ALBERT AYLER |
Depois do bebop, o free jazz foi o fenômeno mais transformador e influente dentro da frenética time line do jazz. Mas o free jazz, também chamado de avant-garde jazz —— e anteriormente chamado indefinidamente de "new thing" —— sempre foi objeto de polêmicas e incompreensões, apesar de que hoje em dia a "free music", como um todo, já não seja mais aquele escondido bicho papão de sete cabeças que, sob o sopro vulcânico de Peter Brötzmann, amendrontava os tantos neófitos: há que se considerar que, após o advento da internet, é cada vez mais perceptível o crescimento no número de ouvintes interessados em conhecer esse lado mais experimental e underground do jazz. Quando comecei a ouvir jazz, isso há duas décadas atrás, comecei a perceber que as discussões acaloradas acerca de um certo senso de purismo e/ou selo de "autenticidade", pleiteado pelos puristas, sempre produziam falácias que escanteavam o subgênero do free jazz para um certo limbo estilístico negativamente discriminado, como se essa radicalização do avant-garde não tivesse sido uma decorrência natural dentro da própria evolução do jazz. Confesso que, inicialmente, eu ficava um tanto confuso tentando entender os conflitos e as celeumas que existiam entre essas discussões —— e existem ainda hoje, infelizmente..., ainda que em menor intensidade ——, e entre as resenhas e playlists romantizadas que nunca indicavam nada de free music, as indicações descaradamente seletivas do tipo "top 10 best albums", os manjados rankings de "melhores" e "maiores" e o fato de que, mesmo com toda essa onda de discriminação, havia uma tropa crescente de diletantes ouvintes que consideravam que o free jazz era um ruído que persistia como a vênia máxima da experimentação e da inovação na linha do tempo do jazz. Muitos puristas diziam que o free jazz não era nem jazz e nem música. Enquanto muitos adeptos do avant-garde diziam que o free jazz era, sim, a vênia máxima da criatividade e diziam que muito do que se produzia no range do mainstream, principalmente aquele "mainstream" protagonizado por Wynton Marsalis e os músicos corelatos da geração "young lions", era apenas algum tipo de música palatável que abundava em técnica, mas carecia de arte em seu conteúdo, carecia de criatividade, e se limitava a reproduzir o passado. Não demorou muito para que eu percebesse que essas discussões não passavam de uma verborragia desnecessária e totalmente equivocada, e geralmente era algum tipo de verborragia protagonizada por pessoas que não enxergavam um palmo sequer para fora da sua zona de conforto e da sua caixinha de preconceitos —— e isso, tanto do lado dos puristas quanto do lado dos vanguardista.
MATS GUSTAFSSON |
No cenário americano, contudo, o free jazz ainda manteria certas conexões com o blues, o gospel, a soul music, o funk, o rock e outros adereços culturais, ainda que agora totalmente deformadas por experimentações, tortuosidades, abstrações e conceitos anárquicos. Naturalmente, como aconteceu com o bebop enquanto revolução de linguagem, o conceito de "liberdade" do free jazz também incorporaria elementos e tendências da world music (com Archie Shepp e Art Ensemble of Chicago, por exemplo...), do jazz fusion (com Ornette Coleman e sua Prime Time), da eletroacústica e eletrônica via sitetizadores portáveis (com Sun Ra, Anthony Braxton e Richard Teitelbaum, por exemplo...), do funk e da soul music (com Albert Ayler, Pharoah Sanders...), da música atonal serialista e aleatória (com Anthony Braxton...) e tantas outras tendências e vertentes, mas esse aspecto libertário e revolucionário da improvisação livre abstrata não apenas foi seu trunfo e seu cerne, como também lhe deu propriedade para ser incorporado como uma forte representação ante aos anseios revolucionários protagonizados pelas contraculturas de uma sociedade em ebulição protagonizadas por jovens negros do Movimento Black Power e jovens brancos roqueiros do Movimento Hippie, além de atrair compositores que advieram até do ramo da música erudita mais formal para se inspirar nessa música totalmente e livremente improvisada —— ou quase totalmente e livremente improvisada —— que agora era o sinônimo mais direto de vanguarda libertária. Aliás, o próprio free jazz, como já citado, também desenvolveria-se rumo a uma evolução mais teórica, erudita e formalista com os músicos da AACM (Association for the Advancement of Creative Musicians), de Chicago. A partir do final dos anos de 1960, essa nova movimentação de músicos conceitualistas e inovadores da AACM, tais como