A música da pianista Satoko Fujii —— que intercala momentos onde a improvisação livre ganha uma energia mais hardcore com outros momentos de improvisos mais dinâmicos e contemplativos, além dos seus ricos arranjos elaborados para orquestra e outros ensembles —— é o exemplo perfeito de como a arte, em sua essência, não precisa necessariamente estar nos trending tops das redes sociais, não precisa necessariamente estar listada em rankings e enquetes mercadológicas e nem precisa necessariamente ser replicada em posts com centenas de views ou milhares de likes para se alcançar um público fiel e uma crítica antenada. Basta-se apenas que o artista aproveite o tempo presente para produzir tudo o quanto sua criatividade permitir, divulgue sua arte musical dentro dos seus limites (de tempo, espaço e dinheiro) e deixe que as peças, as obras e os registros ganhem vida própria nas mentes e corações das pessoas. E no caso de Satoko Fujii, estamos falando de uma artista independente de dinamismo e criatividade inesgotáveis! Com ao menos três décadas de renome, trata-se de uma pianista altamente visionária e super producente, uma das artistas de jazz mais importantes e aclamadas do nosso tempo, ainda que essa aclamação não alcance a amplitude que se vislumbra no mainstream, ainda que essa aclamação venha somente de críticos de magazines mais especializadas, revisores e jornalistas mais antenados no underground, além de blogueiros e ouvintes dotados de ouvidos mais experimentados e com gostos mais outsiders. Recentemente, por exemplo, o fato da pianista ter aproveitado o período pandêmico para lançar mais de uma dezena de álbuns e atingir a incrível marca de 100 álbuns lançados na carreira —— sendo alguns desses novos álbuns registrados com piano solo, além dos duos e trios com os poucos instrumentistas que ela pôde convidar nesse período de confinamento ——, foi um fato que ganhou substancial notoriedade, com destaque no New York Times e em várias outras publicações de críticos, jornalistas e blogueiros especializados. O fato constante, aliás, é que mesmo em anos anteriores à pandemia, com uma frenética agenda de shows e concertos, Satoko Fujii sempre teve ao menos três ou quatro registros prontos pra sair do forno, de forma que ao esmiuçarmos sua discografia encontramos registros entusiasmantes em praticamente todos os anos das últimas duas décadas —— pelo menos...! A criatividade musical inesgotável de Satoko Fujii, portanto, parece surtir em registros tão bons que os próprios álbuns falam por si só: seus álbuns tem energia e momentos reveladores o suficiente para se alcançar a crítica e o público que não se deixa adormecer pela zona de conforto daquela palatividade mainstream que relaxa, sim,... mas não instiga, não perturba... —— afinal de contas, sabemos que precisamos do palatável para fechar os olhos e relaxar, mas também precisamos de algo que nos abra estes olhos, que nos instigue, que nos inquiete, que nos faça refletir e que nos proporcione uma fruição artística mais conceitual, quando não intensa. Outro sinal de que a pianista tem inesgotáveis recursos criativos e bom trânsito nos circuitos do underground do jazz e da música improvisada é a quantidade de parcerias, conexões, duetos e ensembles que ela empreende com improvisadores de ao menos três continentes: japoneses, europeus e americanos. Nos últimos tempos, então, Satoko Fujii tem combinado ao menos três fatores que já são um tanto suficientes para o sucesso de um músico de vanguarda: criatividade e produção constantes; fãs fiéis e críticos antenados em seu trabalho; e conexões novas e duradouras com outros músicos. Abaixo, lhes trago dois dos seus mais recentes lançamentos e também aproveito o ensejo para passear por sua biografia e discorrer sobre sete facetas e momentos da sua carreira que mais podem impressionar o fã de jazz que ainda não a conhece amplamente!
