicas livres e soltas, a guitarra elétrica e as teclas sustentam a densidade harmônica com acordes estáticos, e o saxofone serpenteia seus sopros e fraseios livres em meio ao salseiro. Em outros momentos, a guitarra atua livremente improvisada junto ao saxofone, enquanto as teclas e percussões se sustentam num transe de drone music um tanto melódico e meditativo. E assim os quatros aventureiros vão se revezando entre dinâmicas várias, sempre nessa linha de sustentação do mantra sonoro.
★★★★★ - Émile Parisien - Louise (ACT, 2022).
O saxofonista-soprano francês Émile Parisien é uma das pratas da casa no cast da gravadora alemã ACT Records. Émile Parisien começou a se tornar conhecido já muito jovem, entre fins dos anos 90 e início dos anos 2000, após se destacar em aparições no Festival de Jazz de Marciac ao lado de célebres instrumentistas americanos tais como Christian McBride, Johnny Griffin, Bobby Hutcherson e Wynton Marsalis, que é figura honorária desse festival. Desde então, se tornou um dos principais saxofonistas de jazz na França e em toda a Europa, além da aclamação entre músicos americanos. Neste álbum acima, seu oitavo álbum pela ACT, Émile Parisien reafirma sua predileção pelas influências que as artes plásticas provocam em sua música e idealiza um projeto sonoro em homenagem às esculturas da grande artista Louise Bourgeois, convidando um timaço de grandes músicos franceses e americanos: participam seus companheiros franceses Roberto Negro (piano) e Manu Codjia (guitarra), e os americanos Theo Croker (trompete), Joe Martin (contrabaixo) e Nasheet Waits (bateria). Os temas, as sobreposições de improvisos e arranjos e os solos -- às vezes sensíveis e melódicos, outras vezes inflamados e viscerais -- compõe um rico caleidoscópio jazzístico de elementos americanos e europeus. Além disso, há uma espécie de suíte de três partes improvisadas em meio aos temas -- intitulada Memento: Parte 1, 2 e 3 -- que eleva o nível do projeto a um patamar poucas vezes alcançados nesses últimos tempos de desânimo pandêmico. A sensibilidade harmônica e melódica do pianista Roberto Negro é assustadora. A guitarra elétrica de Manu Codjia é um sedimento timbrístico importante dentro da sonoridade da banda. Os improvisos e melodias de Émile Parisien revelam uma ponte entre várias influências advindas de mestres do sax soprano -- tais como Wayne Shorter, Branford Marsalis e Steve Lacy --, e reafirmam com grande êxito sua capacidade plena em fraseados elaborados e vôos livres. O trompetista Theo Croker, neto do icônico trompetista Doc Cheatham (1905-97), emite fraseios de admirável fluência improvisativa combinada com suavidade e sensibilidade. O baterista Nasheet Waits (mais conhecido por ser membro do piano-trio de Jason Moran) mais uma vez se mostra daqueles percussionistas capazes de proliferar uma profusão de polirritmias, timbres brilhantes e efeitos impressionistas das suas baquetas, pratos, caixas e afins. Sendo um álbum majoritariamente autoral, Émile Parisien reserva o tema "Jojo" como uma referência ao pianista e compositor alemão Joachim Kühn, e elabora uma releitura para o tema "Madagascar" do Weather Report como uma referência à época em que ele tocou com o grupo The Syndicate, de Joe Zawinul. Um dos melhores álbuns de jazz de 2022.
