Radio Diaspora - Boemia (Independente, 2024)
Escrevi parte deste texto em 2024, assim que apreciei o lançamento do álbum Boemia do duo experimental Radio Diaspora, mas como dei uma pausa sabática nas atividades e aqui no blog, não o postei de imediato. E agora a publicação vem a calhar com o lançamento de mais um álbum do duo: o álbum Granulações (2025), que une as (de)composições da dupla de instrumentistas com os versos e as vocalidades do poeta mineiro Ricardo Aleixo, um dos nomes centrais da poesia de vanguarda brasileira a trabalhar com as semânticas afros dentro de uma amplitude que abrange o encontro dessa arte de letras, sílabas e palavras com outras artes, entre elas instalações conceituais, performances e o audiovisual integrado a multimídias —— Aleixo que é, também, curador, músico e produtor, portanto um artista de abrangente amplitude. E o que falar do Radio Diaspora, um dos mais criativos projetos de música experimental brasileira? Tem sido muito interessante como os músicos experimentalistas do duo Radio Diaspora —— o trompetista e explorador de sopros Romulo Alexis e o baterista e manipulador de eletrônicos Wagner Ramos —— estão a levar seu conceito de "(de)composição" para as esferas mais identitárias da diáspora afro a partir do uso de signos, elementos e adereços entrelaçados —— vide este post👉aqui no blog onde resenhamos algumas gravações da dupla, que já tem quase uma década de existência. Os experimentos dessa dupla super criativa conectam, de fato, a ancestralidade que desde sempre permeia o ideário e o imaginário do indivíduo negro com a vivência urbana desse indivíduo, ou seja, com o lugar marginalizado desse indivíduo neste universo de concreto, caos urbano, violência policial, mídias cibernéticas, preconceitos paradoxais, monóxido de carbono e outros óxidos nocivos. Neste álbum acima, com uma capa que usa uma foto tirada diante o Aqueduto da Carioca no emblemático Bairro da Lapa, a dupla centra-se na ancestralidade do samba e na temática da boemia que alimentava a cena central do Rio de Janeiro nos anos de 1970 para coletar signos e adereços que façam essa conexão entre o ancestral e o urbano. E mais uma vez o duo não alivia e nem suaviza nas sonoridades das suas colagens de samples, improvisos e manipulações cruas. As amostragens e experimentações não foram compostas —— ou melhor: (de)compostas —— para servirem ao alento ou ao entretenimento de quem busca fazer vista grossa ou de quem busca tratar a realidade suburbana apenas como uma polêmica discussão de momento numa conversa de boteco: as questões das diásporas afros são basilares e estão na alma da existência da dupla, e aqui mesmo 👉no blog, na entrevista que Romulo Alexis gentilmente nos concedeu, já foi explicitado que a intenção do duo nunca foi "entreter" ou soar como um "acalanto", e nem mesmo soar como uma tentativa de "conscientização barata", mas sim fazer com que as pessoas internalizem as questões da diáspora afro por meio da sua experimentação musical e, em seguida, joguem para fora todo o tipo de nocividade —— algumas nocividades, inclusive, ainda advindas de heranças colonialistas! E nenhuma temática seria melhor do que o samba e a boemia carioca para fazer uma ponte entre a ancestralidade afro-brasileira e nossa realidade.
Nesse sentido, a intenção da dupla Radio Diaspora evolui mais para um processo experimental ritualístico que "internaliza" para depois, e ao mesmo tempo, "exorcizar" signos do preconceito e da discriminação que ainda assolam as diásporas afros no Brasil e no mundo. Por detrás da escolha dessa temática carioca da boemia, por exemplo, centra-se a curiosa ironia da celebração midiática da boemia bossanovista de Copacabana, Leblon e Ipanema como um produto-exportação em detrimento de uma quase marginalização dos sambas do subúrbios e seus tambores, repiques, ritos, vozes e festejos que só transparecem nos terreiros e morros e na semana do carnaval, um dos poucos momentos nos quais a mídia dá atenção para essa cultura ancestral enquanto herança cultural brasileira. A Radio Diaspora não deixa essa queixa explícita, mas quem se compenetrar em meio às colagens e os improvisos venosos deste álbum logo perceberá que o viés não é outro senão fazer com que esses sons do negro suburbano —— e a Lapa sempre foi o ponto de encontro dos sambistas que se alimentam culturamente nos terreiros, morros e subúrbios —— emerja como espectros, como sons-fantasmas que lutam em meio à massa venosa de sons experimentais para se libertar da marginalização e do esquecimento nesse caos de nichos, interesses comerciais e sensacionalismos. Somado a esta impressão, a dupla também não deixa de enfatizar que sempre houve experimentação nos processos criativos do samba suburbano —— aliás, do tribal e primitivo ao hip hop, passando pelo samba, pelo jazz e outras formas de arte negra, o improviso, a ritualística e a experimentação sempre foram basilares nas variadas expressões do sujeito negro. Para tanto, a bateria e manipulações eletrônicas de Wagner Ramos e Rômulo Alexis trazem-nos, aqui, samples e adereços que se remetem tanto aos sambistas do subúrbio carioca como aos grupos e artistas legendários que levaram o samba para uma exposição midiática maior: João Nogueira, Beth Carvalho, Roberto Ribeiro, Wilson das Neves, Mestre Marçal, Martinho da Vila, Fundo de Quintal e outros, principalmente nomes de sambistas que se remetem à cena carioca da Lapa dos anos de 1970. Tendo como conceitos-bases o livre improviso e a "(de)composição" na manipulação entrelaçada de elementos orgânicos afros com elementos eletrônicos, a dupla Radio Diáspora não deixa explícitos as rítmicas, as vozes e os adereços do samba tal como se deveria soar na vitrola do ouvinte e fã de samba mais saudosista, mas os fazem soar como signos aprisionados, espectros e sons-fantasmas que lutam para se libertar. Romulo Alexis empunha trompete, boquilhas, shenai, gaita marroquina, pedais de efeito, agogô, caxixi e eletrônicos. Wagner Ramos empunha bateria, Sampler Roland SP-404 SX, Wavedrum Korg, SPD-One Wavepad, Minimoog Model D Synthesizer e percussões.