Nascida em 1958, a improvisação chegou bem cedo ao conhecimento da pequena Satoko Fujii. Ainda criança, depois dos seis anos de idade, a menina começou a aprender piano erudito e já na adolescência desenvolve um gosto incomum para o improviso, influência que veio do seu professor Koji Taku, um pianista e compositor de música erudita que era grande entusiasta de jazz. Mas seus estudos de jazz mesmo só vieram mais tarde com o professor e pianista Fumio Itabashi, que já tocara com Elvin Jones e Ray Anderson. Em 1985, aos 23 anos de idade, Satoko partiu para os EUA para aproveitar uma bolsa na Berklee College of Music, onde foi aluna de Bill Pierce. Graduada, voltou ao Japão onde tocou em alguns clubes de Tokio e Yokohama e lecionou na Yamaha Popular Music School. Foi um período de quase sete anos que se passaram, nos quais a repercussão do nome de Satoko Fujii ficou limitada ao cenário local do jazz e da música improvisada em Tóquio: chegando a trabalhar, neste período, com grupos como Tobifudo, Teruaki Todo e com o saxofonista Joseph Jarman, um dos "cabeças" da AACM nos EUA. Neste período Satojo Fujii também fez música para televisão e para uma empresa de software. Em 1993 voltou aos EUA, dessa vez para cursar um período de pós-graduação no New England Conservatory of Music, onde recebeu o Graduate Diploma in Jazz Performance em 1996. O ano de 1996, aliás, seria particularmente importante e revelador. Nesta fase, Satoko pôde absorver idéias de alguns dos maiores mestres do jazz que lecionavam no New England Conservatory: incluindo George Russell, Cecil McBee, Mat Maneri e Paul Bley, que participou do seu álbum de estréia, Something About Water (Libra, 1996). É em 1996 que ela também funda seu próprio selo, Libra Records, e lança seu primeiro registro de piano solo, intitulado "Indication". A partir daí, os sucessos vieram naturalmente: dentre os primeiros projetos que receberam distinção da mídia especializada destaca-se, também, os duetos com seu esposo, o trompetista Natsuki Tamura, no álbum How Many? (Leo Lab, 1996), e sua estréia no formato big band com a Satoko Fujii Orchestra New York. Transitando entre o cenário jazzístico-experimental da Downtown de N.Y.C e o cenário do noisecore japonês, Satoko Fujii seria, portanto, a pianista mais dotada de exuberância, explosão e robustez dentre os pianistas da free music, levando toda a energia do punk, noise e hardcore rock para as teclas do piano e sendo, portanto, uma pioneira desse avant-garde mais hardcore ao lado de figuras como John Zorn, Ikue Mori e Otomo Yoshihide. Abaixo, alguns momentos e facetas marcantes da sua carreira exemplificados sempre por registros que são fora de série!
1 - Dueto com Paul Bley - Something About Water (Libra Records, 1996). Este álbum registra o encontro de Satoko Fujii, uma proeminente jovem pianista que seria marcada por sua energia visceral, e seu então professor Paul Bley, um já veterano mestre do free jazz que ficou conhecido por seu estilo pianístico de colorido lírico e cristalino, dotado de um intrigante impressionismo abstrato. Registros a quatro mãos, com dois pianos, são interessantes porque as sonoridades das teclas se entrelaçam e se embaralham para nos fornecer uma viagem musical fantástica de várias notas e tons que se conflituam, se conversam, se misturam e que formam cores de variadas matizes tonais. Satoko Fujii não evidencia aqui aquele seu toque hardcore que a tornaria conhecida como uma das pianistas mais enérgicas do free jazz contemporâneo. Ela segue mais na linha do impressionismo abstrato do mestre. Sendo assim, em alguns momentos sentimos que as interações pianística a quatro mãos, principalmente nas teclas de registro médio e agudo do piano, aqui soam como se fossem belos pingos de chuva, uma chuva serena onde cada pingo que se percute no chão soa como uma nota cristalina e colorida. Em outros momentos, Paul Bley e Satoko Fujii, inspirados pelas técnicas estendidas de piano preparado a La Cage, também exploram as próprias cordas que ficam dentro da caixa de ressonância do piano, por vezes tangendo a cordas com as mãos para obter timbres inesperados, timbres que também se entrelaçam para nos fornecer uma interação brilhante e curiosa entre os dois performers. Esse registro sacramenta, pois, a influência de Paul Bley sobre a alma criativa de Satoko Fujii, uma influência permanente que ficaria mais perceptível em seus reveladores registros de piano solo e piano-duo, nos fornecendo um contraste com a energia hardcore e as ruidosidades noisecore que ela exploraria em outros formatos. Mas Satoko Fujii só voltaria a registrar performances semelhantes, com dois pianos a quatro mãos, muito tempo depois: vide seus duetos com a pianista americana Myra Melford e com o pianista australiano Alister Spencer. O dueto de pianos com Myra Melford é, aliás, um registro muito rico em dinâmicas e sonoridades!
