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Kenny Kirkland: sideman de luxo nos anos 80 e 90, ele foi o pianista inovador do neo-bop e conquista reconhecimento


Nos últimos anos, foi lançado nas plataformas digitais dois books para download que tratam da vida e obra de um dos grandes pianistas da história do jazz: Kenny Kirkland (1955-1998). Nem sempre citado entre os grandes da história, Kirkland tem uma carreira solo representada apenas por um disco como líder e por uma outra gravação em trio como co-líder, mas recheou vários álbuns de outros grandes músicos com seus solos inebriantes e inacreditáveis: a começar pelos cinco anos em que foi membro do impactante combo Wynton Marsalis Quintet (de 1981 à 1985), passando por uma década e meia como membro do potente Branford Marsalis Quartet, além de estar presente em discos de John Scofield, Miroslav Vitous, Chico Freeman, Kenny Garrett, Dizzy Gillespie, Elvin Jones, Jeff "Tain" Watts, Carla Bley, Michael Brecker, Terence Blanchard, e muitos outros. Nos últimos anos, felizmente, os telescópios dos críticos, jazzófilos e revisores estiveram atentos e virados para a órbita da estrela de Kirkland, que pairava quase imperceptível na galáxia dos grandes pianistas. Quer dizer: imperceptível para boa parte da crítica especializada e para o público mais amplo, pois entre os músicos o pianista sempre foi reverenciado! Nos últimos anos, não tem sido incomum até mesmo pianistas contemporâneos já bem estabelecidos afirmarem e reconhecerem a genialidade e a influência de Kirkland no circuito das 88 teclas. O pianista Jason Moran, por exemplo, em entrevista para o blog do escritor e também grande pianista Ethan Iverson, afirma que Kirkland foi um dos últimos inovadores do piano jazz das últimas décadas: "He was the guy. The last innovator. He took the Herbie/McCoy thing to the next ship. His sound was big! His chords always had overtones making them sound bigger then they were". E Moran -- ele próprio um dos inovadores do jazz contemporâneo -- toca num ponto central: Kirkland realmente levou as inovações iniciadas no post-bop sessentista por McCoy Tyner e Herbie Hancock para um patamar ainda mais elevado em termos de requinte harmônico, de swing e de precisão rítmica. Seu timing era incomparável! Seu dedilhado era percussivo e claro. Seus fraseados eram únicos: suas frases eram longas e ricas em sincopações criativas; ele podia desenvolver um rico improviso sobre bases cromáticas modais de uma forma sempre constante, ininterrupta, com criatividade melódico-harmônica ilimitada, explorando saídas criativas para além da base harmônica a todo o momento, explorando todo os registros do piano -- e com um brilhantismo incomparável quando chegava nas teclas mais agudas. Estes dois livros chegam agora num momento, pois, em que as percepções dos pianistas, revisores e fãs de jazz se voltam recorrentemente para esses brilhantes solos que Kirkland deixou espalhados em vários shows e discos de outros grandes músicos.

