STEVE PINKER |
Revisitando alguns dos grandes filmes e seriados que já assisti, aqui lhes trago um post um tanto extramusical —— aliás, nem tanto..., pois as respectivas trilhas sonoras também valem à pena, ainda que nem todas sejam estritamente compostas de peças ou temas instrumentais. Se "a arte imita a vida" —— na famosa frase atribuída ao filósofo grego Aristóteles (384 a.C. — 322 a.C.) ——, então a arte do cinema tem sido um dos repositórios mais fidedignos das angústias humanas dessa nossa geração que ficará conhecida por dar fim ao moderno século 20 e dar início ao transmoderno século 21. Regadas a doses cavalares de tecnologias cibernéticas e rumando para uma fase onde a inteligência artificial será um dos pilares a determinar o destino da humanidade, as últimas décadas também trouxeram muita degradação humana, muita degradação ambiental, muito ódio, muitas incertezas, muita miséria, muitas fobias, pandemias e desgraças..., deixando como consequência a impressão de estarmos indo de encontro a um inevitável mundo constituído de cenários distópicos e terras arrasadas. E é por isso que nos últimos tempos tem havido tantos filmes baseados na cultura cyberpunk das histórias de mundos distópicos, explorações espaciais e multiversos pós-apocalípticos, onde há uma paradoxal colisão entre cenários de tecnologia ultra avançada e a condição humana que se degrada cada vez mais no âmbito do psicossocial. Essa análise cataclísmica colide diretamente com os estudos do psicanalista e linguista americano Steven Pinker, um dos maiores pensadores da atualidade, autor da Teoria Computacional da Mente. No polêmico livro "The Better Angels of Our Nature: Why Violence Has Declined", Steve Pinker apresenta uma grande quantidade de análises de dados estatísticos para demonstrar que, apesar de tudo de ruim que vivenciamos nos últimos tempos, a busca pelo bem estar social tem aumentado e a violência tem diminuído drasticamente ao longo dos últimos séculos, e que esse momento presente em que vivemos é provavelmente o momento mais pacífico da história da espécie humana: mesmo com as últimas guerras e ameaças fascistas que vivenciamos, as quais nem de longe podem ser comparadas com outros momentos de barbárie, pestes e guerras exorbitantemente sangrentas da antiguidade e da era medieval. Contudo, por outro lado, Steve Pinker nos alerta de que a nossa compreensão em relação ao fato de agora estarmos vivendo num mundo menos violento é drasticamente afetada pelo efeito que a velocidade da tecnologia da comunicação causa em nossa cognição, gerando um efeito inversamente proporcional na nossa capacidade cognitiva de satisfação com o tempo presente e de enxergar um mundo melhor —— até porque as novas gerações, viciadas em notícias e novidades cada vez mais conspiratórias e imediatistas, não tem nenhum apreço em estudar história enquanto disciplina fundamental para saber como era a humanidade tempos atrás e para se chegar às verdades que moldaram os rumos das sociedades. Em outros livros mais técnicos, evoluindo numa direção de pensamento científico iniciada pelo filósofo-linguista Noam Chomsky, Steve Pinker faz estudos profundos da evolução da cognição humana e nos alerta para os fatos e ameaças em como as novas tecnologias afetam nossa capacidade linguística e cognitiva, nos deixando diante de uma nova correlação entre essa nossa existência humana e suas co-relações contemporâneas, regada a muita tecnologia e informação, com novos medos e traumas relacionados à mente humana, nos deixando, portanto, diante de um novo desafio de repensarmos o exercício da linguagem e da razão humana dentro dessa evolução cognitiva. Outro dos grandes intelectuais da atualidade, o escritor israelense Yuval Harari, também chama a atenção para o fato de que em pouco tempo, nos últimos séculos, o homem tem efetivamente conseguido criar um mundo melhor com menos guerras (se comparado a outras épocas de sequenciais e sanguinárias guerras imperialistas), o homem tem conseguido diminuir substancialmente as taxas de mortalidade (com vacinas e tratamentos que agora se tornam mais democráticos), o homem tem efetivamente lutado para alcançar um bem estar social onde quase todas as pessoas possam pleitear seus direitos humanos... mas, ao mesmo tempo, a própria ganância do homem contemporâneo em ter poderes tecnológicos ilimitados como se fosse um "Deus" —— um "Homo Deus", na terminologia teórica do escritor —— é que poderá ser o estopim para uma eventual extinção do homo sapiens tal como o conhecemos a partir da sua pré histórica revolução cognitiva, que teria começado com o surgimento da linguagem a 70 mil anos atrás, e que agora desemboca num incerto cenário regado a inteligência artificial e biotecnologia.