2 - Piano-trio com o contrabaixista Mark Dresser e o baterista Jim Black. Em 1997 Satoko Fujii surge com um fantástico trio com o contrabaixista Mark Dresser e o baterista Jim Black, um piano-trio especializado em interações de improvisações livres e temas pré compostos. Com este trio ela lança o álbum Looking Out Of The Window (Ninety-One, 1997), já mostrando uma identidade própria marcada por influências japonesas, pela junção de partes escritas com partes em livres improvisos, ataques explosivos em acordes cheios, partes em uníssono em contrastes com as partes improvisadas, uma forte e incomum exploração de notas e acordes cheios nas teclas mais graves, e quando ela não soa explosiva, ela explora uma incomum melodiosidade cristalina nas teclas agudas —— já transparecendo um tipo de dinamismo que seria sua principal característica. Essa identidade logo chamou a atenção de John Zorn, que logo a convidou para lançar um registro pelo selo do qual é proprietário: a excelente gravadora Tzadik Records. Na Tzadik, então, Satoko Fujii lançou com este seu trio o ótimo álbum Kitsune-Bi, gravado em 1999. O que se presencia, aliás, neste registro interessante lançado pela Tzadik são três formações interacionais trabalhadas tanto com esmero quanto com liberdade: o citado trio com o contrabaixista Mark Dresser e o baterista Jim Black; um duo de puro lirismo com a saxofonista Sachi Hayasaka; e, por fim, as próprias improvisações em formato solo da pianista. Ademais, com esse seu trio fantástico Satoko Fujii lançaria mais cinco registros: TowardWest" (Enja, 2000), Junction (EWE Records, 2001), Bell The Cat! (Tokuma Japan Communications, 2002), Illusion Suite (Libra Records, 2004) e Trace A River (Libra Records, 2008) —— todos de audição obrigatória para quem gosta de piano-trios! E voltar-se no tempo para ouvir esse trio é necessário, visto que a pianista não exploraria esse formato de piano-contrabaixo-bateria muitas vezes depois.
