Em 2021, em plena pandemia, a baterista Kate Gentile ganhou certa notoriedade ao lançar Snark Horse (Pi Recordings), um box-set de seis CD's gestado em parceria com o interessantíssimo pianista Matt Mitchell, no qual registra 70 composições que ambos vinham elaborando desde 2013, composições as quais, ano a ano, sofreram mudanças e adaptações multidirecionais num processo de pleno work in progress até definitivamente tomarem as formas que foram captadas nas gravações. Snark Horse foi um álbum amplamente aclamado pela inventividade das peças, que foram construídas com base em partes previamente escritas e elaboradas, outras partes livremente improvisadas em tempo real e também contou com as intervenções dos improvisadores convidados —— até chegamos a resenhar este lançamento aqui 👉no blog. Acontece que esse não é o primeiro registro super inventivo de Kate Gentile. Baterista e percussionista muito ativa em Nova Iorque, Kate Gentile tem sido uma mui requisitada sideman e tem efetuado projetos solo e lançamentos de registros inventivos em todos esses últimos cinco ou seis anos —— pelo menos...! Natural de Buffalo e atualmente residente do bairro do Brooklyn, NYC, a baterista e percussionista tem dividido os palcos com algumas das figuras mais criativas do jazz contemporâneo e da música improvisada nova-iorquina: incluindo Anthony Braxton, Matt Mitchell, Miles Okazaki, Chris Speed, Anna Webber, John Zorn, Jon Irabagon, Mat Maneri, Ava Mendoza, Brandon Seabrook, Tim Berne, Steve Coleman, Dave Douglas e tantos outros. Em projetos como líder, Gentile tem sido aclamada como uma improvisadora e compositora que consegue congregar uma ampla gama de detalhes e elementos entrelaçados, criando com esses entrelaces uma linguagem única e vibrante onde a improvisação se funde e se confunde com a composição e vice-versa: sua concepção revela, pois, uma espécie de unidade condensadora mais próxima à estética "modern creative" com elos de influências em um fio condutor que vai das ideias de Anthony Braxton aos fraseados intrincados de Tim Berne, passando pela influência das polirritmias do m-base de Steve Coleman, e segue aberto a criar outros elos com sonoridades do post-rock, da eletrônica, e com contrastes entre texturas, contrapontos, ambiências e timbrísticas. Essa sua proficiência a creditou para até mesmo ir mais além dos limites do jazz e da música improvisada em direção a compor peças com um eruditismo mais formal. É o que nos mostra biomei.i (Obliquity Records, 2023) um dos seus últimos lançamentos com peças suas recentemente registradas pelos músicos do aclamado International Contemporary Ensemble. Tendo sido apontada como uma estrela em ascensão, uma "rising star" da percussão, de acordo a última edição do Critic's Poll da Downbeat Magazine, Kate Gentile é um dos novos nomes que, de agora em diante, deveremos celebrar no olimpo dos músicos mais criativos da atualidade! Neste post, elenco, então, alguns dos principais registros dessa tão inventiva percussionista, baterista e compositora. Clique nos álbuns para ouvi-los!
Kate Gentile - Mannequins (Skirl Records, 2017).
