isomonstrosity é um projeto experimental lançado pela Brassland Projects Inc. e foi gerido nos meandros do que chamam de "indie classical music" (movimento contemporâneo da música clássica independente nos EUA) pelos compositores e artistas Ellen Reid, Johan Lenox e Yuga Cohler. Ellen Reid é uma compositora erudita muito aclamada: sua ópera prism (2018), para ensemble e vozes, sobre os traumas psicológicos de uma mulher que sofreu agressão sexual, estreou na Ópera de Los Angeles em fins de 2018, e desde então tem tido sucessivas aclamações de crítica, tendo recebido o Prêmio Pulitzer de Música em 2019. Yuga Cohler tem uma carreira dupla como maestro de orquestra e engenheiro de software, tendo trabalhado para empresas de tecnologia como o Google e a Coinbase. E Johan Lenox é um produtor que estudou composição na Yale School of Music, mas acabou enveredando a carreira para o ramo da produção musical atuando com artistas pop tais como Travis Scott, Big Sean, Shawn Mendes, Teyana Taylor, Lil Nas X, Selena Gomez e Cautious Clay. Além das experiências interdisciplinares desses três colíderes do projeto, as peças foram inspiradas pelo clima distópico e pelos transtornos causados pelas quarentenas da COVID-19 entre os anos de 2020 e 2021. Estando afastados de tudo e de todos, os três integrantes resolveram criar um projeto colaborativo onde cada elemento da peça fosse gravado e elaborado de forma remota, separadamente: o objetivo era criar um trabalho híbrido de música de câmera contemporânea usando os mesmos processos de colagens e edição de samples que são usados no pop e no hip hop. Esse tipo de composição de cocriarão remota, onde os músicos gravam separadamente seus sketches enviando-os a outros músicos que vão acrescentando elementos até formar uma só peça coesa, foi uma das novidades musicais estabelecidas no período de quarentenas da COVID-19, e aqui mostra ser um processo altamente válido e criativo! Primeiramente, Ellen Reid e Johan Lenox compuseram seus esboços e encomendaram outros trechos para compositores tais como Bryce Dessner, Marcos Balter, Nina C Young, Wang Lu e Carlos Simon. Depois esses sketches foram ensaiados, trabalhados e gravados remotamente por músicos do International Contemporary Ensemble —— com cada músico, em separado, gravando sua parte remotamente. Em seguida, essas peças foram enviadas para vocalistas e músicos experimentais ambientados nos gêneros do avant-pop e do hip hop —— tais como 645AR, Danny Brown, Danny L Harle, Johan Lenox, Kacy Hill, Vic Mensa e Zacari ——, os quais adicionaram novos elementos, samples, colagens e edições para dar o retoque final. O resultado é um hiper criativo conjunto de peças experimentais que formam uma sinfonia híbrida de elementos do pop, hip hop e música de câmera contemporânea com pontuais efeitos eletrônicos que conferem ao projeto um sound design futurista e sofisticado!
★★★★¹/2 - [REACTIONS] | Various Composers - Crash Ensemble (Crash Rec., 2022)
Este álbum, recentemente lançado pelo aclamado Crash Ensemble, da Irlanda, é mais um registro a documentar um inovador processo de criação musical. O processo foi idealizado pelos músicos e pela direção do ensemble no período de quarentenas durante a sofrida fase pandêmica entre os anos de 2020 e 2021. A ideia foi contatar 17 compositores da Irlanda e de outras partes do mundo para compor uma resposta musical —— "..an honest, human and emotive response for now and the future..." —— àquele agonizante momento pandêmico que se instalara em todo o mundo. Porém, cada peça seria composta exclusivamente para o formato de duo, com variados duetos sendo formados com diferentes instrumentos pelos músicos do Crash Ensemble. Entre seus arranjos, as peças tem como ingredientes principais o uso pontual de eletrônica, o uso de extratos vocais e uma clara intenção de explorar uma gama ampla e variada de combinações timbrísticas entre os pares de instrumentos. O projeto incluiu processos de audiovisual, com cada dupla sendo filmada nos momentos das performances, e também incluiu a faceta de cada compositor documentar seu processo criativo por meio de vídeos, fotos e textos. Esse conjunto de vídeos, fotos e textos passaram a compor um material de base a ser trabalhado pela cineasta Laura Sheeran em um documentário que abordará, justamente, a temática da criação musical na pandemia —— ...abordando o fato de que os músicos do ensemble, assim como vários músicos do mundo todo, tiveram de adotar novas formas criativas de composição, interação e registro para se manterem produtivos. O resultado é um conjunto de 17 peças hiper criativas que elevam a arte da "new music" para um nível ainda mais superior em termos de conexões e conceito composicional.
