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Facts & News not to Forget 2024: 72ºDownbeat Critics Poll e os docs sobre a flautista Léa Freire e o Clube da Esquina

Documentário lançado entre 2021 e 2022 pelo cineasta Lucas Weglinski, "A Música Natureza de Léa Freire" está repercutindo para além dos circuitos mais alternativos de arte e cinema. Um dos destaques do Festival Internacional de Documentários Musicais, no IN-EDIT BRASIL de 2023, e já tendo sido elogiado e premiado em algumas mostras internacionais —— tendo recebido os prêmios de Melhor Documentário no New York Tri State Film Festival, de Melhor Música no Festival Internacional de Cinema de Roma e de Empoderamento Feminino no Festival Internacional de Cinema de Tóquio, além de ter sido exibido no Vision du Réel na Suíça, no Toronto Indie Festival no Canadá, no Festival de Cinema Latino de São Francisco nos EUA e no Festival Internacional de Cinema de Bern na Suíça ——, o longa "A Música Natureza de Léa Freire" agora caminha para chegar às salas de cinema das capitais do Brasil onde estará mais acessível ao público de fãs e curiosos. A pré-estreia ocorreu num evento gratuíto em 16 de Julho no Espaço Augusta, em São Paulo, e contou com a exibição do doc ao público seguido de um debate com a própria Lea Freire e o diretor Lucas Weglinski, conforme documentado pelo jornalista Lucas Breda, na Folha de São Paulo. Sendo muito requisitada nos circulos da MPB e sendo figura seminal na cena paulistana nas décadas de 80, 90 e 2000, Léa Freire influenciou toda uma geração de grandes músicos dessas últimas décadas e continua sendo uma influência forte para músicos da nova geração. Nos anos 90, por exemplo, ela foi uma das figuras principais a resgatar e repaginar o choro e o brazilian jazz (misturas de jazz com samba, baião, maracatu, cancioneiro popular e etc) através das suas composições e sob as novas roupagens do seu emblemático Quinteto, num projeto que contava com Teco Cardoso (saxes, flautas), Benjamim Taubkin (piano), Sylvio Mazzuca Jr. (contrabaixo) e AC. Dal Farra (bateria). Para além da voz marcante da sua flauta transversal, o requinte composicional de Léa Freire expandiu-se para além dos limites do jazz e do choro, alcançando, também, as vias criativas dos arranjos eruditos: vide, por exemplo, o ótimo álbum Cartas Brasileiras (2007), que conta com grandes figuras da música instrumental mais os arranjos da Orquestra de Câmara da Escola de Comunicações e Artes (OCAM-ECA) da USP sob regência do maestro Gil Jardim. Essa expansão criativa possibilitou a flautista e compositora criar sua própria amálgama musical na seara fronteiriça entre o popular e o erudito, onde os elementos das expressões populares brasileiras se inflexionam e se transformam nas mais elaboradas, criativas e aprimoradas formas de arte musical. O documentário aborda não apenas esse pioneirismo de Léa Freire em transpassar esses limites estético-estilísticos, como também faz jus ao seu pioneirismo de peitar a misoginia de sua época —— o preconceito contra a mulher —— que até hoje está latente nos territórios machistas da crítica especializada e dos músicos e compositores. Frequentemente, críticos, jornalistas e seus próprios colegas músicos a elogiavam como "a Villa-Lobos contemporânea", "a nova Tom Jobim" ou "a Hermeto Pascoal de saias", comentários que tentam ser elogiosos, mas acabam sendo comparações que perpetuam o latente machismo ainda entranhado nos universos do jazz e da música instrumental brasileira. E para além desse pioneirismo como instrumentista e compositora, Léa Freire também é uma pioneira do empreendedorismo musical, tendo fundado sua própria gravadora e produtora, a Maritaca Produções Artísticas, e lançando com este selo registros requintados de vários grandes músicos tais como Edu Ribeiro, Mané Silveira, Laércio de Freitas, Nenê, Silvia Góes, Nailor Proveta Azevedo (Banda Mantiqueira), Caíto Marcondes, Arismar do Espírito Santo, Silvia Góes, Jurandir Santana, Filó Machado e outros. Diante desse seu protagonismo em várias frentes, Léa Freire ganha, então, um doc que é um registro não menos do que justo e urgente, visto que, diante de tamanho requinte e criatividade, sua arte já deveria ser muito mais valorizada pela mídia brasileira. Para fãs e curiosos, o filme segue em cartaz no Espaço Augusta (Espaço Itaú de Cinema), no bairro da Consolação, em São Paulo, e no Cine Cultura do Centro Cultural Marietta Telles, Praça Cívica, Goiânia, e gradualmente seguirá estreando em outras capitais como Palmas, Rio Janeiro, Brasília, Salvador e Belo Horizonte. Viva a obra e o legado de Léa Freire!