Os estudos desses pensadores mencionados acima, ilustram o triste fato de que agora o problema maior da humanidade pode ser o dilema em como as sociedades continuarão a evoluir combinando avanço tecnológico com saúde mental, de como as sociedades continuarão a expandir seus poderios tecnológicos diante do desafio de não perder a sensibilidade humana ou ao menos a noção da necessidade de se ter mais humanismo, de como o homem pode ser tão drasticamente afetado diante dessa veloz evolução cognitiva proporcionada pela tecnologia sem se perder em suas faculdades mentais (em tantos quadros de ansiedade, depressão, pânico por incapacidade de acompanhar as velozes mudanças na sociedade, e etc), de como o homem pode evitar sua própria extinção ao ostentar poderios tecnológicos que o farão acreditar estar próximo da sua noção de capacidade de realização de um certo "Deus". Quer dizer: o homem consegue levar sondas e robôs à Marte, o homem consegue criar robôs e programas que praticamente "pensam" sozinhos por intermédio de I.A, o homem consegue reproduzir células-troncos e tecidos para curar doenças dantes incuráveis, o homem já consegue criar até clones da vida animal, o homem consegue em pouco tempo criar vacinas capazes de imunizar populações inteiras infectadas por vírus letais..., mas o homem ainda não está livre de si mesmo, e ainda não consegue lidar com os males da sua própria alma: esse homem contemporâneo, em suas ações e reações, está constantemente desenvolvendo novos traumas, novos vícios, novas mentiras e constantemente ampliando sua capacidade de autodestruição que tanto afeta a si mesmo, o meio ambiente e o meio social em que vive. E o pior é que são as próprias ações tecnológicas do homem que destroem a natureza e o levam para uma cada vez maior incapacidade de lidar consigo mesmo, podendo levá-lo a abismos cada vez mais desafiadores. Os filmes abaixo, ainda quem não sejam documentais ou todos ligados às temáticas científicas, ilustram bem alguns desses exemplos de autodestruição e de angústias modernas e contemporâneas. Por outro lado, se os filmes tem servido para retratar e codificar a nossa angustiante realidade em imagens e linguagens audiovisuais, a música tem prestado um importante papel de servir como alento emocional e de derribar velhos preconceitos e barreiras de estigmas sistematizados. Numa época onde a pós-modernidade nos imerge na latência do ecletismo, a música tem sido, talvez, a forma de arte mais diversa e incisiva contra esses e outros paradoxos das psicopatias, do preconceito racial, da falta de humanidade, da disseminação do ódio, do narcisismo, do hilário sentimento de superioridade, e outros males destes tempos distópicos. Aliás, mesmo nos casos dos geniais compositores que exploram gêneros e subgêneros de música instrumental, onde a linguagem é uma forma hibrida de sons organizados dentro de um espaço-tempo com semióticas mais relacionadas à técnicas de manejo e performances do que propriamente à oralidade da língua textual ou da língua falada, a música tem sido uma forma de arte poderosamente dotada de imagetismos transformadores com amplas capacidades de fisgar o pouco de humanidade que ainda resta no interior do homem contemporâneo. E é com essas capacidades de imagetismos e conscientizações que os grandes compositores se destacam. Quando as linguagens musicais são atreladas às linguagens do audiovisual, podemos até ter perdas concessivas dos dois lados —— uma vez que a música estará a serviço da imagem ou vice-versa ——, mas também poderemos ter formas hiper inovadoras de transladar a psiquê humana para uma nova consciência, uma vez que o homem está a todo momento revivendo velhos estigmas e tentando mentir para si mesmo diante da sua triste realidade. Sem ater-nos à exigência de apresentar somente trilhas sonoras instrumentais, abaixo temos alguns dos mais seminais exemplos de seriados e filmes perturbadores que adentram às já referidas questões das angústias humanas citadas acima, e que também nos fazem viajar em suas trilhas sonoras recheadas de música diversa e inteligente. Clique nas imagens para ouvir as trilhas em suas íntegras!