★★★★¹/2 - Jennifer Higdon | Kevin Puts - Letters for the Future - Time for Three & The Philadelphia Orchestra w/ Xian Zhang (Deutsche Grammophon, 2022)
Com este álbum acima, o eclético trio de cordas Time For Three —— formado pelos violinistas Nicolas Kendall e Charles Yang e pelo contrabaixista Ranaan Meyer —— acaba de ganhar, agora em 2023, um prêmio Grammy na categoria de Melhor Solo Instrumental Clássico. O álbum inclui gravações de dois concertos escritos exclusivamente para o trio por dois dos grandes compositores americanos da atualidade, os quais, inclusive, são ganhadores do prestigiado Pulitzer Prize: Jennifer Higdon (ganhadora do Pulitzer em 2010) e Kevin Puts (ganhador do Pulizer em 2012), dois compositores com traços neorromânticos e neoclássicos e com alguma influência pós-minimalista aqui e ali... O Concerto 4–3 de Jennifer Higdon foi concluído para o Time for Three em 2007: de lá para cá, o trio estreou a obra com a The Philadelphia Orchestra sob a regência de Christoph Eschenbach em 2008, e já a apresentou dezenas de vezes com outras orquestras, só agora tendo sua primeira gravação mundial com a mesma orquestra que a estreou, agora sob a regência de Xian Zhang. E Jennifer Higdon não decepciona em seu dinâmico arsenal de recursos e ressignificações: ela inicia a peça exigindo efeitos timbrísticos com os arcos percutindo e arranhando as cordas, e com articulações divertidamente virtuosas e dançantes que vão se desembocando em pizzicatos, desenvolvimentos e improvisos harmoniosos; passa também por um bem trabalhado segundo movimento que se dá pelo contraponto e entrelace de sobreposições melódicas entre os dois violinos, o contrabaixo e os naipes da orquestra; e termina com um divertidíssimo terceiro movimento que soa como um compêndio, indo de efeitos de glissandos (efeito do deslizar dos dedos nas cordas dos violinos) aos ponteios rítmicos virtuosos abordados anteriormente, explorando novamente muitas sobreposições melódicas em meio a esses ponteios velozes, e terminando a peça com uma exposição fantástica de cordas em agudíssimo. Já a obra composta por Kevin Puts, Contact, é uma encomenda recente, gestada agora, quinze anos depois, mas também escrita exclusivamente para o trio. Trata-se de um concerto em quatro movimentos que soa, em seu total, como uma viagem épica ou uma trilha sonora: o concerto começa com "The Call", uma abertura com vocais ao estilo de um coral medieval ressignificado, praticamente soando como o início da trilha de um filme hollywoodiano, e segue com a entrada dos dois violinos e do contrabaixo em pizzicato, os quais seguem desenvolvendo o motivo melódico da abertura inicial e tendo acompanhamentos orquestrais suntuosos; depois a peça passa por um frenético segundo movimento, um Scherzo, que é arpejado tanto com arco quanto com pizzicatos; em seguida temos o terceiro movimento, Contact, que já é mais meditativo e se desenvolve através de melodias e arpejos mais melancólicos e sombrios; e, por fim, no quarto movimento, temos um gran finale chamado Convivium que começa com os violinos evocando algo próximo a uma melodia judaica (klezmer) sobre uma divertida sincopação rítmica acentuada pelo contrabaixo e pelos rompantes de metais, até que há uma repentina citação da abertura motívica que ouvimos lá no início do primeiro movimento. Um dos melhores álbuns eruditos de 2022!