Anthony Braxton, Henry Threadgill e os músicos do Art Ensemble of Chicago, também levaria o free jazz de encontro aos conceitos inovadores da música erudita serial, do teatro, da performance, da poesia, mas o faria dentro dos seus próprios termos criativos, enfatizando mais os aspectos sonoros, ritualísticos e performáticos relacionados a esse underground cenário afro-americano: Braxton inventou seus próprios conceitos filosóficos e suas próprias notações gráficas para trabalhar interações ritualísticas e sensos de espacialidade; os músicos do AEC incorporaria uma expansão inconteste rumo a misturas de elementos eruditos com multiculturalidade, elementos do teatro musical e outros conceitos ritualísticos de música performática; enquanto Threadgill expandiria enormemente seu conceito de "chamber jazz", se inspirando na música de câmera erudita para formar ensembles com inusuais combinações instrumentais e texturas camerísticas nunca dantes imaginadas. A partir daí, compreendemos definitivamente que o free jazz nunca foi apenas barulho, ruído, cacofonia e abstrações espontaneamente desferidas sob um tal subjetivismo vazio como alguns puristas adeptos do mainstream chegaram a caluniar, mas sobretudo passou a ser uma diretriz criativa abundante em novos arranjos e novos conceitos composicionais e interacionais.
Nas últimas décadas do século 20, teríamos, acredito eu, um novo conceito de liberdade: o ecletismo —— ou ecleticismo, como queiram —— protagonizado por improvisadores dos anos 80 e 90, liderados em grande parte por John Zorn. As contraculturas dos anos 60 e 70, agora ultrapassadas, já tinham derrubado muitos muros e fronteiras dantes estabelecidos pelo velho conservadorismo, e agora o mundo já caminhava para o fenômeno da globalização e da plena pós-modernidade, onde todos os gêneros de arte se misturariam. Embora John Zorn tenha feito algumas misturas ainda influenciado por aqueles aspectos libertários e anarquistas dos anos 60 e 70, e ainda que suas misturas radicais também tenham teores de ironias, pastiches e sarcasmos, considero que a maior contribuição da sua imensa discografia foi derrubar, radicalmente, todos os muros de separação que ainda existiam. E é aí onde esse que vos fala começa a inserir seus ouvidos e orelhas. Um estalo de coerência e de consciência me ocorreu quando li uma declaração do saxofonista e multi-palhetista James Carter:"eu toco o old style e também toco avant-garde, pois ambos são vertentes decorrentes de um mesmo gênero, que é o gênero do jazz". Simples assim. Não há o porquê ter preconceitos quando compreendemos as conexões e evoluções linguísticas e conceituais pelas quais o jazz se desenvolveu. Do ragtime às misturas e colagens radicais de John Zorn na cena no wave, do hot jazz e dixieland de Louis Armstrong ao free jazz de Peter Bröztmann, passei a considerar que é tudo jazz: é apenas o jazz sendo influenciado pelo tempo, pelas pessoas, pelas formas de expressões culturais e pela arte em épocas, cenários e contextos diferentes. Daí em diante, o próximo passo foi parar de balizar o gosto apenas nas romantizadas seleções de alguns pseudo especialistas. Os próximos passos, aliás, também incluíram buscas por entender os contextos, as características, os porquês, a história que fundamentava as radicalidades do free jazz. E um outro próximo passo foi o expurgar de mim toda má sorte de preconceito e purismo musical. Aliás, logo também percebi que todas as ondas de ecletismos, poliestilismos e hibridismos e outros ismos da pós-modernidade que assaltaram o final do século 20 e este início de século 21 já haviam deixado todas essas velhas discussões e esses conflitos estéticos ultrapassados há pelo menos 50 anos atrás: até porque todos os maiores gênios que levaram à música moderna para a pós-modernidade —— Frank Zappa, Carla Bley, Charles Mingus, Miles Davis, Alfred Schnittke, Philip Glass, Luciano Berio, Penderecki, John Zorn... ——, todos esses gênios misturaram formas clássicas, tradicionais e populares com elementos experimentais do avant-garde, quebrando por completo esses tipos de celeumas e picuinhas. Nas últimas décadas pudemos perceber, pois, que muitas das pessoas que procuram pensar a arte para além dos preconceitos e dos forjados padrões mercadológicos também se afastaram dessas velhas dicotomias, fato que colaborou para um crescimento inconteste no número de ouvintes de avant-garde. Mas o free jazz, com suas sonoridades torrenciais e disformes, ainda causa estranheza em muitos ouvidos mesmo hoje, em pleno século 21.