Outro dos finos documentários musicais de 2024 é "Nada Será Como Antes - A Música do Clube da Esquina", dirigido e escrito por Ana Rieper e com coprodução do Canal Brasil, que já começou a incluí-lo em sua programação. O doc traz detalhes da trajetória dos instrumentistas e cancionistas do Clube da Esquina e de como iniciou e evoluiu os processos de criação que envolveram os irmãos e Márcio Borges com Milton Nascimento, Beto Guedes, Fernando Brant (1946-2015), Ronaldo Bastos, Toninho Horta, Wagner Tiso, entre outras figuras criativas que surgiram a seguir: Tavito, Novelli, Robertinho Silva, Nivaldo Ornelas, Flávio Venturini, entre outros. Jovens acostumados a cantar e tocar violão na esquina das Ruas Divinópolis e Paraisópolis do bairro de Santa Tereza, Belo Horizonte, Minas Gerais, os irmãos Borges e seu amigo Milton Nascimento (apelidado carinhosamente de Bituca) iniciam, em meados de 1960, uma verdadeira revolução no âmbito da canção brasileira, dando início ao que seria reconhecido como um passo adiante na evolução da MPB pós bossa nova e um paralelo humanista ante a antropofagia concretista e experimental da Tropicália. Esses jovens de classe média vinham sendo influenciados pela própria bossa nova, pelo jazz —— principalmente pelas correntes mais modernistas do modal jazz e jazz-fusion (Miles Davis, John Coltrane, Wayne Shorter, Herbie Hancock e etc) ——, pela música erudita, pelo rock progressivo dos Beatles e bandas correlatas que vieram a seguir (Yes, Gênesis e outros) e também, naturalmente, pelas poéticas e travessias entre os ambientes urbanos e os ambientes nostálgicos mineiros (trens, montanhas, vales, bairros históricos e etc), bem como pelas tradições afro-indígenas dos reisados, da música folclórica e da música religiosa de Minas Gerais. A partir da amálgama desses elementos todos, essa turma de cancionistas, letristas e instrumentistas —— cada um com seus estilos e com suas ideias, personas e preferências —— criaram o então grupo de artistas que ficou apelidado e conhecido como Clube da Esquina, dando luz a um novo cancioneiro que revolucionou a Música Popular Brasileira, sendo não apenas uma tendência de momento, numa resposta clara em paralelo à Tropicália, mas estabelecendo uma duradoura evolução melódico-rítmico-harmônica que ditaria o futuro da música brasileira pelas próximas quatro décadas —— pelo menos! ——, sendo até hoje uma influência basilar para as novas gerações de novos instrumentistas e cancionistas do jazz, da música instrumental e da Nova MPB. Embora esse movimento tenha se iniciado já em meados dos anos de 1960, os registros basilares que sedimentou todas as influências e elementos do Clube da Esquina numa só amálgama como uma estética inovadora foi o homônimo lançamento duplo Clube da Esquina 1 (1972) e Clube da Esquina 2 (1978), considerado por muitos o álbum duplo mais inovador da Música Popular Brasileira. Para quem se interessar, aqui mesmo no blog Instrumental Verves já adentramos esse inovador cancioneiro mineiro num post onde elencamos cerca de👉 20 álbuns nos quais as belas canções do Clube da Esquina recebem releituras com elaborados arranjos instrumentais, evidenciando todo os requintes melódico-rítmico-harmônicos com os quais esse cancioneiro enriqueceu sobremaneira a MPB e a música instrumental brasileira. Assistam esse doc, acessem nosso post com os 20 álbuns instrumentais e ouçam a playlist!!!