★★★ - London Cello Connection - Various Composers - Ovidiu Marinescu & London Symphony Orchestra w/ Miran Vaupotić (Parma-Navona Records, 2023)
A London Symphony Orchestra é, talvez, a orquestra mais prolífica do mundo: suas gravações abrangem de trilhas sonoras —— aos montes! —— a obras que são best-sellers do repertório clássico, de projetos com bandas de rock e grandes músicos de jazz até registros de concertos com os maiores virtuoses eruditos, de projetos mais experimentais e pouco vendáveis lançados em pequenos selos até projetos mais comerciais lançados pela gigante Deutsche Grammophon, de programas direcionados a promover novas obras de jovens compositores até gravações de séries e opus completos de sinfonias e concertos de compositores já históricos. Isso porque a LSO é uma espécie de orquestra independente que, para além das parcerias filantrópicas e das formas de captação de recursos público-privados, adotou um sistema de gestão onde é o próprio conselho dos músicos quem decide quais projetos empreender. E para isso dar certo, a LSO adota um ritmo altamente producente, aproveitando todas as oportunidades para efetuar tantas quantas gravações anuais forem possíveis, gravando e lançando dezenas de álbuns em cada ano e lucrando pelo volume, quando não pelas vendas massivas individuais de trilhas sonoras e lançamentos best-sellers. De quando em quando a London Symphony Orchestra, apoiada pela filantropa Lady Hamlyn e sua fundação The Helen Hamlyn Trust ou por financiamentos e programas internos geridos pelos próprios músicos da orquestra, empreende um conjunto de gravações de novas peças de jovens compositores em ascensão, ou empreende um conjunto gravações de novas peças de compositores veteranos que decidem contribuir para o lançamento de um álbum temático... É o caso do álbum temático acima, que traz um conjunto de peças contemporâneas escritas exclusivamente para violoncelo e orquestra. London Cello Conection é um projeto do maestro croata Miran Vaupotić, também diretor artístico da gravadora PARMA Recordings, que reúne estreias de oito composições para cello escritas por sete compositores veteranos e mais uma jovem compositora em ascensão: são eles Marvin Lee Lamb (americano), John Robertson (neozelandês-canadense), a jovem compositora Katherine Price (americana), Joanna Estelle (canadense), Diane Jones (americana), L. Peter Deutsch (americano, também conhecido como um executivo-fundador de uma empresa de software), Keith Kramer (americano, guitarrista adepto do jazz) e Arthur Gottschalk (americano). Sendo Miran Vaupotić diretor artístico da PARMA Recordings e maestro residente da London Symphony Orchestra, o projeto logo se tornou viável com o aceite do célebre violoncelista romeno Ovidiu Marinescu para ser o intérprete das peças. O álbum foi gravado em junho de 2022 sob a ótima acústica da St. Luke's Church, antigo templo anglicano datado de 1733 que está localizado na Old Street de Londres e foi restaurado para se tornar o home office dos programas de gravação da London Symphony Orchestra. Os estilos estéticos das obras são preponderantemente próximos ao neorromantismo americano, com alguns ecos de modernismo e minimalismo aqui e ali...
