
Para o amante da boa música que acompanha o pianista brasileiro André Mehmari, é praticamente impossível não desenvolver um laço afetivo com suas melodias, harmonias, improvisos e arranjos —— este pobre escriba que vos escreve, inclusive, ficou algum tempo sem escrever sobre música e quando visitou a página desse grande artista sentiu-se logo inspirado pelas novidades ali dispostas. Isso porque André Mehmari é daquele artista que, além de ter uma produção de constantes novidades, caminha para manter e elevar o refinamento das suas melodias, harmonias, improvisos e arranjos à ares cada vez mais requintados —— isso sem entrar nos detalhes das várias aberturas que sua obra comunga, indo do arranjo pré-elaborado ao risco dos improvisos espontâneos, indo do popular ao erudito, indo das canções de melodias cativantes à peças de abstrações modernistas, indo da tradição ao moderno, e tudo isso de uma forma amalgamadamente pós-modernista como bem compete a um artista contemporâneo. Neste post, exclusivamente, quero trazer o leitor deste blog para o admirável mundo sonoro do piano solo de André Mehmari. Muito se fala das dezenas de álbuns requintados que o pianista Keith Jarrett, por exemplo, já lançou em piano solo, com destaque para suas peças improvisadas em concertos ao vivo ou peças criadas no exato momento da gravação. André Mehmari vem, também, lançando vários álbuns em piano solo com diretrizes similares, mas com trilhas que diferem em estilos, cores, inspirações e variabilidades estéticas, valorizando, sobretudo, improvisos com passagens motívicas e poéticas da brasilidade! O formato é o mesmo, mas as trilhas musicais para atingir o ouvinte são de escolhas próprias e dizem muito das próprias experiências, inspirações e abstrações pessoais do pianista. E André Mehmari segue praticamente desnudando essas suas inspirações aos seus ouvintes, sem deixar que sua obra caia em pedantes redundâncias ou apele para aqueles excessos de glacê por demais saudosistas, criando uma obra variada, sem sensacionalismo, criando trilhas que nos trazem uma ponte entre o passado e o presente de forma sempre muito singela e elegante: o folclore brasileiro, a melodiosidade modal da canção mineira, o eruditismo do barroco e das trilhas da música clássica, a poética da flora e da fauna e o verde acalentador da Serra da Cantareira, a graciosidade do choro... todos esses elementos e inspirações já são conhecidos pelos fãs da obra do pianista. Contudo, quando nos atemos aos álbuns de piano solo de André Mehmari, começamos a perceber que, para além dele usar essas influências já conhecidas em formas sempre novas e inovadoras, é exatamente neste formato compacto que o artista vem expandindo seu leque sonoro e vem permitindo aos seus fãs uma maior intimidade com várias outras das suas inspirações que sempre estiveram ali em seu coração repleto de arte humanista. O mote para este post foi seu recente lançamento Short Stories without Words —— ou seja, "Contos sem Palavras". Mehmari, aliás, pode ter se inspirado no título das curtas peças (Songs without Words) escritas para piano pelo compositor alemão e romântico Felix Mendelssohn (1809-1847). Mas, novamente salientando, as trilhas de Mehmari são distintas em estilo e estética e dizem respeito às suas próprias abstrações, inspirações e influências: Mendelssohn, Nazareth, Bill Evans, Jarrett...e tantas outras influências... são apenas gatilhos que o pianista usa para expandir esse seu rico mundo de improvisos pelas vias das suas teclas brilhantes. André Mehmari, claramente, está a fazer história com essa série de álbuns para piano solo!!! Que venham outros!!!