Projeto fantástico do bandleader Stuart Bogie que aqui faz uma parceria com o compositor e arranjador Joe Russo. A ideia em torno dessa banda é a de trabalhar com sopros expansivos num formato mais ou menos de dez integrantes, tendo o jazz como um princípio ativo para a sedimentação, mas sempre rompendo com todos os limites estéticos já manjados em termos de uma banda de sopros: trata-se de um tenteto -- com trompetes, trombones, saxofones, flautas, tuba e bateria -- que soa distante dos padrões de uma brass band ou de uma big band tradicional, e mais próxima dos conceitos de uma “jam band” multicultural regada a misturas de arranjos elaborados, improvisos freejazzísticos, elementos de rock, hip hop, afrobeat, funk-metal, ska e pitadas estratégicas de ambiências eletrônicas. Stuart Bogie conta que o The Prophets In The City é um registro que documenta um sempre muito almejado projeto seu de formar uma banda com a multiculturalidade da cidade de Nova Iorque: “The music we’ve created here revels in the human mysteries that unfold in New York City, basking in its connections, ironies, and myths” -- explica o bandleader. Para tanto, o bandleader não apenas uniu instrumentistas originários do jazz, mas principalmente instrumentistas de outros gêneros, convocando integrantes de bandas como Antibalas, The Dap Kings, Arcade Fire, American Utopia (banda de David Byrne), St. Vincent e The Budos Band. Ainda que seja um projeto novo, a banda já é uma sensação no famoso nightclub Nublu -- que geralmente apoia projetos multiculturais desse tipo, vide o projeto similar levado a cabo pelo falecido maestro Butch Morris --, além de ser requisitada em outros nightclubs nova-iorquinos (que costumam reservar as segundas feiras para big bands e projetos orquestrais desse tipo) e diversos festivais que estão retornando nessa fase pós pandêmica.
★★★★¹/2 - John Escreet/ Pera Krstajic/ Anthony Fung - Cresta (2022).
Tendo estudado com jazz masters como Kenny Barron e Jason Moran na Manhattan School of Music, John Escreet é um dos grandes pianistas a surgir na década de 2010. Desde então, tem lançado uma dezena de registros em seu nome -- passando por selos como Posi-Tone, Mythology, Criss Cross e Whirlwind -- e tem outras duas dezenas de participações como sideman em discos de outros grandes músicos tais como Tyshawn Sorey, David Binney, Antonio Sanchez e Alex Sipiagin, com uma versatilidade que abrange uma vastidão de estilos -- straight-ahead, post-bop, modern creative, fusion, free music... E este álbum afirma com muita propriedade isso. John Escreet, ao piano e com uma penca de outros teclados e sintetizadores, vem em trio acompanhado da compositora e talentosíssima contrabaixista sérvia Pera Krstajic e do baterista, compositor e produtor Anthony Fung, companheiros com os quais atua na cena jazzística de Los Angeles, e mostra um multifacetado trabalho de eletrônica. Seu piano acústico aqui está mais escondido. A sina de Escreet, Krstajic e Fung com este projeto é explorar as possibilidades variadas dos timbres eletrônicos e suas combinações, evocando, por vezes, passagens mais ritmadas em jazz-funk, outras passagens mais soltas em jazz fusion, outras passagens abstratas livremente improvisadas e por aí vai..., evocando, ao seu modo e com suas próprias abstrações, ecos que vão de Sun Ra à Herbie Hancock. Sendo um projeto colaborativo com composições próprias dos três integrantes, este é um dos melhores álbuns de "electro-jazz" lançados em 2022.