Réquiem para um Sonho (2000), de Darren Aronofsky
O premiadíssimo Réquiem para um Sonho (Requiem for a Dream, 2000), dirigido pelo cineasta americano Darren Aronofsky, é um dos filmes mais perturbadores da história do cinema. Trata-se de uma trama que coloca os sonhos dos personagens numa rota inescapável de colisão com seus vícios e suas realidades. O filme conta a história de uma solitária viúva chamada Sara Goldfarb (Ellen Burstyn) e seu filho desempregado Harry (Jared Leto), que sempre perambula pelas ruas em companhia com seu melhor amigo Tyrone (Marlon Wayans) e sua namorada Marion (Jennifer Connelly): a senhora viúva tem o sonho de aparecer em um popular programa de televisão vestida com o vestido que ela usou tempos atrás na formatura do filho... mas, acima do peso, acaba adentrando-se em uma dieta doentia mantida por medicamentos; enquanto seu filho, seu amigo e sua namorada, também tentando achar meios fáceis de ganharem dinheiro e conquistarem seus sonhos, acabam se envolvendo com o submundo das drogas e do sexo. O filme é dividido em três partes que se referem às três estações do ano, as quais estão conceitualmente relacionadas com os vislumbres ("summer"), os declínios ("fall") e as quedas dos personagens ("winter"), sendo que a ausência proposital da primavera ("spring"), que simbolizaria momentos de sucesso e alvorecer, deixa subentendido que as escolhas dos personagens não resultariam em outros destinos a não ser suas inevitáveis desgraças. Se filmes sobre drogas e vícios já são naturalmente difíceis de assistir, Darren Aronofsky potencializa ainda mais as agonias desses personagens com um enredo que é subdivido dessa forma conceitual e é acelerado ou desacelerado a partir de técnicas de filmagem e edição mais do que inovadoras. Sendo um filme que se tornou célebre pelo uso do conceito de filmagem conhecido como "corte rápido" ou "hip hop montage", os momentos de êxtases, fissuras, alucinações e sofrimentos dos viciados são potencializados através de todo um conjunto de técnicas e edições experimentais: montagens com tomadas de câmeras muito curtas, uso sequencial de frames, pixelização (edição de computador que aumenta os pixels até deformar a imagem), edição inovadora de imagens usando o conceito time-lapse para dar um efeito de tempo em movimento, a técnica de filmagem conhecida como snorricam (onde a câmera é praticamente amarrada ao personagem para acompanhar seus movimentos frenéticos), divisões de tela, entre outras técnicas de filmagem e edição de fotos e vídeos que fazem desse filme um dos mais conceituais da história do cinema contemporâneo. Não obstante, o drama ainda é potencializado por uma trilha sonora que é muito bem conceitualizada, sinérgica e sinestésica em relação às suas cenas lisérgicas. Composta pelo ex-roqueiro inglês Clint Mansell, ex-vocalista da banda Pop Will Eat Itself —— que se tornaria um grande compositor de trilhas sonoras, aliás ——, a trilha é formada pelo leitmov "Lux Aeterna", que sempre reverbera durante a trama, e uma sequência de temas, texturas, amostragens, sons pré-gravados (sons do meio ambiente e gravações de campo) e pequenos scatches elaborados no melhor estilo de "música incidental", hibridificando elementos de música sinfônica, música minimalista, rock e eletrônica. Com arranjos para quarteto de cordas elaborados pelo compositor David Lang (que venceria o Prêmio Pullitzer em 2008), os temas foram escritos exclusivamente para serem executados pelo famoso Kronos Quartet, uma parceria que contribuiria ainda mais para a popularização da trilha. O leitmotiv "Lux Aeterna", inclusive, se tornaria um hit constante na cultura pop, tendo sido reutilizado em diversos outros filmes, trailers, vídeos publicitários e remixes.