Ricardo Aleixo & Radio Diaspora - Granulações (Independente, 2025)
Já aqui neste álbum, lançado agora em 2025, a voz do poeta Ricardo Aleixo se une às (de)composições do duo para criar uma trilha que vai da abstração à poesia imersa em cósmicas sonoridades improvisadas, com direito a inflexões silábicas que se remetem as raizes que a grande Mãe África exportou ao nosso querido Brasil. O álbum, na verdade, foi gravado em 2023 na tarde de 11 de Maio, quando os músicos se encontraram no Estudio Ori em São Paulo para uma sessão do que eles chamaram de "música preta improvisada brasileira do mundo". Nesse sentido, entra em campo musical elementos do que se chama de etnopoesia, que na área de atuação de Aleixo é a recuperação das poéticas afros tradicionais numa ponte entre a ancestralidade e os multi-meios, as multi-artes e as multi-mídias da nossa contemporaneidade —— a etnopoesia, aliás, é um conceito que eclodiu em seguida ao movimento beatnik através de poetas e pesquisadores americanos tais como Gary Snyder e Jerome Rothenberg já nos aos de 1960, e aqui 👉neste link encontramos uma entrevista concedida por Aleixo à Radio USP que explica esse e outros conceitos da poesia e suas relações com outras artes. E neste álbum, definitivamente, vem muito a calhar o pioneirismo de Ricardo Aleixo em fazer interpolações das raízes diaspóricas —— silábicas, onomatopeicas, linguísticas, poéticas, e etc —— com um certo conceito avançado de multi-arte que vai de um certo neoconcretismo que se descontrói e beira a abstração e acaba por definir, daí, um encontro praticamente híbrido com as improvisações sonóricas do duo Radio Diaspora, que ora são livremente abstratas, outrora são melódicas e outrora fazem uso de atmosféricas tessituras eletrônicas —— e às vezes tudo isso junto numa mesma peça (!) —— para, enfim, devolver um tecido sonoro incidental e propício aos versos do poeta. O álbum Granulações começa com uma peça muito interessante, uma livre improvisação que entrelaça as abstratas vocalizações de Ricardo Aleixo com os sons e timbres do trompete Rômulo Alexis e da eletrônica de Wagner Ramos: e de repente essas abstrações caminham para um determinado excerto melódico com elementos silábicos africanizados, mas que, de alguma forma implícita, se remete a uma certa ancestralidade afro-brasileira. Segue-se peças em que as vocalizações de Aleixo permearão desde as propriedades dadaístas e concretistas do som vocal —— o uso de resmungos, grunhidos, o som nasal, a fonética, as (des)construções onomatopeicas e etc —— até o uso linguístico-semântico da palavra e de versos declamados que são interpolados aos sons dos instrumentistas.
Há também uma profusão mais elaborada, aqui, de sequenciamentos e combinações de diferentes sons e timbres, o que evidencia o quanto o duo evoluiu em aumento de repertório e influências em quase uma década de existência do projeto. Tendo começado com influências advindas do free jazz —— tendo o Art Ensemble of Chicago entre as principais inspirações ——, assim iniciando com livres improvisos combinados com colagens e samples eletrônicos crus, pouco a pouco Rômulo Alexis e Wagner Ramos acrescentaram ao caldeirão do duo diversos outros elementos diaspóricos e espectros sonoros que vai dos procedimentos instrumentais do hip hop, passa pelo samba, flerta com sons variados da negritude do Brasil e com a percussão afro-indígena do mestre Naná Vasconcelos e usa até elementos do afrofuturismo e da cosmic music saturnina de Sun Ra. Nas faixas que se seguem, aqui em Granulações, sentimos todas essas e outras influências interpoladas, sequenciadas e combinadas e, de certa forma, enriquecidas pelas palavras, vocalizações e pelos poemas de Ricardo Aleixo (foto ao lado), também nos fazendo remeter, um tanto, à relação que o poeta e ativista americano Amiri Baraka tinha com o jazz. E assim a dupla de instrumentistas e o poeta, que soam verdadeiramente como um trio, criam uma trilha experimental que, em certos momentos, soará mais como uma trilha incidental mesmo —— praticamente cinematográfica —— a levar o ouvinte para imaginações, atmosferas e lugares nesse cosmo de sons, espaço, tempo e o sujeito humano a lidar com o caos nesse cosmo. Não trata-se, enfim, de uma trilha que seja como um contar de uma história —— ou estórias —— numa lógica quadrada ou cíclica com começo, meio e fim. Mas o conjunto de sonoridades instrumentais e vocais vem unir poesia e música numa só miríade onde há muito o que se investigar em termos dos signos da negritude, bem como suas significâncias, semióticas, semânticas, oralidades, sintaxes e afins. Após esses últimos anos acompanhado os álbuns do Radio Diaspora, considero este tento uma evolução natural do duo que, cada vez mais, vai dos signos até as significâncias que permeiam a negritude e o sujeito negro na sociedade contemporânea, sem deixar de lado a ancestralidade. Para mim, Granulações já é um dos grandes álbuns de 2025!!!