Este foi um dos primeiros tentos da baterista na condição de lider a surpreender. Kate Gentile (na bateria) está acompanhada por Jeremy Viner (no saxofone tenor e clarinete), Matt Mitchell (no piano e eletrônicos) e Adam Hopkins no contrabaixo. Este álbum já mostra que Kate Gentile tem uma visão amplamente expansiva de música contemporânea: isso no sentido de não apenas soar "free", mas também soar composicional e ter muita noção de síncope e contraponto em seus entrelaces rítmicos, indo na direção até mesmo de um pontilhismo mais polirrítmico aqui e ali, nos fazendo lembrar até de certas minúcias do m-base; e isso também no sentido de rechear os arranjos com certa psicodelia e muitos detalhes timbrísticos e efeitos electro-eletrônicos para se ter sempre uma rica paleta sonora. A influência de Tim Berne aqui também é evidente e paira sobre essa cozinha que varia muito entre texturas tórridas, rítmicas angulares e ambiências coloridas. Tim Berne é incontestavelmente um músico que usou a liberdade do avant-garde para criar uma linguagem altamente singular, com fraseados intrincados sempre dotados de angulares entonações harmolódicas advindas das influências que ele absorveu de Ornette Coleman e Julius Hemphill, por exemplo, para transmutá-las em inflexões intervalares ainda mais sinuosas. E Kate Gentile parece ter compreendido e sintetizado essas frases intervalares para acrescentar a elas ainda mais contrapontos, mais efeitos, mais texturas, mais cores e mais dinâmicas. O álbum começa com a breve abertura da peça "Stars Covered in Clouds of Metal" onde os beats anacrônicos da bateria de Gentile são temperados por uma singular e simbionte psicodelia produzida pelos eletrônicos de Matt Mitchell: em seguida também entra o sax tenor de Jeremy Viner acentuando, sobre essas pontuações, a linha melódica com frases intervalares a La Tim Berne até que a bateria e os eletrônicos se descontroem rumo a um inexplicável emaranhado abstrato. Na peça seguinte, "Trapezoidal Nirvana", temos os quatro músicos efetuando uma sequência de ponteios angulares em uníssono, onde até a bateria atua em uníssono com a banda, e dessa vez a banda soa com Matt Mitchell no piano e Jeremy Viner no clarinete: num determinado momento, a banda sai dessa estrutura uníssona e geométrica e caminha para improvisos livres e desenvolvimentos que vão manter sempre certa conexão com os tons angulares e intervalares do início, sendo essa uma das peças mais composicionais e coesas do álbum. Outras peças irão seguir semelhantes estruturas, com partes escritas evoluindo e desenvolvendo novas angularidades. Mas Kate Gentile também mostra que gosta de variar bastante o seu mosaico com ambiências e efeitos texturais mais meditativos: como é o caso da breve peça "Hammergaze", onde ela faz ressoar sinos, pratos e gongos em meio a névoa das texturas eletrônicas e das ambiências etéreas de Matt Mitchell. Já mais adiante, a banda caminha para faixas mais abstratas onde os efeitos eletrônicos dos sintetizadores são mais brilhantes e até soam emaranhados aos improvisos livres do sax, contrabaixo e bateria. E assim Gentile e seu quarteto seguem variando bastante as nuances entre estruturas composicionais, desenvolvimentos coloridos, efeitos texturais e abstrações freejazzísticas. A concepção de sinestesia entre sons e cores de Matt Michell se mostra um ingrediente basilar para a banda: seja nos sintetizadores ou seja no piano, suas teclas de fato colorem as texturas e contribuem com o colorido e pontilhismo das peças. Com todos esses componentes composicionais e improvisacionais, a bateria e a percussão de Kate Gentile atua como verdadeiro motor a engrenar tudo em peças inteligentes. A capa do álbum também sugere essa imagética de um músculo sonoro hibrido que é um motor venoso a colocar em circulação todo um corpo cheio de órgãos, tecidos e membros. É assim que a escrita, as improvisações, os arranjos timbrísticos e os kits de percussão anexados à bateria de Gentile funcionam.
★★★★ - Secret People - Secret People (Out Of Your Head Records, 2022).