Trainspotting (1996), de Danny Boyle
Dirigido pelo cineasta inglês Danny Boyle e estrelado pelo talentosíssimo ator escocês Ewan McGregor, Trainspotting nos traz um enredo que foi baseado no homônimo livro lançado por Irvine Welsh em 1993. A trama conta a história de Mark Renton (Ewan McGregor), um viciado em heroína e desempregado de 26 anos ainda vivendo na casa dos seus pais, e seus amigos moradores de uma área pobre e periférica de Edimburgo, Escócia. Sendo basicamente um filme sobre o drama do vício em drogas em um meio social degradante, Mark Renton e seus amigos coadjuvantes são diversas vezes pegos de sobressalto pelas circunstâncias dessa periferia e pelas consequências dos seus vícios e atitudes inconsequentes, mesmo quando eles tentam sair dessa vida subjugada. O filme ainda aborda a questão da transmissão do vírus do HIV nesse meio de convívio de viciados, nos impactando ainda mais quanto à angústia com a qual essa comorbidade impactava tão intensamente essa geração. Não obstante, a trilha sonora refletiu fielmente a efervescência da música eletrônica e do rock alternativo do Reino Unido à época. Este clássico dos anos 90, enfim, transmitiu tanto realismo e energia para essa geração de pós-adolescentes e jovens-adultos que era embalada pelas trilhas das raves de música eletrônica e das variabilidades de rock alternativo (indie rock, pós-punk, britpop e etc), que tanto o filme em si como sua trilha sonora tornaram-se registros inesquecíveis e indispensáveis em quaisquer listas dos maiores lançamentos cinematográficos de todos os tempos. Aliás, a trilha sonora de Trainspotting —— lançada em dois álbuns, primeiramente numa coleção de músicas que foram usadas no filme, e depois num segundo lançamento que incluiu músicas extras que ficaram de fora, mas que inspiraram os cineastas durante a produção —— é considerada umas das maiores e mais vendidas trilhas sonoras de todos os tempos. Sendo basicamente uma seleção de canções e temas pré-gravados por diversas bandas e grupos, a trilha traz uma set list dividida em três conceitos: primeiro com temas e canções de músicos, bandas e cantores dos anos 70 e 80 anteriormente ligados ao uso de drogas, tais como David Bowie, Joy Division, Lou Reed, Brian Eno e Iggy Pop; depois com temas e canções de bandas de rock ligadas ao fenômeno do britpop, tais como Primal Scream, Blur, Sleeper e Elastica; e depois com temas de música eletrônica criados por grupos como Underworld, Leftfield e Bedrock. Posteriormente, em 1997 seria lançada uma segunda edição da trilha com adições de temas e canções do compositor erudito George Bizet (o tema "Carmen" da sua Suite No.2), da banda de synth-pop Heaven 17, da banda de rock New Order e do rapper Ice MC. Embora não seja uma trilha sonora estritamente de música instrumental —— que, afinal, é o nosso foco aqui no Instrumental Verves ——, trata-se de um registro interessante e importante para termos uma noção do que tão intensamente os anos 90 representou em termos de música dentro da cultura pop —— especialmente nos âmbitos dos fenômenos do britpop e da música eletrônica do Reino Unido.
A Mosca (1986-1989), de David Cronenberg
Este clássico de David Cronenberg, protagonizado por um casal estrelado por Jeff Goldblum e Geena Davis, nos traz uma divertida história de terror e sci-fi dos anos 80 onde um cientista experimental lentamente se transforma em uma bizarra mosca gigante. Na verdade, David Cronenberg faz um remake do filme de mesmo nome lançado em 1958 pelo diretor Kurt Neumann, cineasta alemão radicado nos EUA. A história começa quando esse cientista (Jeff Goldblum) convida sua namorada (Geena Davis) para conhecer seu laboratório e sua brilhante invenção: um conjunto de "cápsulas-telepods" que permite o teletransporte de objetos. Acontece que o experimento ainda não fora testado com animais vivos, então ele logo começa a usar um macaco babuíno em seus testes, o que faz com que o animal se desintegre e se desfigure. Não tendo êxito e obcecado pela possibilidade de mostrar o seu sucesso à namorada, ele volta a reprogramar sua máquina para recompor tecidos vivos e acaba, por fim, tendo sucesso num segundo teste com outro babuíno. O novo êxito fará com que ele mesmo, agora, se submeta a um terceiro teste de teletransporte, sem perceber que uma mosca doméstica incidentalmente entrou na cápsula junto consigo. Aos poucos, então, seu corpo começa a apresentar mutações e mudanças físicas, colocando a relação com sua namorada num desfecho de terror, agonias e complicações, uma vez que logo eles também descobrirão que ela está grávida. A trilha sonora, lançada em cassete e CD, foi composta pelo grande compositor canadense Howard Shore, que escreveu os temas exclusivamente para serem interpretados pela aclamadíssima Orquestra Sinfônica de Londres, com ele mesmo sendo o maestro da orquestra na ocasião da gravação: a obra consiste num conjunto de temas exclusivamente escritos para dar vida às cenas do filme, mas que mais adiante, nos anos 