 
Fiquei sabendo dos dois livros justamente através de um tuíte do pianista Ethan Iverson, que também é um admirador confesso de Kenny Kirkland. O livro Doctone: An Oral History of the Legendary Pianist Kenny Kirkland traz consigo um vídeo e o álbum com as faixas do piano-trio que Kirkland deixou registrado pelo selo Sunnyside em 1991, e foi escrito pelo músico e pesquisador Noah Haidu. Enquanto o audiobook Harmonic and Rhythmic Language: A Model for the Modern Jazz Pianist foi escrito por Geoffrey Dean, também músico e pesquisador, como uma tese de doutorado a ser publicada pela University of Illinois. Haidu centra-se em entrevistas e depoimentos de familiares, amigos e músicos seguidores de Kirkland -- incluindo a participação dos supracitados Branford Marsalis, Sting e Jason Moran. Enquanto Geoffrey Dean centra-se em transcrições e análises mais técnicas dos seus solos, incluindo bootlegs e solos extraídos de gravações raras, fora do catálogo convencional da discografia do "underrated" pianista. Esses tratados são importantes para levar a música de Kirkland para um nível maior de reconhecimento entre os fãs mais curiosos e instruídos. Pois, de fato, a arte do improviso pianístico de Kirkland não parece ser o tipo de tendência a ser massivamente popularizada entre o público que ainda enxerga o jazz apenas como uma espécie de "música-ambiente" -- estamos falando aqui de música-arte! Ainda que seus solos soem claramente criativos, brilhantes e divertidos até para leigos, há muito requinte melódico-rítmico-harmônico que só os ouvintes com ouvidos mais musicais e os próprios músicos conseguem esmiuçar. Entre os pianistas, por exemplo, Kirkland obtém um reconhecimento praticamente unânime e sua influência segue cada vez mais reconhecida. Para os fãs do piano jazz que não conseguirem, por ora, adquirir esses books, no YouTube há alguns cortes e videocasts, bem como transcrições dos seus solos surpreendentes, que explicitam bem suas características inovadoras. Os meus preferidos são as transcrições curtas dos seus improvisos e as análises meticulosas que o pianista Peter Martin, por exemplo, faz da proficiência melódico-rítmico-harmônica de Kirkland: vide, por exemplo, 👉este vídeo. Ademais, vale lembrar que, por ter concentrado sua carreira quase que totalmente no ofício de sideman, faz-se necessário uma busca mais diletante e incisiva pelos discos nos quais constam sua participação. Abaixo indicarei alguns exemplos.
  
A transcrição acima é do improviso que Kenny Kirkland aplica ao tema Black Codes de Wynton Marsalis, tema disposto no álbum de mesmo nome lançado pelo trompetista em 1985, um dos registros maiores do fantástico combo Wynton Marsalis Quintet e, por consequência, um dos clássicos maiores do neo-bop e da história do jazz. Trata-se de uma peça elaborada em harmonia modal onde Wynton Marsalis claramente deixa explícito que sua intenção não é mostrar solos velozes com virtuosismos mirabolantes -- ainda que, em determinados momentos, a banda rume inevitavelmente para um ápice virtuosístico --, mas que sua intenção é fazer com que cada solo, seu e dos seus sidemans, soe como um discurso bem cadenciado, um contar de estórias sempre num medium swing que prenda a atenção de quem ouve -- lembrando que a temática central do álbum é a história das leis segregacionistas conhecidas como Códigos Negros. Kenny Kirkland, pois, exprime seu discurso musical com fraseados tão criativos e variados em termos de estruturas quanto rico em termos de cores harmônicas, flutuando cromaticamente para fora e para dentro das bases modais a todo o momento, algo como faria um exímio cantor ou contador de histórias que faz bom uso das suas entonações vocais e fonéticas para potencializar as cadências do seu canto ou das suas frases faladas -- suas dissonâncias pianísticas, aliás, não soam como tensões harmônicas desconexas das bases, mas soam como contrastes de cores que nos fazem perguntar a todo o momento de onde o pianista tira essas suas inteligentes ideias cromáticas. Kirkland também sabe variar muito bem as estruturas através do seu dedilhado claro e percussivo: seu discurso improvisado combina acentuações com acordes imprevisíveis em sua mão esquerda, e variadas possibilidades e recursos discursivos e improvisativos em sua mão direita, variando muito bem entre colcheias, semicolcheias, quiálteras, pausas e tercinas com sincopas imprevisíveis em partes aceleradas (quando ele sai das colcheias e dobra em semicolcheias) e desaceleradas (quando ele retorna às pontuações das colcheias), tudo isso sem perder o foco discursivo e num entrelace onde o swing é mantido num perfeito timing contrapontístico ante a bateria explosiva de Jeff "Tain" Watts e o contrabaixo marcante de Charnett Moffett  -- sem deixar a peteca cair, como se diz no ditado popular. Esse seu estilo claro, percussivo, rico em recursos e possibilidades imprevisíveis, elevou em muito as inovações melódico-rítmico-harmônicas semeadas por pianistas do bebop dos anos 40 e 50 e pianistas do post-bop dos anos 60 e 70 tais como Bud PowellMcCoy Tyner, Herbie Hancock e Chick Corea, de forma que podemos considerar que Kirkland é, de fato, um dos últimos inovadores do piano jazz do século 20. 
 