3 - O enérgico Satoko Fujii Quartet e outros combos com músicos japoneses. O contato com a música de Satoko Fujii também é uma porta aberta para se conhecer outros excelentes músicos das cenas de música improvisada e experimental do Japão! Além do recorrente dueto de trompete e piano que ela passou a empreender com seu marido, o trompetista Natsuki Tamura, a pianista também daria ênfase na formação de um emblemático quarteto tendo o próprio Natsuki Tamura ao trompete, Takeharu Hayakawa ao contrabaixo e o impressionante Tatsuya Yoshida na bateria. Eventualmente, conforme os compromissos desses músicos do quarteto foram se intensificando, Fujii também daria continuidade nos trabalhos da banda contando com a participação de outros nomes das cenas do jazz e da música experimental das cidades de Tóquio e Kobe tais como o violinista Keisuke Ohta, o contrabaixista Norikatsu Koreyasu e o baterista Takashi Itani. Interessante esse quarteto porque trata-se de uma das bandas de free jazz mais enérgicas das últimas décadas: é nela que as influências e elementos da música experimental japonesa se tornam ainda mais conhecidos, principalmente as influências do noisecore japonês —— estética musical também conhecida como "japanoise"... ——, que traz uma mistura radical de free improv, rock hardcore, ruídos extremos e "industrial music", incluindo algumas inserções de improvisos vocais extremos pra apimentar o molho —— ...ao estilo de Keiji Haino, diga-se de passagem... Ainda que seja um quarteto de free jazz acústico —— sem a presença ensandecida das guitarras ultra eletrificadas, e com apenas o contrabaixo, por vezes, sendo elétrico ——, a energia hardcore característica da psicodelia ultra barulhenta do japanoise fica bem aparente em muitos momentos das performances explosivas e viscerais da banda. Mas há também momentos minimalistas e contemplativos. No geral, também trata-se de um quarteto que soa um tanto dinâmico e rico em abordagens. Os registros desse enérgico Satoko Fujii Quartet podem ser apreciados nos seguintes álbuns: Vulcan (Libra Records, 2001), Minerva (Libra Records, 2002), Zephyros (NatSat Music, 2003), Angelona (Libra Records, 2005), Bacchus (Muzak, Inc., 2007) e Live at Jazz Room Cortez (Cortez Sound, 2017). Ademais, Satoko Fujii também fundaria uma outra banda com seus amigos japoneses e com seu marido, o trompetista Natsuki Tamura, chamada Gato Libre, banda na qual deixa de lado esse tipo de música improvisada mais hardcore e adota procedimentos composicionais mais comedidos, uma sonoridade acústica mais apegada ao "folk" e até adota tons mais humorísticos: até sentimos a presença de resquícios do flamenco, klezmer, música tradicional japonesa e de outros tipos de músicas tradicionais, com a pianista adotando o uso do acordeom no lugar do piano, além de contar com a guitarra acústica ou violão de Kazuhiko Tsumura e com contrabaixo acústico de Norikatsu Koreyasu. Por fim, uma outra formação interessante e distinta na discografia de Satoko Fujii é seu duo Futari com a vibrafonista e marimbista Taiko Saito: nesse duo, ambas as instrumentistas abordam ambiências e interações não apenas com as possibilidades melódicas e convencionais dos mallets e das teclas, mas com toda a miríade de sons percussivos e ruídos que esses instrumentos produzem, incluindo através do uso de piano preparado e objetos.
4 - Dueto hardcore com o baterista Tatsuya Yoshida. Este duo é emblemático! Fazer uma revisão pela carreira e obra de Satoko Fujii sem destacar seu duo explosivo com o baterista Tatsuya Yoshida seria no mínimo uma tarefa incompleta —— para não chamar de descaso. Trata-se de um combo breve, mas ao mesmo tempo marcante! Aqui já estamos falando de mais um formato no qual a pianista se inspira na cena da música experimental do Japão, e talvez aqui ela o faz com ainda mais vigor(!): ela toma um caminho mais explosivo, totalmente hardcore, inspirando-se numa verve roqueira mais ruidosa, levando para as teclas do piano toda aquela energia explosiva presenciada nas ruidagens e experimentações barulhentas do japanoise. O duo evidencia uma entusiasmante e inédita interação entre piano e bateria —— sem contrabaixo —— onde os beats das baquetas explosivas de Tatsuya Yoshida se conversam, se contrapõem e se conflituam com os percussivos "martellatos" nas teclas graves do piano de Satoko, evidenciando, também, passagens onde a bateria fraseia, acompanha e conversa em uníssonos com cada nota do fraseamento pianístico, além de outras passagens com efeitos cintilantes produzidos pelas misturas de sons dos pratos da bateria com as teclas médias e agudas do piano, entre outras interações e efeitos arrebatadores. Como se não bastasse, o duo ainda usa, ao mesmo tempo de todos esses sons cacofônicos e explosivos, inexplicáveis improvisos vocais e outros ruidosos efeitos eletrônicos. O duo lançou o registro Toh-Kichi = 藤吉 pela Les Disques Victo em 2002, e em seguida a pianista e o baterista foram imediatamente cooptados por John Zorn para que o próximo lançamento fosse pelo selo Tzadik, convite que gestou o igualmente fantástico álbum Erans (Tzadik, 2004). Mais recentemente, 15 anos depois, Satoko Fujii e Yoshida Tatsuya registraram o retorno do duo no ótimo álbum Baikamo (Libra Records, 2019). Duo emblemático!