2000, acabaria se desenvolvendo numa suntuosa ópera em dois atos com libreto de David Henry Hwang, tendo sido encomendada pelo diretor de ópera Edgar Baitzel, então responsável pela Ópera de Los Angeles, mas tendo sido estreada em 2008 no Théâtre du Châtelet, em Paris, por Plácido Domingo. Entre finais dos anos 80 e início dos anos 90, Howard Shore e a London Symphony Orchestra, aliás, protagonizaram mais uma trilha sonora de sucesso para um outro filme de David Cronenberg: trata-se da trilha do filme beatnik e surrealista Naked Lunch (Mistérios e Paixões, 1991), onde o compositor faz uma curiosa parceria com o saxofonista de free-jazz Ornette Coleman, que foi co-autor dos temas e solista principal ao lado da referida orquestra sinfônica —— uma trilha que abordaremos em um outro contexto, em um outro post. Já amplamente aclamado como um dos maiores compositores de trilhas para o cinema, nas décadas de 2000 e 2010 Howard Shore seria responsável pelas trilhas sonoras das sagas de O Senhor dos Anéis e O Hobbit. Em relação ao filme A Mosca (The Fly), um segunda filmagem (The Fly II) foi lançada em 1989 pelo diretor americano Chris Walas para dar continuação à história do primeiro filme: dessa vez, a trilha sonora foi composta pelo aclamado compositor de trilhas americano Christopher Young. Aos que se interessar, é possível encontrar um CD duplo com as duas respectivas trilhas sonoras, do The Fly, escrita por Howard Shore, e do The Fly II, escrita por Christopher Young.
Black Mirror (2011-2019), de Charlie Brooker
Disponível na Netflix, a aclamada série Black Mirror, idealizada por Charlie Brooker e com participações da produtora Annabel Jones e de diversos roteiristas super originais, é considerada uma das mais inovadoras dos gêneros de séries de ficção especulativa e antologia distópica. Inspirada pelo histórico seriado americano The Twilight Zone, que foi ao ar de 1959 a 1964, Charlie Brooker e seus colaboradores desenvolvem uma série de histórias baseadas em realidades futuristas e distópicas onde cada episódio está relacionado com as mídias e/ou com algum tipo de super nova tecnologia e suas consequências danosas na vida do homem e das sociedades. Então teremos episódios como: o "The National Anthem", onde um certo primeiro ministro inglês tem sua esposa sequestrada e o sequestrador exige que ele tenha relações sexuais com um porco em plena rede ao vivo de televisão, ecoando também por toda a rede de internet; o episódio "Metalhead", onde cães-guardas robóticos se voltam contra os humanos; "Crocodile", onde há um dispositivo chamado Recaller, usado para visualizar as memórias de uma pessoa; o emblemático episódio "Nosedive", que conta a história de uma sociedade onde as relações e o status socioeconômico de cada pessoa são medidos pela quantidade de estrelas que elas recebem através de dispositivos interfaçados com seus tecnológicos implantes oculares, algo próximo à nossa realidade falsamente forjada pela quantidade de "likes" que se ganha nas redes sociais; o episódio "USS Callister", que conta a história de um talentosíssimo programador que cria clones virtuais num metaverso inspirado em Jornada nas Estrelas (Star Trek), usando o DNA de seus colegas; dentre outras histórias distópicas e futuristas. O fato é que cada episódio acaba terminando muito mal para os personagens, mostrando que o real intuito da série é criar sátiras que se configurem como ácidas críticas sociais aos efeitos danosos da tecnologia, abordando —— implícita e explicitamente —— temas como imediatismo, vícios cibernéticos, mídias e redes sociais, segurança digital, robótica, vigilância e hackeamento, privacidade de dados, realidade virtual (e seus metaversos), consumismo, narcisismo e outras polêmicas e dilemas gerados por essas realidades futuristas e suas super tecnologias. Fugindo à regra com suas temporadas compactadas em apenas cinco ou seis episódios —— porém, com episódios sempre emblemáticos ——, a série já nasceu cult e eclética em seu conceito: ano a ano os produtores seguiram causando frisson nos fãs ao anunciar e lançar novos episódios que inseriram o futurismo distópico dentro de enredos desenvolvidos sob os mais variados gêneros e contextos, indo do gênero neo-noir ao terror, passando pelo drama familiar, pela ficção científica e outros estilos... mas sempre tendo assuntos midiáticos ou alguma super tecnologia como o "plot" principal. Sendo assim, a trilha sonora de Black Mirror acaba sendo, também, muito eclética, indo do pop ao erudito: trata-se de uma seleção musical que abrange canções e temas de bandas, grupos, artistas e compositores tais como Ryūichi Sakamoto, Ashley O, Max Ritcher, Massive Attack, Radiohead, Clint Mansell, Laurie Anderson, Irma Thomas, Tori Amos, Depeche Mode, Run-DMC, Beastie Boys, Madonna, The Pretenders, Robert Palmer, Bee Gees, Pixies e tantos outros. A trilha sonora ainda não foi oficialmente lançada em disco, mas alguns aficionados tem compilado as faixas e disponibilizado as playlists no Spotify.