Ao pesquisar sobre quais concepções e influências Kate Gentile e seus parceiros do trio Secret People comungaram no molho deste disco, você certamente encontrará menções que vão de Tim Berne a Merzbow (projeto de noise music de Masami Akita), passando pelas arranhaduras de Iannis Xenákis e os criativos ruídos "glitch" do Autechre (dupla-projeto formado pelos DJ's e manipuladores de eletrônicos ingleses Sean Booth e Rob Brown). A influência de Tim Berne em muitos dos projetos de Gentile e seus colegas é, de fato, um ponto de partida vernacular: é perfeitamente perceptível que a parceria histórica dos harmolódicos improvisos de Tim Berne temperados com a psicodelia singular do guitarrista Marc Ducret é aqui um ponto de partida explícito. Já as outras influências citadas são condimentos pra deixar esse molho mais apimentado. Mas é preciso frisar que Kate Gentile (bateria, vibrafone) e seu trio, com Dustin Carlson (guitarra elétrica, contrabaixo elétrico) e com Nathaniel Morgan (no saxofone), realmente acrescentam muitas outras inflexões e sonoridades singulares nessa síntese de avant-jazz com noise-rock e eletrônica, de forma que o trio jamais soa esvaziado. Nathaniel Morgan e Dustin Carlson já haviam contracenado com Gentile no disco Air Ceremony (Out Of Your Head Records, 2018), registro com um septeto liderado por Carlson e formado por saxes, trompete, guitarra, sintetizador Prophet 6, contrabaixo e bateria. Já neste álbum acima, eles retomam a parceria num formato mais compacto de trio, onde a guitarra tem a dupla função de emitir efeitos elétrico-eletrônicos —— assumindo, por vezes, as funções de um sintetizador —— e também emitir fraseados em contracenações com a bateria e o sax. Ainda que compacto, a intenção desse trio é, então, soar expansivo, cru, torrencial e glitch.
★★★★¹/2 - Kate Gentile & International Contemporary Ensemble - b i o m e i.i (Obliquity Records, 2023).
Quando um compositor tem suas peças interpretadas e registradas por um ensemble de renome como o International Contemporary Ensemble, então pode-se dizer que a sua proficiência composicional foi aprovada e realmente lhe credita a se destacar entre os grandes compositores contemporâneos. Entre os anos de 2020 e 2021, em plena pandemia, Gentile participou do programa Artist-In-Residence junto ao International Contemporary Ensemble e a direção artística do ensemble (agora gerida pelo trombonista e compositor George Lewis) lhe encomendou uma peça para rechear sua grade anual de novas comissões dedicadas a novos compositores. Kate Gentile compõe, então, biome ii, uma peça de 13 movimentos para septeto (com violino, flauta, fagote, clarone, vibrafone, percussão, piano e bateria) que consiste em abstrações inspiradas no processo de "lógica dos sonhos" —— algo como o procedimento freudiano de "interpretação dos sonhos", mas aqui numa direção abstrata totalmente lisérgica e lúdica ——, onde as estruturas composicionais elaboradas permitem muito espaço para improvisos livres e arranjos, os quais, por sua vez, permitirão uma total expansão das texturas harmônicas e rítmicas em tempo real, com a peça podendo tomar diferentes formas e dimensões a cada interpretação. Em nota para o concerto-première da peça no Roulette Intermedium, em NYC, a própria Kate Gentile explica: "...biome ii is a 13-movement piece for septet consisting of musical abstractions that twist and connect in ‘dream logic’— like ways, as if representing aspects of unfamiliar but interconnected systems, such as the balance of alien ecologies on a distant moon orbiting a gas giant. The septet orchestration allows for the full expansion of harmonic and rhythmic textures. The piece may assume a semi-modular structure in performance, using any number of movements in many possible orders". Atingindo um resultado safisfatório, os próximos passos consistiram em submeter o processo final a apresentações públicas para que ali, no palco e em tempo real, a peça fosse maturada com todos seus elementos composicionais e improvisacionais.