★★★★ - Lotta Wennäkoski: Sigla | Flounce | Sedecim - Sivan Magen & Finish Radio Symphony Orchestra with Nicholas Collon (Ondine, 2023)
Lotta Wennäkoski é uma compositora finlandesa que se distingue pelo vocabulário modernista regado a ruídos e efeitos timbrísticos, sendo dotada de um estilo de expressionismo abstrato luminoso, com particular predileção por efeitos elaborados. Neste álbum acima, pois, o maestro britânico Nicholas Colon e a Finish Radio Symphony Orchestra (RSO) registram três obras recentes da originalíssima compositora: Flounce (2017) para Orquestra, Sigla para Harpa e Orquestra (2022) e Sedecim (2016) para Orquestra. Flounce foi estreada em 2017 na ocasião do BBC Last Night of the Proms com a BBC Symphony Orchestra sendo conduzida pelo célebre maestro finlandês Sakari Oramo. Já a peça Sigla é um concerto para Harpa e Orquestra concluído em 2022 para a Orquestra Sinfônica da Rádio Finlandesa a pedido do maestro titular Nicholas Collon, uma obra que a compositora teve a ideia de escrever baseada na proficiência técnica da harpista Sivan Magen: "nesta obra, a harpa é o motor que acende as luzes da orquestra", é como como explica a própria compositora ao referir "luzes" como "timbres" e ao abordar a harpa de forma mais estendida e modernista, para muito além daquelas timbrísticas clássicas de harpas idílicas e pastorais. A obra Sedecim, por sua vez, tem uma narrativa interessante e funciona como uma reflexão musical de profundidade histórica. Sedecim (dezesseis em latim) foi concluída em 2016 sob encomenda da Orquestra Sinfônica da Academia Sibelius e é inspirada no ano de 1916, um ano antes da Finlândia se emancipar da Rússia e proclamar sua independência, isso ainda em plena Primeira Guerra Mundial: a compositora lembra que aquele ano marca o início do florescimento da Finlândia, sendo aquele o primeiro ano da Orquestra Sinfônica da Helsinki Academy of Music (posteriormente renomeada Academia Sibélius), sendo o ano de inauguração do Museu Nacional da Finlândia e comemora o fato das mulheres já estarem conseguindo ocupar cargos importantes nas cátedras à época, e, portanto, ela escreve o primeiro movimento dessa sua epopeia musical inspirada na coleção de poemas Dikter que a poeta expressionista Edith Södergran lançou naquele ano de 1916, na Carélia Finlandesa. Mas além de uma reflexão musical em memória desse renascer da Finlândia, Sedecim também evoca as tragédias de uma guerra que ainda agonizava outros países da Europa: o segundo movimento é claramente sombrio, meditativo e nos coloca imerso em pianíssimos que quase beiram ao silencio numa demonstração sonora do luto que ainda hoje assola a zona vermelha localizada no nordeste da França, onde há locais completamente inabitáveis com restos humanos, produtos químicos, perigo de minas terrestres e armas não detonadas. O terceiro movimento de Sedecim, contudo, retoma os ares de esperança através de inflexões sobre temas do belíssimo segundo movimento da Quinta Sinfonia do compositor finlandês Erkki Melartin, cuja estreia também se deu naquele ano de 1916. Mais uma mostra da riquíssima música erudita finlandesa!
★★★★ - Neil Thomson & Goiás Philharmonic Orchestra - Projeto Brasil em Concerto.
Em 2022, a Orquestra Filarmônica de Goiás, sob a batuta de Neil Thomson, iniciou uma série de registros que abordará os principais compositores que enriqueceram a música sinfônica brasileira no século 20. E ainda que as obras abordadas sejam de compositores brasileiros que foram expoentes do modernismo nacionalista ainda no século 20 —— lembrando que aqui neste post nosso foco maior é a música contemporânea escrita nessas primeiras décadas do século 21 ——, vale ressaltar aqui a importância que esse tipo de projeto tem enquanto registro do desenvolvimento da modernidade musical erudita ocorrida no Brasil, uma vez que muitas das obras desses compositores ainda hoje carecem de uma maior difusão e reconhecimento —— mesmo aqui em nossos circuitos nacionais. Ou seja: de certa forma, falar de compositores como Guerra-Peixe e Claudio Santoro é, ainda hoje, falar de um tipo de repertório que, mesmo quando há peças que já não soam esteticamente contemporâneas em comparação com peças escritas nos últimos tempos por compositores dos circuitos americanos e europeus, para nós é temporalmente "contemporâneo" pelo fato de ter conferido modernidade à nossa música sinfônica e pelo fato de ser pouco explorado nos programas anuais de concertos e novas gravações. Claudio