Anticristo (2009), Melancolia (2011) & Ninfomaníaca (2014), de Lars von Trier
Ainda que sejam histórias trabalhadas nos âmbitos conceituais da ficção, essa trinca de longas-metragens lançada entre a passagem das décadas de 2000 e 2010 pelo cineasta dinamarquês Lars von Trier, compreende um tratado profundo das angústias e dilemas do mundo contemporâneo: ambientalismo, feminismo, suicídio, vazio existencial, pânico, apocalipses iminentes, ansiedade, fanatismo religioso, quadros depressivos, síndromes psicológicas, compulsividade sexual... Uma boa parte das angústias, síndromes, transtornos e medos da humanidade —— males que tem se apresentado nesse estágio de vida letárgica e distópica dos últimos tempos —— foi trabalhada pelo diretor nessa trilogia perturbadora que foi intitulada pela crítica especializada de "Trilogia da Depressão", uma vez que esses filmes decorrem de uma pós-fase depressiva sofrida pelo próprio cineasta. Nas mãos de Lars von Trier, aliás, o aspecto do conceitualismo no exercício de repensar a vida contemporânea através do cinema transborda-se em críticas que atingem, no mínimo, o caráter da polêmica e da irreverência —— não à toa, ele tem sido um dos cineastas mais polêmicos das últimas décadas, sendo tão amado por seus fãs quanto odiado por seus haters. Anticristo (2009), filme inspirado pelo cinema conceitual do russo Andrei Tarkovski, é um filme que combina drama com horror e suspense psicológico, e que conta a história de um casal protagonizado pelos atores Willem Dafoe, um psicanalista, e Charlotte Gainsbourg, sua esposa: ambos estão em luto pela morte do seu único filho e mudam-se para uma cabana no meio de uma sombria floresta chamada Éden para superar um quadro depressivo que acomete dolorosamente a mulher... mas, ao chegar lá, a investigação do marido psicanalista sobre a dor do luto e a depressão profunda da sua esposa desencadeia-se numa espiral de eventos misteriosos, dolorosos e sombrios. Anticristo, assim como a maioria dos filmes de Lars von Trier, faz uso de uma narrativa que coloca o karma da mulher —— seus sofrimentos, pecados, medos e vícios —— em primeiro plano, também fazendo uma alusão e antítese ao Paraíso do Gênesis de Adão e Eva com o cenário da misteriosa cabana em meio à sombria floresta do Éden, onde o casal terão uma satânica revelação. Já o filme Melancolia (2011) é um drama apocalíptico, dividido em três capítulos, que conta a história de Justine (Kirsten Dunst), seu noivo Michael (Alexander Skarsgard), sua irmã Claire (Charlotte Gainsbourg) e o marido da sua irmã John (Kiefer Sutherland): iniciando com a trilha do tema-prelúdio da ópera Tristão e Isolda (1857–1859) de Richard Wagner, o enredo caminha para um desfecho metafórico onde Justine (Kirsten Dunst) está prestes a se casar com Michael (Alexander Skarsgard) no castelo da sua irmã Claire (Charlotte Gainsbourg), mas seu recorrente quadro depressivo tenderá a pôr tudo a perder, ameaçando arruinar a festa de casamento, aflorando as tensões familiares e fazendo-a mergulhar numa angústia profunda que tem uma direta relação com um planeta chamado Melancolia que se aproxima da órbita da Terra, ameaçando a humanidade. E por fim, o sádico filme Ninfomaníaca (2014), divido em dois longas, conta a história de uma viciada em sexo (Charlotte Gainsbourg), que é encontrada espancada e desfalecida na chuva e no chão da rua por um solitário homem de meia idade (Stellan Skarsgard), que a leva para casa e a acolhe: após acordar, a tal mulher recebe uma xícara de chá quente e começa a conversar com esse homem que a acolheu, contando-lhe em detalhes toda sua experiência com o sexo, seus fetiches, encontros e frustrações. Pairando em meio às cenas idílicas da natureza, sonhos