Kenny Kirkland também foi muito proficiente como sideman dentro das estéticas fusion e pop music onde pôde mostrar seu inteligente uso de sintetizadores e teclados eletrônicos. Sobretudo quando atuou na banda do violinista polonês Michał Urbaniak e na banda do cantor britânico Sting, da qual também fez parte Branford Marsalis, a cargo dos saxofones. Sting, de fato, tinha um olhar mais expansivo e ousado para as misturas e as instrumentações as quais pretendia explorar dentro da sua banda -- explorando misturas de jazz acústico, sonoridades fusion, rock, reggae, new wave, pop, world music e outros estilos -- e portanto forma, em meados dos anos 80, um conjunto de músicos não menos que talentosos e notáveis com Branford Marsalis (saxofones), Kenny Kirkland (teclados), Darryl Jones (contrabaixos) e Omar Hakim (bateria), além de outros músicos de apoio e dos backing vocals (vide foto acima). Kenny Kirkland, pois, acompanharia Sting e Branford por mais de uma década, praticamente até antes de falecer em 1998 por insuficiência cardíaca congestiva. E quando nos deparamos com os álbuns e shows de Sting, podemos observar que o cantor sempre permitia que seus músicos explorassem momentos de solos instrumentais mais extensos em sua banda de apoio, momentos nos quais Kenny Kirkland se abrilhantava com toda a genialidade dos seus improvisos ao piano acústico e teclados eletrônicos. Para o ouvinte mais aplicado que gostaria de observar esses momentos, basta ouvir os álbuns The Dream of the Blue Turtles (A&M, 1985) e Bring on the Night (A&M, 1986), registros não apenas aclamados nos termos da estética do pop oitentista como também muito elogiados pelos arranjos e pelos solos instrumentais. O álbum The Dream of the Blue Turtles (A&M, 1985), aliás, chegou até a ser indicado ao Grammy na categoria Best Jazz Instrumental Performance, algo incomum para um registro de pop music.


Voltando um pouco atrás em sua biografia, Kenny Kirkland começa a carreira na segunda metade dos anos 70 como tecladista da ótima banda de jazz fusion do violinista polonês Michał Urbaniak, lançando um total de sete discos com essa banda no período de 1977 a 1983. Nessa fase, a inspiração de Kirkland é, claramente, Herbie Hancock. Mas seu estilo nessa época se difere pelo fato de que a sonoridade da banda de Urbaniak é mais voltada em explorar, de forma variada e fluída, as inúmeras sonoridades eletrônicas e sintéticas que permeavam a estética fusion, sonoridades as quais eram combinadas com os violinos elétricos do bandleader e os vocalises da fantástica vocalista Urszula Dudziak, ao passo em que Hancock rumava cada vez mais especificamente para os grooves hiper eletrificados do electro-funk. Sendo assim, o papel de Kirkland com a banda fusion de Urbaniak é centrado em programar os eletrônicos e emitir sínteses eletrônicas variadas como um bom harmonizador e acompanhador, sem se despender muito no ofício de solista virtuose dentro da banda -- ou seja, com solos longos de violino e as partes em vocais, não havia muito espaço para solos de teclados e sintetizadores. Ainda assim, é possível encontrar nos sete discos lançados alguns momentos onde Kenny Kirkland mostra um tanto sua proficiência enquanto tecladista eletrônico com essa banda: um bom exemplo é o álbum Heritage (Pausa, 1980), onde ele se reveza entre o piano Rhodes e sintetizadores.