Andre Mehmari - Short Stories without Words (ADS / Estúdio Monteverdi, 2025)
Mehmari acaba de lançar, agora em 2025, este seu "Contos Sem Palavras". O pianista usa este título aparentemente simples para dar a entender que a falta da oralidade textual comum na música puramente instrumental pode muito bem ser substituída por abstrações sonoras que tenham poder de imagetismo o suficiente para fazer o ouvinte viajar no espaço-tempo da vida e imaginar contos e estórias, ou de viajar nas próprias brincadeiras e relações intervalares que as notas e acordes sugerem e, daí, se teletransportar para lugares incríveis. Para tanto, Mehmari caminha por linhas de improvisos onde ele possa usar toda a bagagem melódico-harmônica que ele dispõe —— o que não deve ser pouca coisa! De uns tempos para cá, aliás, ao escutar atentamente os álbuns de piano solo de Mehmari, percebe-se que o artista tem cada vez mais se submetendo ao risco das improvisações espontâneas num simples ato de sentar-se ao piano e tatear ali, sem pauta e sem partitura, linhas de acordes e melodias indefinidas e indefiníveis. Mas, ao mesmo tempo, Mehmari parece tomar um certo cuidado para não destoar-se de si mesmo e em si mesmo, para não destoar do seu estilo que se dá muito em torno de criar, mesmo, harmonias e melodias cativantes e ricas em beleza —— não é como alguns artistas de improvisação livre que criam abstrações aleatórias onde o inderterminismo é o segredo da obra. Este álbum, segundo o que o próprio artista nos conta em suas páginas nas redes sociais, se deu no simples ato de sentar ao piano e improvisar harmonias e melodias sem a exigência da pauta previamente escrita, deixando apenas os pensamentos, as memórias e abstrações do momento ditarem as notas a serem tateadas, com os títulos das peças sendo escolhidos só após o término de cada improviso. Com essa dinâmica, Mehmari pode, ao meu ver, ter tido dois momentos de grande fruição no seu fazer musical: o prazer de deixar sua mente vaguear por sons que iam subjetivamente lhe surgindo no momento muito por conta das suas memórias e da sua extensa bagagem musical; e o prazer de, depois das peças gravadas, imaginar qual título faria mais jus ao imagetismo abstrato que cada peça dispunha. Daí o título de "Contos Sem Palavras" ser muito pertinente, pois cada curto improviso em cada peça tem, aí, um poder enorme de levar o ouvinte para estórias e lugares fantásticos.
O álbum começa com a peça "Introvisação", uma introdução que já sugere um clima de trilha sonora para um enredo de contos musicais que virão no restante da set list: a peça traz repetições de figuras melódicas e acordes que muito se assemelham dos traços da estética minimalista, mas com o pianista logo sugerindo singelos tons de brasilidade no meio da peça. Depois temos "Valsa Blues em Sol Menor": o "blues" e a "valsa" são os elementos motívicos dentro de uma vagarosa construção melódica que começa com acordes mais abstratos e sombreados, mas que atinge linhas mais assimiláveis entre as tradicionais valsas brasileiras e o pianismo chopiniano. A terceira peça "Quasi Un Scherzino" é muito interessante, pois ela faz uso do aspecto da brincadeira, até com certa aleatoriedade, para criar abstrações que caminham entre o classicismo —— o scherzo clássico —— e o limite do livre improviso mais indeterminista. Em "Notte Ricercata", o pianista explora repetições, acordes e relações intervalares um tanto misteriosas. Segue-se "Choro Perdido" que embrenha elementos do tradicional gênero do choro num emaranhado de improvisos abstratos. E assim Mehmari vai seguindo com essas curtas peças improvisadas que ora caminham por trilhas harmônicas mais abstratas, outrora sugerem melodismos dos mais variados, que ora beiram o indeterminismo e outrora —— muitas das vezes numa mesma peça —— trazem traços de determinados gêneros musicais que variam do erudito ao popular, do jazz à música clássica, do improviso livre à beleza melódico-harmônica da canção mineira... e além... E para além das inspirações puramente musicais, André também leva suas brincadeiras e belas abstrações para os campos das suas inspirações extramusicais: a natureza, a flora e fauna da Serra da Cantareira, a poética do cinema de Fellini embrenhada num ragtime descaracterizadamente improvisado, um maxixe de Nazareth indo de encontro com as tortuosidades do cubismo de Picasso, e etc. Este é, enfim, um daqueles álbuns para se ouvir com atenção, curtindo cada um dos momentos dessas trilhas repletas de surpresas motívicas e improvisos fantásticos. Ao todo são mais de 20 peças com os mais variados improvisos e divertimentos. Álbum fantástico!!!