A prestigiada revista americana Downbeat acaba de publicar as listas dos principais músicos do jazz atual por categorias (melhores em cada instrumento, melhores álbuns do ano, Artista do Ano, as estrelas em ascensão e etc). Trata-se da 72º Critics Poll, tradicional enquete em que seus críticos fixos e convidados (especialistas em jazz de vários países do mundo) votam para definir os músicos mais ativos e representativos para o jazz. Dantes conservadoras na sua preferência em manter escolhas mais palatáveis sob o conforto aveludado do straight-ahead empreendido por veteranos consagrados, agora nestes últimos tempos essas listas caminham para se tornar mais equitativas e diversificadas em face às transformações do jazz contemporâneo empreendidas por músicos das novas gerações do post-bop e do "modern creative": e quando falamos dessas "novas gerações", entenda-se por jovens músicos que vão desde os rising stars com idade entre 20 a 30 anos até músicos já consagrados na altura dos 40 a 50 anos —— sim!, no jazz um músico que está no auge criativo dos seus 50 anos de idade ainda é considerado jovem! Esses músicos das gerações mais jovens estão empreendendo, então, um post-bop de inquestionável frescor contemporâneo —— casos do saxofonista Immanuel Wilkins e do vibrafonista Joel Ross ——, e/ou estão empreendendo um "modern creative" onde os elementos do avant-garde são parte de elaboradas estruturas composicionais, assim criando novas formas inflexionadas de jazz para o século 21 —— como é o caso de Mary Halvorson, por exemplo... Neste ano de 2024, os críticos da Downbeat até mantiveram alguns mestres veteranos que são sempre muito frequentes no topo dessas listas: tais como o percussionista indiano Zakir Hussain, o organista Larry Goldings, o teclacista Herbie Hancock, o mestre pianista Kenny Barron, a violinista Regina Carter, a sax-sopranista Jane Ira Bloom, a bandleader Maria Schneider, o saxtenorista Charles Lloyd e o sax-baritonista Gary Smulyan —— e a DB os mantém independentemente deles lançarem novos álbuns, por vezes dando crédito mais ao fato desses veteranos continuarem influentes e estarem ativos com lotadas agendas de shows, projetos e aparições, caso da aclamada violinista Regina Carter e da influente e originalíssima sax-sopranista Jane Ira Bloom, as quais não lançaram novos álbuns em 2023 e 2024 e, ainda assim, estão no topo das suas respectivas listas.

Mas quase todas as outras enquetes com todos os outros instrumentistas mais votados também evidenciam que, de fato, a direção da Downbeat e seus críticos não estiveram dormindo frente aos avanços musicais empreendidos pelas figuras mais criativas surgidas nos anos 2000 e 2010. Há algumas escolhas e fatos um tanto questionáveis: como o fato, por exemplo, do já veterano multipalhetista sueco Mats Gustafsson ainda figurar na lista de "rising stars" (como assim?, ele já deveria estar entre os jazz masters!); ou o fato de só agora o nome do incrível pianista John Escreet estar entre os mais votados; ou, ainda, o fato de escolherem o ex-rapper André 3000 como um dos grandes flautistas do jazz atual (sim, ele lançou um etéreo álbum de new age com mínimas conotações de jazz, mas... fica a pergunta: isso já o credencia como um jazzman?); entre outros questionamentos. Mas, em sua maioria, essas últimas listas da Downbeat tem mostrado maior equilíbrio rumo à diversidade e ao mais fiel retrato do jazz contemporâneo. Definitivamente, a Downbeat é, desde sempre, uma revista que se dispõe a ser um radar e, ao mesmo tempo, um retrato do jazz contemporâneo —— não é a única revista a priorizar essa diretriz, mas sua importância histórica é indelével. Um retrato ainda mais pertinente, por exemplo, para quem quer estar atento quanto ao futuro do jazz está nas enquetes de rising stars, nas quais a Downbeat mostra os músicos e compositores que foram revelados nestes últimos tempos e que, portanto, levarão o jazz adiante. Neste ano de 2024 os principais rising stars foram: o saxofonista James Bradon Lewis (mais votado das categorias Artista Revelação e Compositor, e também aparecendo nas enquetes de sax tenor e melhores bandas), Emmet Cohen Trio (votado com melhor banda), Keyon Harrold (mais votado na categoria "rising star trumpet"), Jennifer Wharton (mais votada na categoria "rising star trombone"), Anna Webber (que, merecidamente, foi a mais votada nas categorias da flauta e do sax tenor), o falecido Casey Benjamin (lembrado por seu uso criativo do vocoder na categoria "rising star miscellaneous instrument"), Patricia Brennan (mais votada na categoria do vibrafone), Pasquale Grasso (guitarrista italiano, radicado em N.Y.C, uma das grandes revelações da guitarra jazz), Terreon Gully (o mais votado na categoria de rising star da bateria), Lakecia Benjamin (que, além de ter sido bem votada na categoria do sax alto, foi a mais votada na enquete dos melhores jovens arranjadores), entre outros instrumentistas rising stars. Clique nas imagens para ser direcionado à👉 versão digital da DB.