Santoro (1919—1989), por exemplo, tem obras moderníssimas e é um dos compositores brasileiros com reais capacidades de conquistar maior reconhecimento, aqui e no exterior —— basta-se apenas que se dê a atenção devida. É o que propõe o Projeto Brasil em Concerto. A depender da Orquestra Filarmônica de Goiás e do seu maestro, então, nós teremos um novo despertar em relação a esse rico espectro musical brasileiro. Recebendo uma injeção de ânimo e renovo do governo estadual na última década, a Orquestra Filarmônica de Goiás praticamente renasceu do limbo, investiu na valorização dos músicos, trouxe um maestro com visão e experiências internacionais para sua direção musical e agora desfruta de um duradouro contrato com o selo Naxos, uma das maiores gravadoras de música clássica do mundo. Dando vazão no projeto Brasil em Concerto, resultado de uma parceria entre o Ministério das Relações Exteriores e o Governo de Goiás por meio da Sedi (Secretaria de Estado de Desenvolvimento e Inovação), o maestro britânico Neil Thomson continuará, então, a gravar uma série de sinfonias e concertos que marcam a modernidade do desenvolvimento da música sinfônica brasileira. Por enquanto já foram gravadas as Sinfonias No.1 & 2 de Guerra-Peixe, e também as Sinfonias de No. 5, 11 e 12 de Cláudio Santoro, gravações essas que tem recebido muitos elogios positivos da crítica internacional. Fala-se em registrar, pela Naxos, a integral das 14 sinfonias de Santoro... Fiquemos atentos aos próximos lançamentos e aos próximos capítulos do projeto!
★★★★★ - Michel van der Aa - Upload (2023) ("digital opera",Disquiet/ Boosey & Hawkes)
Olhando no horizonte da contemporaneidade, há muito tempo que o gênero da ópera já passou da fase das estéticas clássicas com libretos baseados em temáticas folclóricas e mitológicas, e figurinos bufantes e antigos, para uma fase contemporânea onde se aborda os dramas reais desses últimos tempos já marcados por anomalias sociais, avanços tecnológicos, distopias, questões cibernéticas e perda endêmica do sentimento de humanismo. Tendo bebido das fontes modernistas de compositores como Diderik Wagenaar, Gilius van Bergeijk e Louis Andriessen, o compositor holandês Michel van der Aa representa um estágio adiante na linha evolutiva da estética modernista europeia. Para além das suas peças escritas estritamente para orquestras e ensembles, ele tem sido um dos destaques mundiais do gênero do teatro musical, bem como da interseção entre música erudita contemporânea e videoarte, tendo dirigido diversos curtas-metragens e projetos de audiovisual que atestam seu foco nessa confluência contemporânea entre arte conceitual, imagem, dança, cenografia, teatro e música. Em suas últimas óperas, as temáticas da realidade virtual e da inteligência artificial têm sido constantemente perseguidas. Agora em 2023, por exemplo, o compositor acaba de lançar o álbum com a gravação da sua "ópera digital" Upload, encomendada em 2021 pelo Ensemble Musikfabrik para ser encenada na Dutch National Opera, na Cologne Opera e no Bregenzer Festspiele, tendo atravessado o Atlântico para ser performada também no Park Avenue Armory, em New York —— e contou com altos elogios emitidos pelos respectivos públicos e críticas. A ópera conta a história de uma filha cujo pai faleceu e teve suas memórias "carregadas" na computação em nuvem, a fim de alcançar a consciência eterna e a imortalidade como um "ser digital": o enredo questiona questões morais e filosóficas tais como destino, identidade, o custo da imortalidade e o impacto que a inteligência artificial tende a desempenhar em nossas vidas. A história é contada por meio de dois formatos: por meio de um filme pré-gravado e por meio de dois cantores de ópera ao vivo. Tendo como plano de fundo uma música que hibridifica a escrita europeia modernista com ecos minimalistas e efeitos eletrônicos, podemos considerar que Michel van der Aa de fato consegue levar o gênero da ópera para um plano muito superior com esse conceito contemporâneo de sound design futurista. Da mesma forma, todo o figurino e a cenografia projetada para capturar as temáticas e os movimentos dos personagens no palco são elaborados com um conceito de design visual futurista, incluindo até projeções em hologramas para simular a conversa dos personagens reais com o personagem virtual que habita no plano imortal da inteligência artificial e suas memórias. Michel van der Aa simplesmente nos mostra que a ópera, de fato, evoluiu!