Andre Mehmari (Ernesto Nazareth) - Ouro Sobre Azul (Tratore, 2013)
Aqui neste álbum André Mehmari explora, de uma forma mais determinista e direcionada, peças do compositor brasileiro Ernesto Nazareth, um dos pais do estilo do maxixe e um dos patriarcas do choro. Choros, polcas e maxixes deste compositor são explorados aqui com um caráter que combina breves espasmos e insights improsisativos com o cuidado para não descaracterizar as sincopações brasileiras destas peças. Ou seja, não se trata de um álbum de releituras no sentido mais puramente interpretativo das peças e nem de um álbum de improvisos no sentindo mais espontâneo da improvisação, mas trata-se de um álbum onde o pianista explora o tom mais caricaturista, a jocosidade, os trejeitos, as sincopações e os traços motívicos dessas peças à exaustão, de forma a salientar a riqueza melódica, rítmica e harmônica que esse grande compositor nos deixou em peças tão brilhantes e alegres. Para explorar um amplo leque de choros, polcas e maxixes desse compositor, Mehmari vai dos títulos clássicos —— tais como "Fon-Fon" e "Odeon" —— aos títulos menos conhecidos. O álbum começa com a Suite Nazareth que se assemelha a um pout-pourri que o pianista constrói em torno de elementos motívicos tirados de várias peças da obra do compositor, passa por esses choros e maxixes clássicos e termina com a mesma Suite Nazareth numa versão de piano-trio. Amantes da brasilidade mais tradicional curtirão por paixão este álbum. Aliás, o indico para qualquer amante da música que queira se aproximar dos traços originários da rica música brasileira, pois este álbum pode ser uma ótima porta aberta para essa introdução e para quem quer conhecer mais imersivamente um dos patriarcas da música brasileira!
Andre Mehmari - Noël: Estrela da Manhã (Estúdio Monteverdi, 2020)
De primeira vista fiquei um pouco temeroso de escutar este álbum e me deparar com mais um conjunto de meras releituras de canções tradicionais: definitivamente, releituras que apenas reproduzem as mesmas formas das canções ou temas tradicionais, ali naquele script quadradinho ou redondinho, nunca foi o tipo de audição que eu priorizasse. Mas isso foi antes de eu começar a me inteirar desta faceta hipercriativa de piano solo de Mehmari. Depois de ouvir o álbum Notturno 20 > 21, já fui logo procurando os outros álbuns de piano solo do pianista para ouví-los e posso dizer que foi uma agradável supressa quando ouvi este Noël: Estrela da Manhã. Este álbum, com o título de uma das canções mais conhecidas de Noel Rosa, é uma gravação de piano solo não menos que surpreendente! Isso porque André Mehmari leva as canções do poeta Noel Rosa —— um dos nomes centrais do tradicional samba carioca —— para o plano da improvisação, bem como traz para suas linhas improvisativas muitas progressões melódicas e harmônicas dessas canções, equilibrando misteriosos e curiosos sombreados harmônicos com o melodismo brasiliano dessas canções. André muitas das vezes usa a técnica do rubato à exaustão nos desenvolvimentos, de forma que, por meio de improvisos sendo belamente construídos em rubatos e formas livres, as canções se transformam em verdadeiras peças improvisadas. Ou seja, André escolhe por não trilhar pelo caminho fácil da mera reprodução, mas ele praticamente cria novas peças com essas melodias históricas que inovaram o gênero do samba, ainda assim deixando o melodismo ditar a poética desses improvisos. Em certos pontos, como na faixa "As Pastorinhas", Mehmari brinca de forma ímpar com as síncopes e quiálteras do samba, mas o faz de uma forma a deixar ali implícito a malandragem que a música de Noel Rosa sempre suscitou. Mas, ao contrário do álbum acima que tenta manter a caracterização rítmica do maxixe de Nazareth nas suas formas mais caricaturistas, aqui Mehmari usa muito o rubato mais impressionista e usa pouco a caracterização rítmica do samba, preferindo salientar em linhas brilhantemente improvisadas toda a beleza do melodismo das canções desse mestre da música popular brasileira.