Essa faceta de compor peças que sejam praticamente um organismo sonoro vivo, sempre em mutação à medida que há interpretações, é recorrente no espírito criativo de Kate Gentile, que também não deixa de se inspirar em compositores como Anthony Braxton e John Zorn, dois ases pioneiros nesse quesito de criar peças-mutantes que adquirem novas formas e modulações a cada interpretação —— vide as peças advindas da filosofia criativa "Tri-Centric" de Anthony Braxton e vide os métodos da game-piece COBRA de John Zorn. Além disso, a compositora cria aqui uma teia de interconexões que englobará desde a oralidade subjetiva dos títulos dado aos movimentos da peça até a arte gráfica da capa do álbum. Adotando um ludismo onírico baseado numa sinestesia entre sonhos, cores, palavras, sons e imagens, Gentile começou a elaborar biome ii inventando títulos totalmente abstratos para cada movimento, títulos baseados puramente em preferências e referências alfabéticas, inventando, assim, palavras que lhe fossem sonoricamente e visualmente conectáveis com essa sinestesia. No encarte do álbum, a compositora detalha todo o ludismo esotérico que conecta esses títulos às cores, e as cores aos sons, e os sons às imagens e sonhos a partir de desenhos, diagramas e um glossário de termos que imerge o ouvinte nesse seu universo particular. Cada movimento da peça recebe um título sci-fi, abstrato, que condiz com sua imaginação de um particular microcosmo constituído de "ecologias alienígenas em luas orbitando gigantes planetas gasosos" ou algo do tipo. Essa sinestesia se reflete, como já citado, na arte da capa do disco, que também é de autoria da própria compositora (vide vídeo acima). A peça foi estreada no palco do 👉 Roulette Itermedium em 26 de maio de 2022 (clique neste link para assistir o concerto no YouTube) e o registro foi gravado no Oktaven Audio, Mount Vernon, NY, entre os dias 14 a 15 de abril de 2021. O septeto da gravação é formado com os músicos do International Contemporary Ensemble mais a inclusão da própria baterista e compositora e a inclusão do pianista Cory Smithe (o qual sempre indicamos aqui). O álbum foi lançado em maio deste ano de 2023 e é o primeiro registro do catálogo da Obliquity Records, gravadora que Kate Gentile e Matt Mitchel, seu parceiro, cofundaram para dar vazão em suas produções.
★★★★ - Kate Gentile - Find Letter X ( Pi Recordings, 2023).
Find Letter X, a ser lançado agora em outubro de 2023, é o lançamento homônimo da banda Find Letter X liderada por Kete Gentile. Trata-se, afinal, de um continuum do jazz quartet que surgiu no álbum Mannequins (2017), do qual falamos acima, agora tendo o saxofonista Jeremy Viner, o pianista e tecladista Matt Mitchell e o contrabaixista Kim Cass (no lugar de Adam Hopkins). Neste lançamento, Kate Gentile e seu jazz quartet lançam um repositório com mais de três horas de música criativa e 41 peças distribuídas num álbum triplo, mostrando um amplo panorama de idéias composicionais e improvisacionais que ela e a banda desenvolveram nesses últimos tempos. Os três discos que compõem o álbuns são: Iridian Alphabet, Senselessness e The Cosmic Brain. Cada disco contém uma identidade temática distinta, sendo que, ao mesmo tempo, todos os três formam um só panorama de idéias e conceitos correlacionados, um panorama que enfatiza muito bem essa identidade criativa de Kate Gentile no sentido de conseguir entrelaçar, contracenar, contrapor e amarrar vários elementos, conceitos e procedimentos criativos numa só estética pessoal e idiossincrática. Como já evidenciado, a sinestesia entre cores e timbres continua fundamental nas peças de Gentile com esta banda, que mantém o ponto de partida nas linhas harmolódicas de Tim Berne através das palhetas (sax e clarinetes) de Jeremy Viner, mas expande-se ainda mais através de improvisos livres e variadas instrumentações, variados efeitos, variados timbres, variadas ambiências e variadas estruturas rítmicas, polirrítmicas e assíncronas. Os coloridos efeitos pianísticos e eletrônicos de Matt Mitchell fornecem paletas sonoras não menos que instigantes à banda. Kate Gentile, por sua vez, é o motor responsável pelo estilo de escrita e dita as pontuações e os pontilhismos, soando tão expansiva ritmicamente quanto timbristicamente rica. Kate Gentile: um novo nome a celebrar e a seguir!
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