John Luther Adams é um compositor ambientalista —— ganhador de um Grammy e um Pulitzer em 2014 pela obra Become Ocean —— que procura fazer música através de impressões e sons que ele coleta na natureza: compondo orgânicas landscapes inspiradas no mar, no vento, no canto dos pássaros, nos sons das florestas, nas geleiras, e nas montanhas e desfiladeiros do Alasca (onde ele e sua família se instalaram, numa cabana construída nas planícies a noroeste de Fairbanks com vistas para a floresta boreal e os picos da Cordilheira do Alasca). Frequentemente, o compositor também se aventura em viagens por lugares inóspitos localizados em outros países, coletando impressões sonoras em lugares que incluem parques nacionais, cavernas e desertos. Sempre munido de ouvidos atentos e aparelhos de gravação de alta sensibilidade para captar esses sons e impressões, a constante de John Luther Adams tem sido efetuar muitas gravações de campo que posteriormente lhes sirvam como inspiração para compor peças onde as sensações que a natureza transmite sejam transcritas por meio de arranjos orgânicos elaborados para orquestras, conjuntos de cordas e ensembles. Essas gravações de campo, no entanto, ficam armazenadas, datadas e catalogadas em arquivo, e raramente são usadas para outra finalidade depois de serem usadas como inspiração. Neste álbum acima, porém, John Luther Adams decidiu não usar ensembles ou orquestras e usou estritamente uma gravação de campo para transportar o ouvinte para um estado sensorial meditativo e etéreo. Ele usa gravações que ele captou no Ártico no verão de 1989 através de uma pequena harpa eólica (harpa de vento) —— lembrando que ele já usara a inspiração das harpas eólicas na sua peça The Wind in High Places (2015), para quarteto de cordas —— e edita cinco peças com a mesma duração de 10:30 minutos, com cada uma das peças evocando um estado físico e sensorial do vento: Vento Catabático, Vento da Montanha, Vento da Tundra, Vento do Cânion e Vento Anabático. Essas diferentes formas de vento trazem consigo propriedades físicas e micro sensoriais diferentes que, ao passar pelas cordas da harpa eólica, produzem diferentes combinações quânticas de harmônicos e ondas idiofônicas, levando o ouvinte para o campo da percepção minuciosa e para o estado das sensações etéreas. Aqui temos um tipo de obra onde o ouvinte precisa fechar os olhos e precisa querer sentir os silêncios e as vibrações.
★★★¹/2 - Marcus Vergette - Tintinnabulation (Nonclassical, 2023).
Marcus Vergette é contrabaixista de jazz e compositor interdisciplinar, mas também é um escultor fascinado por sinos. Seu projeto Time and Tide Bells, por exemplo, compreende em sinos fixados na costa do Reino Unido e são acionados pela ação do mar conforme o sobe nível da maré. O primeiro sino foi instalado em 2009 em Appledore (Devon) e depois seguiram-se instalações desses sinos em Morecambe (Lancashire), nas Ilhas Ocidentais, em Londres, em Aberdyfi (País de Gales)... e o projeto seguiu e segue ativo com instalações de mais sinos em outras costas marítimas. Neste álbum acima, Tintinnabulation, lançado agora em 2023 pelo selo Nonclassical, Vergette nos mostra duas curiosas peças criadas a partir das gravações de campo que ele realizou nos locais onde seus sinos estão instalados: essas peças compreendem em justaposições dos sons emitidos por esses sinos e dos sons ambientes coletados nessas costas marítimas —— tais como sons do vento, sons de pássaros, sons da água, sons das embarcações, sons das pessoas e etc —— com improvisos livres emitidos a partir de uma instrumentação com piano (Mathew Bourne), sax tenor (Harry Fulcher), sax alto (Rox Harding) e seu próprio contrabaixo. O resultado se dá num tipo de música incidental que mistura música ambiente, livre improviso e música erudita contemporânea, sendo esse mais um exemplo de como o interessantíssimo selo londrino Nonclassical —— gerido por Gabriel Prokofiev (neto do legendário compositor russo Sergei Prokofiev) —— tem contribuído com a música contemporânea através de álbuns e projetos que desafiam classificações. O álbum Tintinnabulation foi lançado em 12 de Março de 2023 numa apresentação ao vivo num evento de temática climática com foco no efeito estufa, evento realizado no Barbican Conservatory.