Sombra e Luz - Marcello Tupynambá por André Mehmari (Tratore, 2024)
Assim como em "Ouro Sobre Azul", focado na obra de Ernesto Nazareth, este é mais um dos registros que surgiram dessa faceta mais revisionista de André Mehmari. Neste álbum sim: o pianista adota uma postura mais próxima ao intérprete que quer apresentar releituras requintadas de obras de um compositor histórico aos seus ouvintes. Mas Mehmari sempre dá contornos e sombreamentos que enriquecem as peças e os temas originais e neste álbum não é diferente. Interessante este álbum porque André Mehmari e seu piano solo aqui resgatam a história e a obra de um dos compositores que foi um dos ases do nacionalismo e do modernismo musical brasileiro e, ainda assim, carece de maior visibilidade histórica e midiática. Pesquisando mais sobre Marcello Tupynambá, a vibe que sua obra nos passa é que ele foi daqueles modernistas que fez a transição entre um certo tradicionalismo para um modernismo mais identificado com a urbanicidade de São Paulo, sobretudo no período em que ele foi diretor da Revista São Paulo Futuro e ganhou destaque internacional —— isso entre os anos de 1910 e 1920. Suas peças e canções, que variam entre o popular e o erudito, de fato conseguem mostrar um equilíbrio entre a brasilidade tradicional e o modernismo urbano de um novo Brasil que surgia em sua época. E de forma singela, com todo seu jeito intimista e impressionista de trabalhar esse tipo de brasilidade revisionista, Mehmari salienta bem essa caracterização e até acrescenta leves toques e tons contemporâneos ao conjunto da obra. O resultado é um álbum misterioso de um artista curioso, ou um álbum curioso de um artista misterioso —— como queiram. Marcello Tupynambá também era um compositor que usava vários pseudônimos —— seu nome verdadeiro, aliás, era Fernando Lobo... —— e transitava pelos mais variados gêneros da música nacional, indo de peças eruditas a canções, passando pelos chamados maxixes e forrobodós ... e além... Mehmari presta, então, um excelente serviço à memória da música brasileira ao resgatar as pérolas deste grande e ainda misterioso compositor brasileiro.
Andre Mehmari - Notturno 20 > 21 (Estúdio Monteverdi, 2021)
Este álbum é um dos registros mais lindos e ecléticos que você ouvirá no campo do piano solo. Na época do lançamento resenhei este álbum aqui 👉 no blog e posso dizer que foi a porta de entrada para eu ouvir todos esses outros álbuns acima em que Mehmari explora seu fantástico mundo de piano solo. Na ocasião escrevi: "... trata-se de um registro onde o músico praticamente traz o ouvinte para mais perto de uma certa intimidade musical não muito revelada, para mais perto dos temas melódicos de alguns compositores que lhe acalentam e lhe emocionam, trata-se do registro de piano solo mais intimista e introspectivo do músico, um registro onde o ouvinte sente verdadeiramente que o pianista foi buscar no âmago da sua alma criativa suas mais profundas inspirações para recriar esses temas de várias estéticas, épocas e lugares diferentes. André Mehmari sequencia num mesmo set list temas e excertos de peças de compositores barrocos como o italiano Tarquinio Merula, o inglês Henry Purcell, o alemão Johann Sebastian Bach e o francês Louis Couperin, além de uma canção do compositor romântico alemão Johannes Brahms (Balada Op. 10 No. 4), um tema do mestre maior do instrumental brasileiro Hermeto Pascoal (O Farol que nos Guia) e uma pequena coleção de suas próprias canções que ele compôs recentemente e/ou tirou do fundo do seu baú de preciosidades...". Com traços mais próximos da premissa da releitura e com ares e tons mais melodistas e minimalistas, é um dos grandes álbuns de piano solo do nosso tempo. E é onde Mehmari realmente traz o ouvinte para mais perto da suas ecléticas intimidades musicais que ele resgata das suas gavetas e do seu baú de preciosidades em decorrência à depressiva fase de reclusão ocasionada pela pandemia da COVID-19. Na época o artista chegou a salientar em entrevistas que o fato dele praticamente se desnudar rumo a esse tipo de criatividade mais eclética, revelando aí melodias e inspirações que estavam em segredo ou guardadas, foi determinante para que ele escolhesse este álbum como o primeiro a ter seu rosto como capa. Em vários momentos da carreira, Mehmari já criou melodias que beiram o divino e o inexplicável. Neste álbum, claramente um dos maiores registros da sua discografia, o pianista começa com a linda canção autoral "O Tema que não Entrou no Filme" e segue por uma trilha atemporal que inclui releituras dos mais belos temas, peças e canções escritas por compositores de várias épocas, além de outras das suas próprias preciosidades. Uma obra-prima do piano solo!
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