5 - Parcerias e conexões intercontinentais. Especialmente rico e variado é o leque de parcerias que Satoko Fujii empreende com improvisadores e jazzistas do cenário underground/ experimental da cena Downtown de N.Y.C, e também de outros cenários. Em 2005, por exemplo, ela convidou o versátil guitarrista Elliott Sharp para participar do registro Natsuki Tamura + Elliott Sharp + Takayuki Kato + Satoko Fujii - In The Tank (Libra Records): nesse disco, constata-se alguns dos momentos mais ruidosos e densos de toda sua discografia, onde a guitarra do americano se conversa e se duela com a guitarra do japones Takayuki Kato —— um registro, portanto, com duas guitarras ultra eletrificadas, para quem gosta de uma livre improvisação mais hardcore, ultra psicodélica e experimental. Outras parcerias e duetos incluem: com o violinista Mark Feldman no álbum April Shower (Buzz-Records, 2001); com a violinista, vocalista e performer Carla Kihlstedt (foto acima) no álbum Minamo (Henceforth Records, 2007); o fantástico duo de teclas com a pianista Myra Melford no álbum Under The Water (Libra Records, 2009); o álbum Aspiration (2017) com dois trompetes em entusiasmantes interações freejazzísticas, tendo os trompetistas Wadada Leo Smith e Natsuki Tamura, além dos eletrônicos de Ikue Mori; e o recorrente duo com o contrabaixista Joe Fonda, vide os álbuns Mizu (Long Song Records, 2018), Four (Long Song Records, 2019) e Thread of Light (Fundacja Slucha!, 2022); entre outras parcerias. Ademais, outra conexão intercontinental que tem se repetido é o dueto de Fujii com o pianista australiano Alister Spence: ambos já lançaram dois álbuns a quatro mãos, Intelsat (2018) e Any News (2021), e mais um registro orquestral, o fantástico álbum Imagine Meeting You Here - Satoko Fujii Orchestra Kobe (2019), onde Spence atua mais como compositor. Esses duetos, conversações e parcerias revelam o quanto Satoko Fujii consegue dispor de um arsenal de possibilidades, dinâmicas e idéias junto a variados instrumentistas de diversos estilos dentro da música improvisada!