★★★★¹/2 - PUBLIQuartet - What Is American (Bright Shinny Things, 2022)
Este álbum acima deu ao PUBLIQuartet sua segunda indicação ao Prêmio Grammy na categoria Best Chamber Music/Small Ensemble Performance: em 2020, eles obtiveram a primeira indicação já com o álbum de estreia Freedom & Faith (Bright Shinny Things, 2019). Sendo um dos quartetos de cordas americanos mais aclamados da atualidade, o PUBLIQuartet é ambientado na seara da música erudita, mas transcreve para seus arcos e cordas elementos advindos de uma variedades de gêneros musicais. Neste álbum acima, What Is American (Bright Shinny Things, 2022), os músicos do quarteto exploram as conexões entre elementos da música erudita moderna e contemporânea com elementos do blues, jazz, rock e música improvisada, tendo como inspiração as essências afros e indígenas que formam a gênese da cultura e da música americana. O que é ser americano? Esse é o tema do álbum, que tem o rosto da ativista e abolicionista americana Harriet Tubman (1822—1913) revelado por detrás de uma página em branco rasgada. E essa temática reflexiva está muito bem embasada pela escolha de um repertório diferenciado talhado com releituras e arranjos aventurosos: inclui uma versão descolada, estendida e improvisada do Quarteto de Cordas No.12 - 'American', Opus 96, escrito pelo compositor tcheco Antonín Dvorak em 1893 durante sua estadia nos EUA; inclui excertos do poeta Oliver Wendell Holmes (1809—1894) e releituras de canções populares compostas ou reveladas por figuras-chave da história da música e cultura americana como a cantora de blues Ida Cox (1896—1967), a cantora de funk e R'n'b Betty Davis (1944—2022), a cantora de pop e rock Tina Turner (1939— ) e a cantora folk Rhiannon Giddens; e, por fim, inclui versões eruditas de standards e peças compostas por músicos de jazz tais como Fats Waller, Ornette Coleman, Roscoe Mitchell, Alice Coltrane e o pianista contemporâneo Vijay Iyer. O fato é que os arranjos, improvisos e inflexões acabam por transformar esses temas e canções em criativas peças cheias de momentos inteligentes e espontâneos! O PUBLIQuartet praticamente transcreve os mais variados elementos e patterns da cultura americana evidenciados por esses temas e canções para esse arranjo e formato de quarteto de cordas com viés no improviso e na música erudita contemporânea. "What Is American is ultimately a call to ponder the kaleidoscope of composers and diverse genres that make up America’s rich musical history" —— é como os músicos do quarteto explicam o projeto.