surrealistas, sensações melancólicas e agonizantes —— cenas muitas vezes desenvolvidas em câmera lenta, diálogos longos e longas tomadas de câmera —— misturadas com uma realidade marcada por frustrações, medos, depressão e tristeza, as trilhas sonoras desses três longas-metragens nos trazem um misto de canções (algumas delas cantadas pela própria atriz francesa Charlotte Gainsbourg), sons eletrônicos incidentais graves e sombrios criados pelo compositor e designer sonoro dinamarquês Kristian Eidnes Andersen, temas eruditos do barroco e romantismo (Handel, Bach, Wagner, César Franck e Shostakovich) e o rock industrial da banda alemã Neue Deutsche Härte Rammstein.
A Ilha do Medo (Shutter Island, 2010), de Martin Scorsese
A trilha sonora deste filme estrelado por Leonardo DiCaprio e dirigido por Martin Scorsese é uma das mais recheadas de peças de compositores emblemáticos da música erudita moderna e contemporânea. A história, originalmente lançada em livro pelo escritor Dennis Lehane em 2003, é basicamente sobre uma investigação federal num antigo hospital psiquiátrico: Leonardo DiCaprio interpreta o agente federal Edward "Teddy" Daniels, que está investigando a unidade psiquiátrica Ashecliffe em Shutter Island, depois que um dos pacientes desaparece; Mark Ruffalo interpreta seu parceiro oficial; Ben Kingsley é o psiquiatra que dirige a instituição; Max von Sydow é um médico alemão que dá assistência ao diretor; e Michelle Williams é a esposa de Daniels (DiCaprio). Edward "Teddy" Daniels descobre, então, que ali são realizados diversos experimentos envolvendo lobotomia, tratamentos com psicotrópicos e técnicas de controle da mente, e, portanto, solicita acesso aos registros de tais procedimentos. Acontece que o agente policial tem sua investigação misteriosamente dificultada pelo diretor (Ben Kingsley) e pelo médico-assistente, ao mesmo tempo em que surgem diversos segredos enigmáticos e acontecimentos estranhos que fazem com que esse agente-policial comece a questionar e confrontar suas próprias memórias traumáticas, seus próprios medos, sua própria sanidade. E assim, em algum momento, esses enigmas que surgem com a tal investigação começam a se misturar com os eventos decorrentes da própria psicose do policial, levando o enredo em direção a um plot twist surpreendente: é o tipo de enredo enigmático que deixa o telespectador pensando um bom tempo depois de assistir, na tentativa de desvendar a verdade e a síntese por detrás da história. Obtendo o suprassumo da sua sempre brilhante parceria com Leonardo DiCaprio e obtendo grandes atuações dos atores coadjuvantes, Martin Scorsese cria uma obra de arte que, na verdade, mistura elementos de vários gêneros e subgêneros: suspense investigativo, suspense psicológico, cinema hitchcockiano, elementos do estilo "noir" característicos dos romances policiais de época, elementos do horror, entre outros elementos. Com um enredo surpreendentemente construído de recursos variados, a trilha sonora também acaba por refletir essa variedade. Para tanto, Scorsese convoca o grande compositor de trilhas Robbie Robertson —— também conhecido como guitarrista do The Band, grupo de rock canadense ——, repetindo a parceria que ambos já tiveram em outros clássicos dos anos 80 e 90. E Robbie Robertson, ao invés de escrever música nova para as cenas, elabora uma trilha onde apenas faz uso de trechos de uma seleção de peças, canções e temas variados, fazendo uso de uma set list de obras de vários grandes compositores de estilos diferentes dentro do espectro da música erudita moderna e contemporânea: "Fog Tropes" do compositor canadense Ingram Marshall; a moderna "Passacaglia" da Sinfonia No. 3 escrita pelo compositor polonês Krzysztof Penderecki; "Music for