6 - As formações da Satoko Fujii Orchestra nos EUA, Europa e Japão. As formações orquestrais também constituem uma faceta importante da carreira de Satoko Fujii. Nesse formato, ela explora uma veia mais composicional e mais camerística, criando peças onde intercala passagens, leitmotivs e temas pré escritos com efeitos interacionais pré-elaborados entre os instrumentos e as viscerais improvisações livres, que podem variar de ruídos mais esparsos entre silêncios até cacofonias mais enérgicas. Importante ressaltar que, apesar dessas formações orquestrais trazerem resquícios jazzísticos da estética das big bands americanas, a extensividade de abordagens com ruídos e livres improvisos variados ditam os rumos das composições mesmo quando há arranjos mais elaborados. E a depender do país ou cenário onde os ensembles são formados e os álbuns são gravados, esses registros podem soar com arranjos, inflexões e abstrações orquestrais um tanto diferentes, uns em relação aos outros. Ela já registrou formações orquestrais, por exemplo, em países de ao menos três continentes: Japão (sua terra natal), Europa e EUA. Seu primeiro tento nesse formato foi com a Orchestra New York, que ela fundou em 1997 com jazzistas e improvisadores nova-iorquinos, e até hoje é projeto permanente: com membros fixos e rotativos, essa orquestra de free jazz com músicos nova-iorquinos já passou por diversos revezamentos e formações entre os instrumentistas convidados, e tem sido reativada de tempos em tempos. Depois, Satoko Fujii levou essa experiência orquestral para as cidades do Japão: ela passou a convidar improvisadores japoneses para criar formações como a Satoko Fujii Orchestra Nagoya, Satoko Fujii Orchestra Kobe e Satoko Fujii Orchestra Tóquio. Quando ela está em turnê pela Europa, ela também convida os improvisadores locais para formar uma orquestra, caso da Satoko Fujii Orchestra Berlim, com a qual já gravou dois álbuns. Esta também é uma faceta para a qual aconselha-se que o ouvinte vá se inteirando pouco a pouco, ouvindo disco a disco, uma vez que cada registro traz uma orquestra diferente, formada em época diferente, em local diferente e com composições de diferentes caleidoscópios sonoros.
7 - Fantásticos registros de piano solo (algumas vezes com técnicas estendidas, eletrônicos e sons ambientes).
Satoko Fujii é uma das maiores entusiastas e mestres do formato do piano solo dentro da música improvisada. Para quem gosta do formato e quer investigar esse lado mais íntimo e pessoal da pianista, se deparará com uma clara evolução dos seus conceitos e da sua linguagem pessoal através de registros como Indication (Libra Records, 1996), Sketches (Natsat Music, 2004), Gen Himmel (Libra Records, 2013), Invisible Hand (Cortez Sound, 2016) e o ótimo álbum Solo (Libra Records, 2019). Na verdade, é até difícil de contabilizar, entre lançamentos físicos e digitais, quantos álbuns de piano solo Satoko Fujii já gravou durante as últimas três décadas de atuação super producente, mas estima-se pelas informações em sites e plataformas (Wikipédia, site pessoal, Spotify, Bandcamp e etc) que já se ultrapassa a marca de duas dezenas de álbuns lançados nesse formato. Só no período de isolamento social pela Covid-19, Satoko Fujii gravou uma penca desses registros em piano solo, num momento íntimo e pessoal onde seu ímpeto criativo lhe ajudaria muito a ter de lidar com essa fase de distância das pessoas, do público e dos amigos músicos. Satoko Fujii relatou, em recente artigo do The New York Times, que o fato dela estar distante de tudo e todos, distante dos estúdios e palcos, a fez ter a ideia de adaptar o espaço da sala da sua própria casa em Kobe, Japão, para ter ali seu grand piano Steinway e seus equipamentos de gravação disponíveis, na intenção de a qualquer momento captar seus insights e inspirações solitárias dias e noites adentro. Nestes registros a solo há diversos contrastes e momentos que, de uma forma bem idiossincrática, formam a linguagem e os conceitos pessoais da artista: partes freejazzísticas mais abstratas com passagens mais melódico-imagéticas, álbuns com faixas curtas em miniaturas pianísticas e outros álbuns com uma ou duas peças longas, divagações inspiradas tanto no piano jazzístico quanto no piano clássico, explosões mais ruidosas em contraste com aquele cristalino impressionismo abstrato inspirado em Paul Bley, um uso mais cru das cordas do piano e das técnicas estendidas em piano preparado, interações entre as teclas acústicas e as teclas eletrônicas de sintetizadores, improvisações mais esparsas baseadas na estética da ambient music, e outras particularidades.