Prosseguindo com nossa viagem pelas fases, facetas, evoluções, contextos e cenários do free jazz e da música improvisada —— vide que em 2020 já talhamos aqui uma indicação de mais de 👉80 Álbuns Essenciais do Free Jazz e da Free Improvisation ——, minha finalidade neste podcast, então, é usar minha própria experiencia auditiva —— nesse percurso que cruzei para assimilar as músicas de vanguarda em geral —— para trazer um panorama desse conceito libertário de música que incorporou ao jazz as mais variadas radicalizações, os mais variados conceitos disfórmicos e abstratos das artes modernas e contemporâneas como um todo: a começar por conceitos artísticos como o dadaísmo, o expressionismo abstrato, a música atonal-dodecafônica, a música aleatória, o indeterminismo, o Movimento Fluxus, a música concreta, a eletroacústica, o ecleticismo radical, a pós-modernidade... entre outros conceitos e movimentos —— não é à toa, aliás, que a pintura abstrata White Light (1954, MoMA) de Jackson Pollock ilustra a capa do álbum Free Jazz - A Collective Improvisation (Atlantic, 1960), álbum de Ornette Coleman que fundou definitivamente o free jazz! Essas associações das artes plásticas, da música erudita moderna e das artes performáticas de vanguarda nem sempre são relacionadas aos contextos do free jazz nas histórias contadas pela Wikipédia e outros sites e plataformas "especializados", mas quando pesquisamos sobre os álbuns, as obras e as biografias dos músicos separadamente, essas influências são sempre relatadas, e é por isso que aqui essas correlações são nosso ponto de partida —— sem deixar de considerar, lógico, as influências dos aspectos culturais, dos cenários e dos contextos vários. Seja bem vindo ao podcast! Ouça, pesquise sobre os músicos e, se puder, adquire os álbuns!
Free Jazz & Avant-garde (1959-1966) - Cenário de New York: Ornette Coleman, Don Cherry, New York Contemporary Five & Archie Shepp, os primeiros rompantes da "new thing" que deformou as formas do blues e do bebop
"Orquestras" de Free Improv - Início dos ensembles expandidos: o precursor double quartet no álbum "Free Jazz" (1960) de Ornette Coleman e a pioneira "new thing big band" no incendiário Ascension (1965) de John Coltrane
Cecil Taylor - Unit Structures & piano solo: descaminhos e a arte de um incendiário e percussivo piano abstrato
"Orquestras" de Free Improv: as "Communications" de Carla Bley, Michael Mantler e a Jazz Composer's Orchestra
AACM de Chicago - Creative Black Music: Art Ensemble of Chicago, Anthony Braxton, Henry Threadgill e George Lewis: as influências da música erudita moderna no desenvolvimento de um free jazz mais composicional e formalista
A voz dentro dos contextos do free jazz e da música improvisada: Jeanne Lee com Marion Brown (c/ Chick Corea, Anthony Braxton, Andrew Cirille, etc), Irene Aebi com Steve Lacy, Phil Minton com Roger Turner, e Amirtha Kidambi
"Orquestras" de Free Improv - Europa: Brotherhood of Breath de Chris McGregor (Londres); Globe Unity Orchestra de Alexander von Schlippenbach (Berlim); e a evolução do método "Conduction" do maestro americano Butch Morris
Free Jazz + Eletrônica & Eletroacústica - Sintetizadores e Recursos Eletrônicos: Sun Ra, Musica Elettronica Viva, Anthony Braxton com Richard Teitelbaum, M.I.M.E.O. e a banda Space Quartet do sound artist português Rafael Toral
Downtown Scene - John Zorn, Ikue Mori, Satoko Fujii e etc: No Wave + Free jazz + Hardcore Punk + Electronic + Japanoise + Colagens + Ecletismos radicais. Um novo conceito de liberdade com a mistura ruidosa de várias estéticas!
Free Jazz Acústico Reenergizado!: o spiritual energy de David S. Ware, as virtuosas abstrações espirituais de Charles Gayle, Ivo Perelman e suas inspirações na arte da pintura, Joe McPhee (!), Mats Gustafsson e o garage rock
Continua... novos episódios semanalmente...
Tweet