Marcel Duchamp" de John Cage; "Hommage à John Cage" do conceitual artista sul-coreano Nam June Paik; a peça "Lontano" do compositor húngaro György Ligeti; a peça "Rothko Chapel 2" escrita pelo indeterminista Morton Feldman; a peça "On the Nature of Daylight" escrita pelo compositor pós-minimalista alemão Max Richter; o Quarteto para Cordas e Piano em Lá Menor do romantismo tardio de Gustav Mahler; a peça "Christian Zeal and Activity" escrita pelo mestre americano do minimalismo neorromântico John Adams; "Lizard Point" do mestre da estética "ambient music" Brian Eno; a peça "Four Hymns II" para violoncelo e contrabaixo de Alfred Schnittke; entre outros excertos de outros temas e peças de outros compositores. A trilha sonora foi lançada na íntegra em 2010, pela Rhino Records.
Dark (2017-2020), de Baran bo Odar & Jantje Friese
Essa série alemã, gravada exclusivamente para a Netflix a partir de 2017, já pode ser considerada um clássico dos gêneros suspense psicológico, drama apocalíptico, sci-fi e cyberpunk. Dirigida e criada pelo roteirista Baran bo Odar e pela produtora Jantje Friese, a série narra a história de quatro famílias interligadas que residem na misteriosa e cinzenta cidade de Winden, com o ponto focal da trama ocorrendo em torno da histórica usina nuclear da cidade. A história começa quando uma das crianças de uma dessas famílias encontra um "buraco de minhoca", uma passagem no tempo que fica numa caverna abaixo da usina nuclear. Daí em diante, o sumiço das crianças levarão também os adultos às investigações complexas em relação aos seus passados e futuros, pouco a pouco revelando todos os entrelaces dentro da árvore genealógica que abrange essas quatro famílias, avançando as histórias dos personagens e seus ascendentes e descendentes tanto gerações para frente quanto gerações para trás na linha do tempo. Com uma atmosfera cinzenta e sombria, um ritmo lento e letárgico, mas com uma narrativa das mais complexas e misteriosas regada a conceitos de física quântica, viagem no tempo e uma certa numerologia ocultista, a história englobará os mistérios dessas pessoas, suas vidas duplas, suas paixões, seus medos, seus anseios e seus destinos pós-apocalípticos... e levará o espectador para uma teia de acontecimentos que mudarão sempre que algum dos personagens mexer com o tempo na tentativa de consertar o destino ou algo que deu errado no passado e/ou no futuro. As aberturas dos episódios expressam o caráter geométrico dos factrais físicos, quânticos e temporais, algo que denota bem a complexidade de uma trama que fará o espectador ter verdadeiros bugs de raciocínio e memória até começar a entender onde a história começa e termina —— sendo que a noção de origem e fim, aliás, se torna um tanto relativa dentro da complexidade do enredo. A trilha sonora foi elaborada e composta pelo aclamado compositor australiano-islandês Ben Frost, que criou diversas peças minimalistas e texturas eletrônicas incidentais mais ao estilo "dark ambient", além de selecionar vinhetas e canções de aberturas criadas pelo DJ alemão Apparat —— em colaboração com a artista austríaca Anja Plaschg, e seu projeto sonoro experimental Soap&Skin —— e pelo ensemble americano de vozes Roomful of Teeth. A trilha sonora ainda engloba o terceiro movimento da Partita para 8 vozes da compositora americana Caroline Shaw, que é uma das grandes figuras do pós-minimalismo americano —— que faz parte, inclusive, do citado ensemble Roomful of Teeth —— e que em 2013 se tornou a mais jovem compositora a ganhar o Prêmio Pulitzer, justamente através dessa sua já célebre Partita para 8 vozes. Caroline Shaw, aliás, que é uma figura bem presente aqui em nossas indicações.
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