Aliás, com todos esses álbuns e registros expressando tantos detalhes, tantas particularidades e atmosferas, fica até difícil indicar apenas um álbum favorito entre os registros solo de Satoko Fujii. Ainda mais se considerarmos o fato de que a evolução da pianista parece não ter limites, primeiramente partindo de livres improvisos mais enérgicos e agora, mais recentemente, evoluindo em conceitos mais texturais, incluindo até sons ambientes previamente coletados em gravações de campo. O ideal é que o ouvinte interessado vá explorando, pouco a pouco e um a um, esses registros de piano solo, boa parte deles dispostos para venda nos sites de e-commerce e um tanto acessíveis no Bandcamp e nas plataformas de streaming. Particularmente, indico, por exemplo, o álbum acima, Piano Music, captado em Abril de 2021 e lançado em formato digital no Bandcamp sob o selo Libra Records (selo próprio da pianista), que já é um dos registros que se destoa de outros momentos enérgicos da sua discografia: neste registro, em duas peças extensas, Satoko Fujii explora uma estética mais "ambient music" onde ela cria esparsas atmosferas eletrônicas que se misturam às sonoridades do piano preparado, explorando menos as teclas do piano e mais as cordas e as sonoridades extraídas da caixa de ressonância do instrumento. Essa concepção se expande ainda em outro registro semelhante chamado Bokyaku (gravado em abril de 2022), onde a pianista usa seu iPhone para coletar sons de trens, aviões, helicópteros, máquinas de lavar, gotas d'água, barcos estacionados, operários trabalhando em construções e interage com suas teclas junto a esses ruídos, criando peças que emanam certa organicidade sensorial através da fusão de sons do piano —— e outras teclas, por vezes usando sintetizadores —— com esses sons de vários ambientes.
Lançamentos incríveis já neste início de 2023!
Satoko Fujii mostrou que a fase de isolamento lhe instigou ainda mais o âmago criativo e já lançou álbuns impressionantes nestes últimos meses: Crustal Movement (Circum/ Libra Records), numa parceria com seu trio Kaze (com os trompetistas Christian Pruvost e Natsuki Tamura) mais a incrível laptoper e manipuladora de eletrônicos Ikue Mori; Perpetual Motion (Ayler Records), que documenta um inesperado e inédito dueto com o legendário guitarrista Otomo Yoshihide; e um pouco antes, em dezembro de 2022, ela lançou o ótimo One Hundred Dreams (Libra Records), seu simbólico 100º álbum da carreira, registrando um octeto de notáveis improvisadores de Nova Iorque e marcando seu retorno aos palcos e aos projetos mais interacionais nessa fase de pós-pandemia. Me debruço, a seguir, nos álbuns Crustal Movement, com Ikue Mori, e Perpetual Motion, com Otomo Yoshihide. E aproveito para indicar ao leitor interessado a descritiva resenha que o crítico e jornalista Fabrício Vieira teceu no 👉FreeForm,FreeJazz sobre o álbum One Hundred Dreams.