O Artfacts é um trio com a violoncelista Tomeka Reid, a flautista Nicole Mitchell e o baterista Mike Reed, instrumentistas seminais do "modern creative" e do free jazz contemporâneo os quais têm suas principais bases de influências no cenário da música criativa de Chicago -- moldados, evidentemente, pelos espectros criativos da histórica escola da AACM (Association for the Advancement of Creative Musicians). E este álbum é o registro desse trio de instrumentação incomum, mas de sonoridades, improvisos e inflexões inteligentes e marcantes. O primeiro registro do Artifacts Trio data-se de 2015 e apresenta peças eruditas de compositores da primeira geração da AACM: Henry Threadgill, Roscoe Mitchell, Fred Hopkins, Leroy Jenkins, Amina Claudie Meyers, Steve McCall, Anthony Braxton e Muhal Richard Abrams. Já este segundo tento, continua com versões para algumas peças de Muhal Richard Abrams, mas centra-se mais em peças elaboradas pelos próprios integrantes do trio -- lembrando que Nicole Mitchell, por exemplo, já tem sua proficiência composicional afirmada e atestada em diversos excelentes álbuns com peças altamente elaboradas para diversos formatos de banda, incluindo peças orquestrais. Para este trabalho, as criativas inflexões eruditas da primeira geração da "creative black music" da AACM ainda continuam uma influência, mas aqui as peças são escritas mais na forma de temas com desenvolvimentos voltados às rítmicas e aos grooves de jazz, com a bateria ditando variavelmente essas rítmicas, enquanto o cello incorpora a função de um contrabaixo e varia entre passagens melódicas com arco e acompanhamentos contrapontísticos tangidos em pizzicato (com os dedos), ao mesmo tempo em que a flauta dá vida aos temas com um marcante sopro acústico e com sonoridades eletronicamente inflexionadas por pedais de efeitos. Ademais, também há temas compostos em formas de "canções", com desenvolvimentos mais melodiosos: como nas faixas Song for Helena e Song for Joseph Jarman. Este álbum, "...and then there's this", é ótimo exemplo da música criativa feita por essa terceira geração de Chicago que equilibra-se entre os ecos da escrita erudita, ecos do avant-garde empreendido pela geração sessentista da AACM e os ecos do jazz atual de verve mais post-bop e "modern creative".
★★★★¹/2 - Alexander Hawkins - Brake a Vase (Intakt, 2022).
Eis aqui um outro exemplo de como traja-se o "modern creative" do jazz contemporâneo, com peças composicionalmente estruturadas entre ecos de liberdade freejazzística e improvisos enquadrados com rítmicas mais próximas ao post-bop, além de pitadas de eletrônica. A segunda faixa, "Stamped Down, or Shovelled", é um ótimo exemplo desse tipo de peça composicionalmente estruturada entre fraseios livres e sobreposições contrapontísticas. Com esse álbum, o pianista inglês Alexander Hawkins mais uma vez deixa latente sua maestria fora de série: tanto em mostrar uma admirável sensibilidade harmônica em suas 88 teclas e elaborar peças mais estruturadas com rítmicas e grooves inflexionados, quanto em liderar a banda em peças mais livres e soltas. Outro diferencial neste álbum são as temáticas inteligentes em torno das peças. A temática da faixa-título, por exemplo, é tirada do discurso de aceitação ao Prêmio Nobel pelo poeta indiano Derek Walcott, em 1992. Enquanto a faixa "Chaplin in Slow Motion" é inspirada no cinema mudo de Charlie Chaplin e brinca com inflexões abstratas em andamento desacelerado, numa clara demonstração de manipulação do tempo musical. Já a faixa "Stride Rhyme Gospel" evoca ecos daquele free jazz mais "spiritual" com todos soando juntos sobrepostos uns aos outros numa densidade de cores disformes. Alexander Hawkings, enfim, mostra um trabalho que sintetiza, num só álbum, ecos e inspirações advindos de todos os lados do jazz e de outras músicas criativas -- free jazz, livre improvisação europeia, post-bop, "modern creative", música erudita contemporânea, pitadas de efeitos eletrônicos e etc --, fazendo nos lembrar de vários insights já presenciados em obras de compositores conhecidos por elaborar peças onde as estruturas permitem equilíbrio criativo entre o caos e a ordem, tais como Eric Dolphy, Henry Threadgill, Tim Berne, entre outros. A banda, chamada de Mirror Canon, é um sexteto que tem origem com o encontro do seu trio -- formado com o contrabaixista Neil Charles e o baterista Stephen Davis -- com o saxofonista e clarinetista Shabaka Hutchings, o guitarrista Otto Fischer e o baterista Richard Olátúndé Baker, que também enriquece a sonoridade do conjunto com outras percussões. Shabaka Hutchings, a propósito, é um daqueles grandes instrumentistas do nosso tempo que se variabiliza tanto em grupos e bandas com presença marcante nos rank charts do jazz mainstream (como as bandas Sons of Kemet, Shabaka and the Ancestors e The Comet Is Coming) como também tem trânsito livre entre os improvisadores do jazz avant-garde. Uma grande banda, um ótimo registro!
Tweet