Nas categorias principais, dedicadas aos músicos já consagrados, a DB manteve, então, sua predileção pelos veteranos do straight-ahead, mas, dessa vez, tentando um equilíbrio para evidenciar, também, músicos das vertentes mais exploratórias. Para o top one do cello, por exemplo, os críticos laurearam, mais uma vez, Tomeka Reid, hiper criativa musicista que ganhou os holofotes a partir das suas associações com a AACM de Chicago. Para melhor flautista, os críticos da DB laurearam a hiper criativa mestra Nicole Mitchell, também advinda da AACM de Chicago e que sempre tem lançado álbuns muito exploratórios. Para melhor sax-altoísta os críticos da DB laurearam o jovem Immanuel Wilkins, que após quatro excelentes álbuns lançados pela Blue Note, já sai da condição de artista revelação (rising star) para encabeçar a lista do sax alto: Wilkins, inclusive, também levou seu quinteto de post-bop a ganhar a primeira colocação na lista de melhor banda! Para o melhor contrabaixista (baixo elétrico) a DB deu o pódio número um para a contrabaixista Meshell Ndegeocello, que ganhou o Grammy 2024 na categoria de Best Alternative Jazz Album. O melhor vibrafonista, com justa razão, foi o jovem Joel Ross, que também já deixa de ser um rising star para estar no topo da sua categoria. A melhor guitarrista continua sendo, sem dúvidas, a inovadora Mary Halvorson, que nos últimos anos tem lançado, ininterruptamente, álbuns de alta criatividade composicional e improvisacional. O pódio de melhor arranjador dado ao inventivo bandleader Darcy James Argues também foi, em minha opinião, bem merecido! A inventiva cantora Cécile McLorin Salvant também é um acerto inquestionável na categoria de melhor vocalista (feminina) de jazz. No demais, há alguns nomes de músicos que já podemos chamar de "jovens veteranos" —— tais como os quinquagenários Christian McBride (contrabaixo acústico), Brian Blade (bateria) e Kurt Elling (jazz singer) e até quadragenários como o trompetista Ambrose Akinmusire e o saxofonista Greg Ward (ainda indicado na categoria de rising star do sax alto) ——, os quais também vem se repetindo no topo das últimas enquetes da Downbeat por estarem sempre envolvidos com criativos lançamentos anuais, projetos variados e outras aparições até midiáticas: em relação a esses músicos não há o que questionar —— o contrabaixista Christian McBride, por exemplo, é um músico que não pára (!) (lança bons álbuns todo ano, é requisitadíssimo sideman, educador, curador de festivais, apresentador de podcasts e programas de rádio (NPR Music, WBGO e Jazz at Lincoln Center), e está sempre na mídia...; e o baterista Brian Blade, outro exemplo, lançou quatro álbuns (como líder e colaborador) só entre 2023 e 2024! 

Ademais, nas listas das melhores gravadoras do período 2023-2024, quem figura no top one é a Blue Note, que chega ao seu 85º aniversário e tem sido uma fonte do melhor post-bop a energizar o jazz contemporâneo. E por falar na Blue Note, o grande ganhador de 2024 foi o veterano saxtenorista Charles Lloyd, de 86 anos (!!!), que ganhou o pódio número um de Álbum do Ano com The Sky Will Still Be There Tomorrow, entrou para o Hall of Fame e ainda foi considerado o Artista do Ano pelos críticos da DB: e, de fato, é realmente admirável como que Lloyd, no pico dos seus 86 anos, tem mantido o admirável tom do seu sax tenor conectado com a contemporaneidade e segue em plena criatividade nos seus lançamentos anuais, sendo um dos principais músicos do atual plantel da Blue Note. Por fim, uma grata surpresa foi terem relacionado o brasileiro Amaro Freitas como um dos rising stars na categoria "keyboard" —— e veio tarde: já em 2021 e 2022 eu me perguntava se esses críticos da DB não enxergavam a trajetória de Amaro. Feito esse balancete, constatamos que, apesar de adotar uma estratégia saudosista de valorização da tradição com a repetição de jazz masters nos topos das suas enquetes anuais —— o que, ao meu ver, é uma característica louvável do "cânone" do jazz, desde que esses veteranos se mantenham não apenas ativos, mas sobretudo altamente producentes ——, os críticos da Downbeat Magazine tem prezado, enfim, pela diversidade do jazz contemporâneo: diversidade de gêneros (humanos e estéticos), indicando as grandes instrumentistas mulheres, indicando grandes músicos contemporâneos de outros países e, assim, retratando mais fielmente como o jazz deste novo século se tornou uma forma de arte amplamente universal —— e não somente americana.