 
No final dos anos 70, Kirkland também seria convidado para integrar a banda fusion do contrabaixista tchecoslovaco Miroslav Vitous, com a qual gravaria três bons álbuns e começaria uma transição do fusion para o post-bop acústico: o álbuns Guardian Angels (Evidence, 1978), esse ainda numa estética fusion; e os álbuns First Meeting (ECM, 1980) e Miroslav Vitous Group (ECM, 1981), esses dois totalmente acústicos já no conceito próprio de harmonizações e ambiências da célebre gravadora alemã ECM. Kenny Kirkland se separaria do Miroslav Vitous Group, então, após viajar para uma turnê no Japão e lá encontrar os irmãos Wynton e Branford Marsalis, os quais também estavam em turnê com o combo V.S.O.P, um quinteto acústico liderado por Herbie Hancock que tinha como premissa resgatar os elementos do post-bop acústico iniciado por Miles Davis e seu "Segundo Grande Quinteto" nos anos 60. Era uma fase em que Wynton Marsalis, mentorado por Herbie Hancock e Art Blakey, despontava como uma grande promessa e pretendia formar seu próprio quinteto, para o qual convidou Kenny Kirkland e convidaria, após retornar aos EUA, o baterista Jeff "Tain" Watts e o contrabaixista Charles Fambrough. Eis que urgia, então, um resgate inovador do jazz acústico via elementos do bebop, hard bop e post-bop do período dos anos 40 aos anos 60, resgate do qual o próprio Kirkland seria a principal força motriz em termos de levar adiante as inovações do piano acústico iniciadas lá atrás por pianistas como Bud Powell, Herbie Hancock e McCoy Tyner. Dentro da banda de Marsalis, Kenny Kirkland mostraria uma sincronia fora de série com o baterista Jeff "Tain" Watts, parceria e amizade que duraria e geraria muitas interações inovadoras.
 


Disposto a seguir uma agenda lotada como sideman de luxo de vários dos grandes músicos dos anos 80 e 90, esses dois álbuns acima são, então, os dois únicos registros que já foram lançados em nome de Kenny Kirkland. O álbum homônimo Kenny Kirkland (GRP, 1991) traz composições suas e releituras de temas de Thelonious Monk, Wayne Shorter, Bud Powell e Ornette Coleman, mostrando-se mais um compêndio serene das suas predileções do que propriamente um álbum de amostras velozes e virtuosísticas -- mas é um excelente registro que, por certo, logo fará o ouvinte expert em harmonia perceber as sacadas inteligentes do mestre. Já o outro álbum acima e ao lado, Megawatts (2004), trata-se de uma reedição de um lançamento da gravadora Sunnyside sob a alcunha Jazz From Keystone – Thunder And Rainbows: o álbum é um documento do piano-trio que Kenny Kirkland formou com o baterista Jeff "Tain" Watts e o contrabaixista Charles Frambough, e a gravação foi realizada no legendário nightclub de San Francisco Keystone Corner, em 1991. No demais, fica a dica para o ouvinte mais curioso pesquisar outros álbuns da discografia do pianista enquanto sideman de outros grandes músicos. Abaixo eu listo algumas opções. Pianista versátil e tecladista multifacetado, o ouvinte-pesquisador mais aplicado poderá encontrar Kirkland soando em vários contextos. Mas sua proficiência mais inovadora, ao meu ver, é a que compreende suas atuações junto aos músicos chamados de "young lions", geração de jovens músicos que resgataram o bebop, hard bop e post-bop em abordagens renovadas e inovadoras, a começar pela impulsão dada por Wynton e Branford Marsalis nos anos 80, algo que criou uma tendência chamada de neo-bop que foi praticamente dominante durante todos os anos 90 e início dos anos 2000. Kenny Kirkland foi, como já citado, a força motriz do neo-bop em termos de piano. Abaixo temos seis exemplos de excelentes álbuns onde Kirkland participa como sideman e mostra um piano estupendamente rico: Black Codes (From the Underground) (Columbia, 1986), de Wynton Marsalis; Random Abstract (Columbia, 1987), de Branford Marsalis; o disco homônimo de Michael Brecker lançado pela MCA/ Impulse! em 1987; o fantástico disco autoral Songbook (Warner Bros., 1997) de Kenny Garrett; Within the Realms of Our Dreams (Antilles, 1991) do saxofonista inglês Courtney Pine; e o fantástico álbum Citizen Tain (Columbia, 1999) do baterista Jeff "Tain" Watts, registrado pouco antes do falecimento do pianista e que até resgata alguns rompantes gloriosos do Wynton Marsalis Quintet dos anos 80. Esses exemplos já são mais do que suficientes para que o ouvinte-leitor fiquei inteirado com o piano fantástico de Kenny Kirkland, esse grande músico que ainda é um tanto "underrated" mas é, sem dúvidas, um dos maiores pianistas da história do jazz.