★★★★¹/2 - Jörgen van Rijen & Alma String Quartet - Mirrored in Time (BIS, 2023)
Duas das características da música erudita dos últimos tempos são as ressignificações contemporâneas de elementos do passado —— das estéticas medieval, barroca, clássica, romântica e do modernismo inicial —— em inéditas obras autorais e as releituras e reimaginações a partir de peças e obras-primas já tarimbadas por compositores históricos. Essas são duas características do vigente pós-modernismo musical erudito. Neste álbum acima temos, então, um projeto de música de câmera que é interessante por ao menos dois motivos: pela imaginação ou reimaginação que compositores contemporâneos tiveram a partir de obras-primas de compositores históricos ambientados em diversas estéticas do passado; e por se tratar de um álbum protagonizado por um trombonista, quando sabemos que o trombone nunca foi um instrumento usual na música de câmera. Quem idealiza o projeto é Jörgen van Rijen, trombonista holandês da Orquestra Real do Concertgebouw. Com diversos álbuns lançados, Jörgen van Rijen tem sido, inclusive, um dos prolíficos trombonistas a aumentar a difusão de arranjos e obras inéditas direcionados para esse instrumento. O projeto consiste na gravação de peças inéditas que são curiosamente "espelhadas" por peças arranjadas de compositores históricos, sendo que a intenção é que cada compositor contemporâneo envolvido crie um arranjo sobre uma peça do passado e também crie uma peça inédita com espelhamento correspondente, nos apresentando um conceito que realmente faz jus ao título "Mirrored in Time" (espelhado no tempo, em tradução literal). O pós-minimalista americano Nico Muhly, por exemplo, aplica um arranjo sobre uma peça do renascentista inglês John Dowland e cria uma outra peça inédita espelhada nesse compositor. O pianista de jazz e compositor búlgaro Dimitar Bodurov cria um arranjo sobre excertos do catálogo "Mikrokosmos" de Béla Bartók, e depois cria uma outra peça com colagens inspiradas nos legendários estudos de cânticos folclóricos de Bartok. O compositor holandês Jacob TV elabora arranjos para uma peça de Gabriel Fauré e compõe uma outra peça inédita baseada nesse compositor francês do século 19. Já o guitarrista e compositor alemão Florian Magnus Maier se espelha em Erik Satie: aplicando arranjos sobre uma peça desse compositor impressionista e criando uma outra peça inédita espelhada. Enquanto o compositor holandês Martijn Padding, da mesma forma, se espelha em Robert Schumann. Ainda temos peças inéditas dos compositores contemporâneos Bryce Dessner e Chiel Meijering, que cria uma peça para trombone e cordas baseando-se em elementos do rock. Este álbum se torna ainda mais curioso pelo fato desses arranjos e dessas inéditas peças espelhadas terem sido escritos para a inusual combinação de trombone com quarteto de cordas. Idéia genial do trombonista Jörgen van Rijen, que convida para a empreitada o igualmente versátil Alma String Quartet.
★★★★ - Quasar Saxophone Quartet - Various Composers - Disque Bleu (2022)
Usando saxes alto, soprano, sopranino, tenor, barítono e flautas, o Quasar é um quarteto de saxofones de Montreal, Canadá, que se dedica na criação e difusão de música contemporânea, incluindo música erudita, jazz, eletrônica, música improvisada, experimentações e aventuras afins. Sendo um dos destaques da música instrumental no campo da música nova feita no Canadá, em 2022 o quarteto ganhou com este álbum acima o prestigiado Prix Opus na categoria de Melhor Álbum de Música Contemporânea/ Eletroacústica do Ano, prêmio conferido pelo Conseil québécois de la musique (CQM), de Quebec. Este álbum, sexto disco do Quasar, é um documento sonoro interessante principalmente pelo fato de ser dedicado ao registro de peças dos compositores Ofer Pelz, Yannick Plamondon, Émilie Girard-Charest, Katia Makdissi-Warren e Michael Oesterle, todos estabelecidos em Quebec, cidade que comporta um dos cenários de música contemporânea criativa mais movimentados do Canadá. Sendo esses compositores ecléticos, vanguardistas e cosmopolitas, as obras e as interpretações não nos desapontam em suas explorações: a aventura vai de sobreposições melódicas a livres improvisos abstratos, de elaborados efeitos timbrísticos ao uso de técnicas estendidas (com golpes de língua, chiados, notas brincalhonas que lembram o grasnar ou cacarejar de pássaros, sopros e articulações não convencionais, exploração de harmônicos, multifonias...), passando também por criações que exploram tanto a espontaneidade quando a música previamente escrita —— as aventuras, enfim, são abundantes! O álbum acima foi gravado em outubro de 2020 na Chapelle Historique du Bon-Pasteur, em Montreal, e foi lançado em junho de 2022 na plataforma do Bandcamp. Uma porta aberta um tanto propícia para o ouvinte conhecer as aventuras sonoras que esse tipo de formação com naipe de saxes nos oferece.
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