★★★★¹/2 - KAZE & Ikue Mori - Crustal Movement (Circum/ Libra Records, 2023)
★★★★ - Satoko Fujii & Otomo Yoshihide - Perpetual Motion (Ayler Records, 2023)
O KAZE é um interessante quarteto de piano com dois trompetes e bateria que Satoko Fujii vem repetindo nos últimos tempos, sendo que este álbum acima é o segundo lançamento deste combo com a adição da laptoper e manipuladora de eletrônicos Ikue Mori —— o primeiro foi Sand Storm (Libra Records, 2020). Neste Crustal Movement, muito do material foi composto de forma remota com cada um dos membros elaborando esboços das peças, gravando e enviando uns aos outros, que foram adicionando acompanhamentos até que todo o conjunto de peças ficasse quase pronto. O trompetista francês Christian Pruvost e o baterista Peter Orins, fizeram diferente: eles receberam parte do material e usaram esses sketches em um show em Lille, tocando junto com o material pré gravado e gravando daí um novo material que seria usado para concluir as peças. Assim, temos aqui um conjunto de inovadoras formas de criação musical usando interação remota, materiais pré-gravados e musica ao vivo —— tudo junto e misturado! A primeira característica já bem aparente que deixa este combo interessante são os efeitos interacionais causados pelos ruídos e improvisos livres sobrepostos dos dois trompetistas: Christian Pruvost e Natsuki Tamura. Aliás, ora os trompetes soam se sobrepondo com notas melódicas e improvisos livres —— em alguns pontos, aliás, usando surdina para extrair um um timbre mais sutil ——, outrora cada um deles atuam em camadas separadas criando apenas efeitos de sopros e ruídos brancos (sem sons melódicos) via técnicas estendidas: ou seja, apenas ruídos do sopro, dos golpes e intervenções de língua, do conflito da saliva com o bocal, do uso de embocaduras não convencionais, entre outras aplicações. Essa abordagem de usar o trompete, via técnicas estendidas, para criar ruídos inusitados vem sendo explorada nos últimos tempos por vários trompetistas do avant-garde e tem se mostrando um rico campo sonoro a se desbravar. Aqui, então, esse tipo de arte sonora ganha um plus de genialidade quando esses ruídos, sendo editados remotamente numa espécie de colagem em work in progress, se somam, se contrastam, se conflituam e se amalgamam aos riquíssimos efeitos eletrônicos criados por Ikue Mori. E fica ainda melhor quando Satoko Fujii insere toda uma gama de dedilhados cristalinos, sons e ruídos que o piano dispõe através das suas teclas, sons obtivos através de objetos e técnicas estendidas em piano preparado, timbres obtidos do pizzicato aplicado diretamente nas cordas do piano (algumas vezes soando como uma harpa!) e outros sons e ruídos que ela inteligentemente extrai da caixa de ressonância do instrumento. Da mesma forma, o baterista Peter Orins mostra sensibilidade o suficiente para saber o momento ideal de adicionar baquetadas freejazzísticas em contrapontos, e para saber em quais outros momentos poderá atuar com seu drum kit e outras percussões de forma pontilhista, inserindo-se em meio à pintura de ruídos sem se sobrepor e enriquecendo esse mosaico híbrido de efeitos eletrônicos e acústicos. Já adianto ser um dos álbuns a figurar na lista de melhores de 2023!
No demais, também indico e comento o interessante e inesperado duo que Satoko Fujii empreende com o guitarrista —— também DJ e manipulador de eletrônicos —— Otomo Yoshihide, uma das figuras mais criativas da free music e da cena experimental japonesa nas últimas quatro décadas. Embora esses dois ases da free music japonesa se conheçam e não muito esporadicamente se trombem pelos clubes, palcos e shows no Japão e nos EUA —— quando não em outros points do globo ——, demorou uns trinta anos para que eles de fato registrassem um álbum juntos. A empreitada foi possível porque em janeiro de 2022 Satoko Fujii foi responsável pela curadoria de um festival no Pit Inn, clube underground de Tóquio, e convidou Yoshihide para estar na lista de improvisadores: num dos dias, então, tiveram a ideia de subirem juntos ao palco e gravaram um total de quarenta e oito minutos de espontânea música improvisada, gestando quatro faixas sequenciais que foram parar na mesa do produtor Stéphane Berland, da Ayler Records. Para resumir, Perpetual Motion é um registro onde nem a pianista tem a intenção de fazer seu piano soar sempre como um piano convencional, e nem o guitarrista explora sua guitarra como manda o figurino: ambos se fundem e se confundem de forma que, por vezes, o piano seja preparado para soar como uma guitarra, como um instrumento de cordas dedilhadas ou apenas como uma caixa de sons ressonantes, e a guitarra soa, por vezes, como um piano, um teclado ou um sintetizador hiper eletrificado. Encontro icônico de ases!
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